Estamos indo devagar, então vou encontrá-la no trabalho dela, e não em seu apartamento. Não faço ideia de onde esteja morando agora, nem sei se ainda mora no mesmo prédio onde estive quase dois anos atrás, quando ela precisou de ajuda. Por algum motivo, não mencionamos as nossas casas quando conversamos. Ela provavelmente não sabe que vendi minha casa e me mudei para a cidade no início do ano. Estou curioso para saber a que distância estamos um do outro agora.

— Estou sentindo cheiro de perfume — Darin comenta depois de passar por mim. Ele para de andar na direção do freezer e se vira para me dar uma encarada. — Você passou perfume? Por que está arrumado?

Cheiro as mãos.

— Não estou com cheiro de alho?

— Não, está com cheiro de quem vai sair. Vai sair mesmo?

— Estou saindo. Mas volto mais ou menos na hora de fechar.

Pensei em passar a noite aqui e ver se consigo flagrar quem quer que esteja vandalizando os restaurantes.

Houve um período de vários dias de calmaria entre os incidentes, mas ontem à noite fomos atacados de novo, apesar de os estragos não terem sido grandes. Desta vez, a pessoa apenas espalhou o lixo por toda parte outra vez. É bem mais fácil limpar lixo do que refazer a pintura. Talvez seja porque Brad sempre traz Theo para ajudar. Eu deveria avisar a Theo que, quanto mais ele reclama de uma tarefa, mais provável é que ele seja obrigado a fazê-la.

Esta noite pretendo confrontar a pessoa que está causando os problemas para ver se consigo entender seus motivos e convencê-la a parar antes que seja preciso envolver a polícia. Tenho certeza de que a maioria das coisas pode ser resolvida com uma conversa simples e franca, em vez de uma intervenção dramática, mas não faço ideia de com quem estou lidando.

Darin se aproxima e diz em voz baixa:

— Com quem vai sair? Com a Lily?

Seco as mãos numa toalha e assinto.

Darin sorri e se afasta. É bom ver que meus amigos gostam de Lily. Eles a mencionaram algumas vezes depois da nossa noite de pôquer, mas acho que notaram que aquilo me incomodou. Eu não gostava de falar da Lily quando ela não fazia parte da minha vida.

Agora, no entanto, é possível que ela esteja de volta. Talvez. É

por isso que estou tão nervoso, pois sei que sair comigo esta noite é um grande risco para ela. Se as coisas entre nós progredirem, isso afetará sua vida de uma maneira negativa. Talvez seja por isso que, duas horas atrás, comecei a me sentir imensamente pressionado para garantir que nosso jantar esteja à altura dela.

Mas estou com cheiro de alguém que tem pavor de vampiros, então as coisas já não estão correndo muito bem.

Paro no estacionamento quando faltam cinco minutos para as 18h.

Lily devia estar me esperando, pois sai da floricultura e tranca a porta atrás de si antes mesmo de eu sair do carro.

Assim que a vejo, fico ainda mais nervoso. Ela está linda. Está de macacão preto e salto alto. Lily veste o casaco e me encontra no meio do estacionamento.

Eu me aproximo e a cumprimento com um beijo rápido na bochecha.

— Você está maravilhosa.

Juro que ela cora um pouco depois que digo isso.

— Estou mesmo? Não dormi ontem à noite. Parece que estou com cara de uma senhora de noventa anos.

— Por que não dormiu?

— Emmy passou a noite inteira com febre. Ela está melhor agora, mas... — Lily boceja. — Desculpe. Acabei de tomar café,

daqui a pouco o efeito bate.

— Tudo bem. Eu não estou cansado, mas estou com cheiro de alho.

— Eu gosto de alho.

— Que bom.

Lily se inclina para trás e olha para a própria roupa.

— Eu não sabia o que vestir, nunca fui a esse restaurante.

— Nem eu, então não faço ideia. Mas posso apostar que vai se sair bem.

Escolhi um restaurante novo que eu estava querendo conhecer.

Fica a uns quarenta e cinco minutos de carro, mas imaginei que assim teríamos tempo de botar a conversa em dia no caminho.

— Tenho um presente para você — anuncia ela. — Está no meu carro. Vou pegar.

Eu a acompanho até o carro e a vejo pegar alguma coisa no porta-luvas. Quando ela me entrega, não consigo deixar de sorrir.

— É seu diário?

Ela leu outro trecho curto para mim ontem à noite, mas ficou tão envergonhada de ler em voz alta que preferiu parar.

— É um deles. Vamos ver como vai ser a noite antes que eu te dê o outro.

— Sem pressão.

Acompanho-a até meu carro e abro a porta do carona para Lily.

Ela começa a bocejar de novo enquanto fecho sua porta.

Eu me sinto mal, como se talvez ela estivesse cansada demais para o nosso jantar. Não faço ideia de como é cuidar de uma criança. Parece egoísmo da minha parte não sugerir que remarquemos, então, antes de dar a ré, eu digo:

— Se você preferir voltar para casa e dormir, podemos sair no próximo fim de semana.

— Quero que tenhamos o nosso encontro, Atlas. Vou dormir quando estiver morta. — Ela afivela o cinto de segurança. — Você está mesmo com cheiro de alho.

Acho que está brincando. Ela costumava fazer muitas piadas quando éramos mais jovens. Era uma das coisas de que eu mais gostava nela: Lily sempre parecia estar de bom humor, apesar de todas as coisas ruins que a cercavam. É a mesma força que admirei

nos dias que passamos juntos após ela descobrir que estava grávida na emergência do hospital. Sei que foi um dos piores momentos da sua vida, mas ela conseguiu sorrir enquanto lidava com tudo, e até passou uma noite inteira impressionando meus amigos com seu humor durante uma noite de pôquer.

Todos enfrentam o estresse à sua própria maneira, e nenhuma delas é necessariamente errada, mas Lily o enfrenta com leveza. E

leveza é a qualidade que mais acho atraente nos outros.

— Como conseguiu uma noite de sábado livre? — pergunta Lily.

Odeio estar dirigindo, pois queria olhar para ela enquanto respondo. Nunca a vi tão... mulherão? Isso é um elogio? Nem sei.

Nem devia dizer isso em voz alta caso não seja, mas, quando Lily e eu nos apaixonamos, nós dois não éramos o que consideraríamos adultos. Mas hoje é diferente. Somos adultos com carreiras, e ela é mãe, dona do próprio negócio e independente. Isso é sexy pra cacete.

O único outro momento que passei com ela já adulto foi quando ela, tecnicamente, ainda estava com Ryle, então me parecia errado pensar nela como estou pensando agora. Com desejo.

Eu me concentro no trajeto e tento não criar uma pausa na conversa, mas acho que estou um pouco nervoso. Isso me surpreende.

— Como consegui a noite livre... — digo, fingindo que estou pensando na pergunta e não no quanto quero admirá-la. — Eu contrato pessoas de confiança.

Lily sorri.

— Você sempre trabalha nos fins de semana?

Faço que sim.

— Costumo tirar apenas o domingo de folga, quando nós fechamos. Às vezes, descanso na segunda.

— O que você mais curte no seu trabalho?

Hoje ela está cheia das perguntas. Olho-a de soslaio e sorrio.

— Ler as avaliações.

Ela faz um murmúrio, chocada.

— Como? — diz ela. — Você disse avaliações? Lê as avaliações que fazem dos seus restaurantes?

— Cada uma delas.

O quê? Meu Deus, qual o seu nível de segurança em si mesmo? Eu deixo nossas redes sociais a cargo de Serena só para evitar as avaliações.

— As suas são ótimas.

Ela praticamente vira o corpo inteiro para mim.

— Você lê as minhas avaliações?

— Leio as avaliações de todos os estabelecimentos cujos donos eu conheço. Acha esquisito?

— Não é não esquisito.

Dou a seta.

— Gosto de ler avaliações. Acho que as avaliações de um estabelecimento refletem o dono, e quero saber o que as pessoas acham dos meus restaurantes. As críticas construtivas ajudam. Não tenho a experiência de cozinha que muitos chefs têm, e as críticas ensinam muito.

— E o que você ganha lendo as avaliações dos estabelecimentos de outras pessoas?

— Nada, na verdade. Só acho divertido.

— Eu tenho alguma avaliação negativa? — Lily desvia a vista, virando-se parcialmente para olhar para a frente de novo. —

Esqueça, não responda. Vou só fingir que todas são boas e que todo mundo ama as minhas flores.

— Mas todo mundo ama mesmo as suas flores.

Ela comprime os lábios, tentando não sorrir.

— O que você menos curte no seu trabalho?

Adoro o fato de ela estar me fazendo perguntas tão aleatórias.

Isso me lembra daquelas noites em que ficávamos acordados até tarde e ela me fazia um monte de perguntas sobre mim.

— Até a semana passada, eram as inspeções da vigilância sanitária.

— Por que até a semana passada? O que mudou?

— O vandalismo.

— Aconteceu de novo?

— Sim, duas vezes nesta semana.

— E você ainda não faz ideia de quem seja?

Balanço a cabeça.

— Nenhuma.

— Você tem alguma ex-namorada esquentada?

— Ah, duvido que seja isso. Não seria do feitio delas.

Lily tira os saltos e põe uma das pernas no banco para ficar mais confortável.

— Quantos namoros sérios você teve?

Ela quer saber sobre isso. Tá bom, então.

— Defina “sério”.

— Sei lá. Mais de dois meses?

— Um — respondo.

— Quanto tempo vocês ficaram juntos?

— Pouco mais de um ano. Eu a conheci quando estava na Marinha.

— Por que vocês terminaram?

— Nós fomos morar juntos.

— Foi por isso que terminaram?

— Acho que morar juntos nos fez perceber mais rápido que éramos incompatíveis. Ou talvez a gente só estivesse em momentos diferentes da vida. Eu estava concentrado na minha carreira, e ela, na roupa que usaria nas boates às quais eu não ia por estar cansado demais. Quando saí da Marinha e voltei para Boston, ela ficou lá e foi morar num loft com duas amigas.

Lily ri.

— Não consigo te imaginar numa boate.

— Pois é. Acho que é por isso que estou solteiro. — Meu telefone toca com uma ligação do Corrigan’s, interrompendo a gente antes que eu possa lhe perguntar o mesmo. — Preciso atender —

digo.

— Vá em frente.

Atendo pelo bluetooth. É só um problema com um freezer, mas preciso fazer mais duas ligações antes de resolver a situação enviando um técnico até lá para consertá-lo. Quando finalmente consigo prestar atenção em Lily de novo, olho para ela e vejo que está dormindo, com a cabeça encostada no ombro. Ouço um pequeno ronco vindo dela.

Pelo jeito, o efeito do café não bateu.

Deixo-a dormir durante todo o percurso até o restaurante.

Chegamos quando faltam dez minutos para as 19h. Está escuro e o

restaurante parece cheio, mas temos alguns minutos antes de eu precisar dar nosso nome para a reserva, então a deixo descansar.

Seu ronco é tão encantador quanto ela. É delicado, quase baixo demais para ser ouvido. Faço um pequeno vídeo para poder provocá-la mais tarde, então estendo o braço para o banco de trás e pego seu diário. Sei que ela disse que eu não deveria ler na frente dela, mas, tecnicamente, não é o que estou fazendo. Ela está dormindo.

Abro na primeira página e começo a ler.

Leio o primeiro texto que escreveu, completamente fascinado.

Sinto como se estivesse quebrando alguma regra ao ler isso, mas foi ela quem trouxe o diário.

Leio o segundo texto. Depois o terceiro. Então abro o aplicativo da reserva e a cancelo, pois, a não ser que eu acorde Lily neste exato momento, vamos nos atrasar. Prefiro que nossa mesa vá para outra pessoa, porque ela parece estar precisando desse sono há um bom tempo.

E quero ler mais uma entrada do diário. Quando acordar eu a levo para jantar em algum outro restaurante.

Cada palavra no diário me faz voltar à nossa adolescência. São muitos os momentos em que quero rir das coisas que ela diz e de como as diz, mas me controlo porque não quero assustá-la.

Acabo lendo um trecho que tenho quase certeza ser sobre o nosso primeiro beijo. Olho o relógio e já faz meia hora que estamos aqui, mas Lily continua dormindo pesado e não posso parar no meio do texto. Continuo lendo, torcendo para que ela durma por tempo o bastante para que eu consiga chegar até o fim.

— Preciso te contar uma coisa — disse ele.

Prendi a respiração, sem saber o que ele ia dizer.

— Hoje falei com meu tio. Minha mãe e eu morávamos com ele em Boston. Disse que posso ficar lá depois que ele voltar de uma viagem a trabalho.

Nesse momento eu deveria ter ficado muito feliz por ele.

Deveria ter sorrido e dado parabéns. Mas senti toda a minha imaturidade quando fechei os olhos e senti pena de mim mesma.

— Você vai? — perguntei.

Ele deu de ombros.

— Não sei. Eu queria falar com você primeiro.

Ele estava tão perto de mim na cama que dava para sentir o sopro quente de sua respiração.

Também percebi que ele tinha cheiro de menta... Será que escovava os dentes com água de garrafa antes de vir para cá? Sempre dou muita água para ele levar para casa.

Coloquei a mão no travesseiro e comecei a puxar uma pena que estava para fora. Depois de soltá-la, eu a torci entre os dedos.

— Não sei o que dizer, Atlas. Fico feliz por você ter onde ficar. Mas e o colégio?

— Posso terminar o ano lá — disse ele.

Assenti. Pelo visto, ele já tinha se decidido.

— Quando você vai?

Qual seria a distância de Boston até aqui? Deve ficar a algumas horas, mas é um mundo inteiro de distância para quem não tem carro.

— Ainda não tenho certeza se vou.

Larguei a pena no travesseiro e coloquei a mão do lado do corpo.

— O que está te impedindo? Seu tio está te oferecendo um lugar para ficar. Isso é bom, não é?

Ele comprimiu os lábios e fez que sim. Depois pegou a pena que eu tinha largado e começou a mexê-la entre os dedos. Colocou-a de novo no travesseiro e depois fez algo que eu não esperava: levou os dedos até meus lábios e os tocou.

Meu Deus, Ellen. Achei que ia morrer bem ali. Jamais tinha sentido algo tão intenso dentro de mim. Ele deixou os dedos parados por alguns segundos e disse:

— Obrigado, Lily. Por tudo.

Ele levou os dedos até meu cabelo, depois se inclinou para a frente e deu um beijo em minha testa. Eu estava com a respiração tão acelerada que precisei abrir a boca em busca de mais ar. Percebi que ele arfava tanto quanto eu. Ele

olhou para mim, e eu observei seus olhos se voltarem para minha boca.

— Você já foi beijada alguma vez, Lily?

Neguei com a cabeça e ergui o rosto na direção do dele, porque eu precisava que Atlas fizesse algo a respeito dessa situação bem naquele momento, caso contrário eu não conseguiria mais respirar.

Então — quase como se eu fosse tão delicada quanto uma casca de ovo — ele aproximou a boca da minha e parou bem ali. Eu não sabia o que fazer em seguida, mas não me importei. Eu não ligaria se a gente passasse a noite inteira daquele jeito, sem nunca sequer mover as bocas, de tão bom que era.

Seus lábios se fecharam nos meus, e eu meio que senti sua mão tremendo. Fiz o mesmo que ele e comecei a imitar seus movimentos. Senti a ponta de sua língua roçar uma vez em meus lábios, e achei que meus olhos iam se virar para dentro de minha cabeça. Ele fez isso de novo, e depois uma terceira vez, então eu fiz o mesmo. Quando nossas línguas se encostaram pela primeira vez, dei um sorrisinho, porque eu já tinha imaginado muitas vezes meu primeiro beijo. Onde seria, com quem seria. Nunca em um milhão de anos imaginei que me sentiria assim.

Ele me deitou, pressionou a mão em minha bochecha e continuou me beijando. Tudo só melhorou à medida que fui relaxando. Meu momento preferido foi quando ele se afastou por um segundo e ficou me olhando, depois voltou com um beijo ainda mais intenso.

Não sei por quanto tempo nos beijamos. Foi muito tempo.

Tanto que minha boca começou a doer e eu não conseguia mais manter os olhos abertos. Quando dormimos, tenho certeza de que a boca de Atlas ainda estava encostando na minha.

Não falamos mais sobre Boston. Ainda não sei se ele vai se mudar.

Lily

Caramba.

Caramba.

Fecho o diário e olho para Lily. Ela escreveu sobre nosso primeiro beijo com tanto detalhe que me sinto inferior ao Atlas adolescente.

Será que aconteceu assim mesmo?

Eu me lembro daquela noite, mas estava bem mais nervoso do que a descrição de Lily indica. É engraçado que, na adolescência, a gente acha que é a única pessoa nervosa e inexperiente do planeta.

A gente acha que quase todos os outros adolescentes entendem muito mais da vida, mas não é assim, de jeito nenhum. Nós dois estávamos assustados. E encantados um pelo outro. E

apaixonados.

Já tinha me apaixonado por ela muito antes do nosso primeiro beijo. Antes daquele momento, eu nunca tinha amado tanto alguém.

Acho que nunca amei tanto alguém mesmo depois daquele momento.

E acho que ainda amo.

Tem tanta coisa que Lily não sabe sobre aquela parte da minha vida. Tanta coisa que quero lhe contar agora que li sua versão do nosso tempo juntos. É óbvio que ela não faz ideia do quanto foi importante para mim naquela época. Quando todos me deram as costas, Lily foi a única que se ofereceu para me ajudar.

Ela ainda está dormindo pesado, então pego meu celular e abro uma nota em branco. Começo a digitar, detalhando como minha vida era antes de ela aparecer. Não pretendia escrever tanto quanto escrevo, mas pelo jeito tenho muito o que dizer.

Levo mais vinte minutos para finalmente terminar de digitar tudo, e só depois de mais cinco minutos Lily por fim começa a despertar.

Coloco o celular no porta-copos, inseguro em mostrar a ela o que acabei de escrever. Talvez eu espere alguns dias. Ou semanas.

Ela quer ir devagar, e não tenho certeza se o que disse no final da carta coincide com sua ideia de “ir devagar”.

Lily ergue a mão e coça a cabeça. Está virada para a janela, então não vejo seu rosto quando seus olhos se abrem, mas percebo que acordou porque endireita a postura. Fica olhando pela janela

por um instante, depois vira a cabeça para mim. Tem algumas mechas de cabelo grudadas na bochecha.

Estou recostado na porta, observando-a casualmente, como se isso fosse um comportamento totalmente natural para um primeiro encontro.

— Atlas. — Ela diz meu nome como se fosse um pedido de desculpa e uma pergunta ao mesmo tempo.

— Não tem problema. Você estava cansada.

Ela pega meu celular e confere as horas.

Meu Deus. — Ela se inclina para a frente, pressionando os cotovelos nas coxas e o rosto nas mãos. — Não acredito nisso.

— Lily, não tem problema. Sério. — Ergo o diário. — Você me fez companhia.

Ela olha o diário e solta um gemido.

— Quero morrer de vergonha.

Jogo o diário no banco de trás.

— Para mim, foi bastante produtivo.

Lily dá um tapinha no meu ombro.

— Pare de rir. Estou me sentindo mal demais para achar graça.

— Não se sinta mal, você está exausta. E provavelmente com fome. A gente pode comprar um hambúrguer no caminho de volta.

Lily se recosta dramaticamente no banco.

— Deixar o chef sofisticado levar a garota para comer fast-food, já que ela dormiu durante o encontro... Por que não? — Ela vira o visor e percebe o cabelo grudado na bochecha. — Nossa, eu estou muito mãe. É a última vez que vamos sair? É, não é? Já estraguei tudo? Eu entenderia.

Dou a ré.

— De jeito nenhum. Não depois de tudo o que acabei de ler.

Acho que nada seria capaz de superar este encontro.

— Suas expectativas são muito baixas, Atlas.

Acho sua autodepreciação encantadoramente charmosa.

— Quero fazer uma pergunta sobre seu diário.

— O quê?

Ela está limpando uma mancha de rímel. Parece totalmente frustrada agora que acha que estragou nosso encontro. Já eu não consigo parar de sorrir.

— Na noite do nosso primeiro beijo... Você colocou os cobertores na máquina de lavar de propósito? Foi um truque para que eu dormisse na sua cama?

Ela franze o nariz.

— Você já chegou até essa parte?

— Você passou um tempinho dormindo.

Ela reflete sobre minha pergunta e assente, admitindo.

— Queria que meu primeiro beijo fosse com você, e isso não teria acontecido se você continuasse dormindo no chão.

Ela provavelmente tem razão. E deu certo.

Ainda está dando certo, pois ler sua descrição do nosso primeiro beijo trouxe de volta todos os sentimentos que ela despertou em mim naquela noite. Mesmo que ela dormisse durante o encontro inteiro, eu ainda acharia que este foi o melhor da minha vida.

12. Lily

— Não acredito que você me deixou dormir por tanto tempo. — Já se passaram dez minutos e ainda estou com a barriga revirando de tanta vergonha. — Você leu o diário inteiro?

— Parei depois da entrada sobre o nosso primeiro beijo.

Que bom. Não é tão vergonhoso assim. Porém, se ele tivesse lido sobre a primeira vez que a gente transou enquanto eu estava aqui, dormindo no banco ao seu lado, não sei se conseguiria aguentar.

— Isso é tão injusto — murmuro. — Você precisa fazer algo vergonhoso para equilibrar a situação, pois agora parece que arruinei completamente a nossa noite.

Atlas ri.

— Acha que eu fazer algo vergonhoso fará você se sentir melhor em relação a esta noite?

Assinto.

— Isso. É a lei do universo. Olho por olho, humilhação por humilhação.

Atlas tamborila no volante com o polegar enquanto massageia o maxilar com a outra mão. Então aponta a cabeça para o celular, que está no porta-copos.

— Abra o aplicativo Notas no meu celular. Leia a primeira.

Ah, nossa. Eu estava brincando, mas não perco tempo em pegar o seu celular.

— Qual é a senha?

— Nove, cinco, nove, cinco.

Digito os números e dou uma olhada na tela inicial enquanto ela está aberta. Todos os aplicativos estão dentro de uma pasta, bem organizados. Ele não tem nenhuma mensagem não lida e tem apenas um e-mail não lido.

— Meu Deus! Você é muito organizado! Quem é que tem só um e-mail não lido?

— Não gosto de bagunça — revela. — É um efeito colateral da Marinha. Quantos e-mails não lidos você tem?

— Milhares. — Abro o aplicativo Notas e clico na mais recente.

Assim que vejo as duas palavras no topo, abaixo o celular, pressionando-o na minha coxa com a tela para baixo. — Atlas.

— Lily.

Sinto minha vergonha ser coberta por uma onda morna de expectativa que cai sobre mim.

— Você me escreveu uma carta do tipo Querida Lily?

Ele assente devagar.

— Você passou um bom tempo dormindo.

Quando me olha, seu sorriso vacila, como se ele estivesse preocupado com o que quer que tenha escrito. Ele se vira para a frente de novo, e percebo quando engole em seco.

Encosto a cabeça no vidro do passageiro e começo a ler em silêncio.

Querida Lily,

Você vai ficar morta de vergonha quando acordar e perceber que caiu no sono durante nosso primeiro encontro.

Estou bem curioso para ver sua reação. Mas você parecia tão cansada quando te busquei que ver você descansando me deixa feliz.

A última semana foi surreal, não é? Lá estava eu, começando a achar que talvez nunca fosse fazer realmente parte da sua vida, e aí, puf, você aparece.

Eu poderia falar muitas e muitas coisas sobre o que aquele nosso encontro na rua significou para mim, mas prometi ao meu terapeuta que iria parar de te dizer cafonices.

Não se preocupe, planejo descumprir minha promessa com frequência, mas você perguntou se poderíamos ir devagar, então isso só vai acontecer depois que a gente sair mais algumas vezes.

Em vez disso, estou pensando em seguir o seu exemplo e falar do nosso passado. Acho mais do que justo. Você me deixou ler alguns de seus pensamentos mais íntimos de um momento bem vulnerável da sua vida, então o mínimo que

posso fazer é detalhar um pouco a minha própria vida naquela época.

Minha versão é um pouco mais pesada, no entanto. Vou tentar omitir os piores detalhes para poupá-la, mas não sei se você é capaz de compreender por completo o que sua amizade significou para mim sem saber qual era minha situação antes de você aparecer na minha vida.

Eu te contei parte das coisas: como acabei daquele jeito, indo morar naquela casa abandonada. Mas fazia mais tempo que eu sentia que não tinha um lar. Na verdade, eu nunca senti que tive um, apesar de ter uma casa, uma mãe e, vez ou outra, um padrasto.

Não me lembro de como eram as coisas quando eu era pequeno. Fico imaginando que talvez ela tenha sido uma boa mãe numa época distante. Lembro-me de uma viagem que fizemos a Cape Cod, quando provei camarão ao coco pela primeira vez, mas, caso ela tenha sido uma mãe decente sem ser naquele único dia, naquela única refeição, isso nunca ficou na minha memória.

Minha memória é composta mais de momentos que passei sozinho ou em que tentava apenas não a incomodar.

Ela se zangava com rapidez e reagia na mesma velocidade.

Nos primeiros dez anos da minha vida, mais ou menos, minha mãe era mais forte e mais ágil do que eu, então passei a maior parte de uma década me escondendo de sua mão, de seus cigarros, de sua língua afiada.

Sei que ela estava estressada. Era uma mãe solo que trabalhava à noite para tentar me sustentar, mas, por mais que eu tenha dado muitas desculpas para ela naquela época, já vi muitas mães solo vivendo bem, sem recorrerem às coisas que ela fazia.

Você viu minhas cicatrizes. Não vou entrar em detalhes, mas, por mais que aquilo tenha sido ruim, ficou ainda pior durante o terceiro casamento dela. Eu tinha doze anos quando eles se conheceram.

Mal sabia eu que meus doze anos seriam meu único ano de tranquilidade. Ela vivia fora porque estava com ele e,

quando voltava para casa, ficava até de bom humor porque estava se apaixonando. É curioso como o amor por um namorado pode melhorar ou piorar a maneira como algumas pessoas tratam os próprios filhos.

Mas aí os meus doze anos viraram treze, Tim foi morar com a gente e os próximos quatro anos da minha vida foram um verdadeiro inferno. Quando não era minha mãe que eu estava irritando, era Tim. Quando eu estava em casa, alguém estava gritando comigo. Quando estava na escola, a casa estava sendo destruída pela briga dos dois, que esperavam que eu arrumasse tudo quando voltasse.

A vida com eles era um pesadelo, e quando finalmente fiquei forte o bastante para me defender, foi então que Tim decidiu que não queria mais morar comigo.

Minha mãe o escolheu. Fui obrigado a sair de casa. Eles nem precisaram pedir duas vezes — eu estava mais do que pronto para me mandar de lá. Mas isso porque eu tinha para onde ir.

Até eu não ter mais. Depois de três meses, o amigo com quem eu estava morando se mudou para o Colorado com a família.

Naquele momento, eu não tinha ninguém, não tinha outro lugar para ir, e mesmo que tivesse, eu não teria dinheiro para chegar até lá. Então, fui obrigado a procurar minha mãe e pedir para voltar.

Ainda me lembro do dia em que reapareci naquela casa.

Mal fazia três meses que eu tinha saído e o lugar já estava caindo aos pedaços. A grama não era aparada desde a última vez que eu a cortara antes de ser expulso. Não havia mais nenhuma tela nas janelas e tinha um buraco onde ficava a maçaneta. Pela aparência da casa, era como se eu tivesse passado anos fora.

O carro da minha mãe estava lá na frente, mas o de Tim, não. O carro dela parecia estar ali havia um bom tempo. O

capô estava aberto, e havia ferramentas espalhadas próximo e pelo menos trinta latas de cerveja formando uma pirâmide que alguém tinha feito na frente da porta da garagem.

Tinha até jornais empilhados no caminho de concreto rachado. Lembro que, antes de bater à porta, eu os peguei e os deixei numa das velhas cadeiras de ferro para que secassem.

Foi estranho bater à porta de uma casa onde eu tinha morado por anos, mas eu não podia abrir a porta sem permissão, pois Tim poderia estar em casa. Apesar de eu ainda ter a chave, Tim havia deixado bem evidente que me denunciaria por invasão se eu tentasse usá-la em algum momento.

E eu não poderia usá-la nem se quisesse. Não tinha maçaneta.

Dava para ouvir alguém andando pela sala de estar. A cortina da janelinha na parte superior da porta da frente se moveu, e vi minha mãe dar uma olhada para fora da casa.

Por alguns segundos ela apenas olhou, imóvel.

Ela acabou abrindo a porta alguns centímetros. Foi o bastante para que eu pudesse ver que ainda estava de pijama às duas da tarde, vestindo uma camiseta folgada do Weezer que um dos seus ex-maridos tinha deixado. Eu odiava aquela camiseta porque gostava da banda. Sempre que a usava, ela estragava a banda um pouco mais para mim.

Ela perguntou o que eu estava fazendo ali, e eu não queria contar a história toda imediatamente. Então, perguntei se Tim estava em casa.

Minha mãe abriu a porta um pouco mais e cruzou os braços com tanta força que ficou parecendo que um dos membros da banda tinha sido decapitado. Ela disse que Tim estava trabalhando e perguntou o que eu queria.

Perguntei se eu podia entrar. Ela refletiu e olhou por cima do meu ombro, observando a rua. Não sei o que estava querendo conferir. Talvez tivesse medo de que algum vizinho a visse permitindo a seu próprio filho visitá-la.

Ela deixou a porta aberta para mim enquanto ia se trocar no quarto. Havia uma escuridão sinistra na casa, disso eu lembro. Todas as cortinas estavam fechadas, criando uma

sensação de confusão em relação ao horário. O fato de o relógio do fogão estar piscando, oito horas adiantado, não ajudava. Se eu ainda morasse lá, essa seria mais uma coisa que eu teria consertado.

Se ainda morasse lá, as cortinas estariam abertas. As bancadas da cozinha não estariam cobertas de pratos sujos.

Não haveria uma maçaneta faltando, uma grama malcuidada, dias de jornais empapados um em cima do outro. Foi naquele momento que percebi que, durante todos aqueles anos em que eu crescia, fui eu que cuidei da casa.

Aquilo me deu esperança — esperança de que talvez eles tivessem percebido que minha presença era boa, não inconveniente, e assim eles me deixariam voltar a morar lá até terminar o ensino médio.

Vi uma maçaneta nova na mesa da cozinha, então a peguei e dei uma olhada. A nota fiscal estava embaixo. Olhei a data na nota, e fazia mais de duas semanas que ela tinha sido comprada.

A maçaneta encaixava bem na porta da frente. Não sei por que Tim não a instalara se já estava com ela havia duas semanas, então achei as ferramentas numa gaveta da cozinha e abri a embalagem. Minha mãe demorou vários minutos para sair do quarto, mas, quando saiu, eu já tinha colocado a maçaneta nova na porta.

Ela perguntou o que eu estava fazendo, então girei a maçaneta e abri a porta um pouquinho para lhe mostrar que estava funcionando.

Nunca vou me esquecer da sua reação. Ela bufou e disse:

— Por que ainda faz essas merdas, hein? É como se você quisesse que ele te odiasse. — Ela agarrou a chave de fenda da minha mão. — Talvez seja melhor dar o fora antes que ele perceba que você esteve aqui.

Um dos motivos de sempre bater de frente com as pessoas daquela casa era por sempre achar as reações deles inadequadas. Quando eu ajudava a cuidar da casa sem que me pedissem, Tim dizia que era porque eu queria

provocá-lo. Quando não ajudava, ele dizia que era porque eu era preguiçoso e ingrato.

— Não foi para chateá-lo — respondi. — Consertei sua maçaneta. Estava apenas tentando ajudar.

— Ele ia consertar assim que tivesse tempo.

Parte do problema de Tim era que ele sempre tinha tempo. Nunca conseguia manter um emprego por mais de seis meses e passava mais tempo apostando do que com minha mãe.

— Ele arranjou emprego? — Lembro que perguntei.

— Está procurando.

— E é isso que ele está fazendo agora?

Pela expressão dela, vi que Tim não estava atrás de emprego nenhum. Onde quer que ele estivesse, tenho certeza de que estava deixando minha mãe ainda mais endividada. É provável que a dívida dela tenha sido a gota final que me fez ser expulso de casa em primeiro lugar.

Quando encontrei uma pilha de faturas de cartão de crédito no nome dela, vencidas e com os limites todos estourados, eu o havia confrontado.

Tim não gostava de ser confrontado. Preferia a minha versão pré-adolescente ao quase adulto que eu me tornara.

Gostava da minha versão que ele podia empurrar sem ser empurrado de volta. Da minha versão que ele podia manipular sem que eu reclamasse.

Aquela minha versão desapareceu entre os meus quinze e dezesseis. Quando Tim percebeu que não podia mais me ameaçar fisicamente, ele tentou arruinar minha vida de outras maneiras, e uma delas foi me deixando sem ter onde morar.

Acabei engolindo meu orgulho e indo direto ao ponto.

Contei à minha mãe que não tinha para onde ir.

A expressão dela não foi apenas de falta de empatia, foi de completa irritação.

— Espero que não esteja me pedindo para voltar a morar aqui depois de tudo o que você fez.

— Tudo o que eu fiz? Quer dizer, porque eu fui tirar satisfação com Tim depois que o vício dele em apostas te

deixou endividada?

Foi então que ela me chamou de palhaço. Ou pa-lhi-aço, na verdade. Ela sempre pronunciava a palavra desse jeito.

Tentei implorar, mas logo ela voltou a ser quem eu estava acostumado a ver. Jogou a chave de fenda em mim. Foi tão repentino e inesperado, pois nem estávamos discutindo no momento, que não consegui me abaixar a tempo. Fui atingido bem acima do olho esquerdo, no meio da sobrancelha.

Passei os dedos pela testa e eles saíram manchados de sangue.

Tudo que eu tinha feito foi pedir para voltar. Eu não a desrespeitei. Não a xinguei. Apenas apareci, consertei sua porta e tentei conversar com ela, e acabei com um corte ensanguentado.

Eu me lembro de olhar meus dedos, pensando: “Não foi Tim quem fez isso. Foi minha mãe.”

Por muito tempo, eu culpei Tim por tudo o que dava errado naquela casa, mas tudo o que dava errado naquela casa começava por ela. Tim apenas pegou um ambiente que já era terrível e o deixou ainda pior.

Lembro de pensar que preferia morrer a voltar a morar com minha mãe. Até aquele momento, parte de mim ainda tinha alguns bons sentimentos em relação a ela. Não sei se era um resquício de respeito, mas, por algum motivo, eu conseguia me sentir grato pelo fato de ela ter me mantido vivo quando eu era pequeno. Mas isso não é o mínimo que um pai ou mãe deve fazer quando decide colocar um filho no mundo?

Percebi naquele momento que eu estava lhe dando crédito demais. Sempre associei nosso distanciamento ao fato de ela ser mãe solo, mas havia muitas mães solo e atarefadas que conseguiam ser próximas dos filhos. Mães que defendiam os filhos quando eles eram maltratados. Mães que não viravam a cara quando o filho de treze anos reaparecia de um castigo com o olho roxo e o lábio cortado.

Mães que não permitiam que seus maridos deixassem seu filho adolescente sem ter onde morar.

Apesar de perceber o quanto ela era insensível, tentei, uma última vez, despertar seu lado humano:

— Posso pelo menos pegar algumas das minhas coisas antes de ir embora?

— Não tem nada seu aqui — disse ela. — A gente estava precisando de espaço.

Não consegui encará-la depois disso. Era como se o que ela mais quisesse fosse me apagar da sua vida, então, naquele momento, prometi que a ajudaria a fazer isso.

O sangue estava escorrendo no meu rosto enquanto eu me afastava da casa.

Não tenho palavras para descrever o restante daquele dia.

Eu me senti tão incrivelmente indesejado, sozinho, sem ser amado por ninguém. Eu não tinha ninguém. Não tinha nada.

Nem dinheiro, nem pertences, nem família.

Apenas uma ferida.

Somos mais sensíveis na juventude, e depois de ouvir por anos a fio que você não vale nada, vindo da boca de todas as pessoas que deveriam se importar com você, a gente começa a acreditar nisso. E, aos poucos, você começa a se transformar em nada.

Mas aí eu te conheci, Lily. E apesar de eu não ser nada, quando me olhou, você conseguiu ver alguma coisa. Alguma coisa que eu não conseguia. Você foi a primeira pessoa na minha vida que se interessou por quem eu era como ser humano. Ninguém nunca tinha me perguntado coisas a meu respeito como você fez. Depois daqueles meses que passamos nos conhecendo, parei de sentir que eu não era nada. Você fez com que eu me sentisse interessante e único.

Sua amizade me deu valor.

Sou muito grato por isso. Mesmo que este encontro não dê em nada e que a gente nunca mais se fale, sempre vou ser grato a você, pois, de alguma maneira, você viu algo em mim que minha própria mãe não viu.

Você é minha pessoa favorita, Lily. E agora você sabe o motivo.

Atlas

Estou com um nó tão apertado na garganta que nem consigo me expressar com palavras sobre o que acabo de ler. Deixo o celular na perna e enxugo os olhos. Detesto o fato de Atlas estar dirigindo, pois, se o carro estivesse estacionado, eu jogaria meus braços ao redor dele e lhe daria o abraço mais forte que ele já recebeu.

Provavelmente o beijaria também, e o puxaria para o banco de trás, porque ninguém nunca me disse coisas tão terrivelmente tristes de uma maneira tão doce.

Atlas estende o braço e pega o celular. Coloca-o de volta no porta-copos, mas depois segura minha mão. Entrelaça os dedos nos meus e os aperta enquanto olha para a frente. Seu gesto causa um rebuliço no meu peito. Coloco a minha outra mão em cima da sua, e segurar sua mão assim me faz lembrar todos os trajetos de ônibus em que nós dois ficávamos apenas sentados em silêncio, tristes e com frio, segurando um ao outro.

Olho pela janela, e ele encara a estrada, e não dizemos mais nada enquanto voltamos para a cidade.

Paramos e compramos hambúrgueres para viagem a apenas três quilômetros da minha floricultura. Atlas sabe que não quero Emerson acordada até muito mais tarde do que está acostumada, então comemos no estacionamento da Lily Bloom’s. Desde que voltamos para a cidade e pedimos os hambúrgueres, nossa conversa tem sido bem mais leve. Não deixo de notar que não estou mais envergonhada. Ele se mostrar vulnerável comigo foi o recomeço de que eu precisava para que nosso encontro pudesse voltar ao normal.

Estamos conversando sobre todos os lugares que já visitamos.

Atlas é bem mais viajado do que eu, considerando o tempo que passou na Marinha. Ele já esteve em cinco países, e minha única viagem internacional foi para o Canadá.

— Nunca esteve no México? — pergunta Atlas.

Limpo a boca com um guardanapo.

— Nunca.

— Você e Ryle não tiveram lua de mel?

Argh. Odeio o som do nome dele no meio deste encontro.

— Não, a gente se casou em Las Vegas sem planejar nada. Não tivemos tempo para lua de mel.

Atlas toma um gole de sua bebida. Quando me fita, é com um olhar penetrante, como se quisesse desvendar aquilo que não estou dizendo.

— Você queria ter feito uma festa?

Dou de ombros.

— Sei lá. Sempre soube que Ryle nunca teve vontade de se casar, então quando ele sugeriu que fôssemos para Las Vegas pra gente se casar, pensei que era uma oportunidade que poderia nunca mais acontecer. Acho que senti que um casamento daquela maneira improvisada era melhor do que não me casar com ele.

— E se você se casasse de novo? Faria alguma coisa diferente?

Rio da pergunta e faço que sim na mesma hora.

— Mas é óbvio! Eu quero tudo: as flores, as madrinhas, o pacote completo. — Ponho uma batata na boca. — E votos românticos, e uma lua de mel ainda mais romântica.

— Para onde você iria?

— Paris. Roma. Londres. Não tenho vontade de ficar sentada sob o sol em praia nenhuma. Quero ver todos os lugares românticos da Europa e fazer amor em todas as cidades e tirar fotos dando beijo na frente da Torre Eiffel. Quero comer croissants e ficar de mãos dadas em trens. — Solto a caixinha vazia das batatas fritas dentro do saco. — E você?

Atlas estende o braço para alcançar minha outra mão e a segura. Ele não responde. Apenas sorri para mim e aperta minha mão, como se ainda fosse cedo demais para revelar seu desejo.

Segurar a mão dele me parece tão natural. Talvez seja porque a gente fazia muito isso na adolescência, mas ficar sentada aqui no carro com ele e não segurar sua mão parece mais esquisito do que segurá-la.

Mesmo com a interrupção que criei no nosso encontro quando peguei no sono, a noite toda foi tranquila e fácil. Estar perto dele é algo instintivo. Passo o dedo em cima do seu pulso.

— Preciso ir pra casa.

— Eu sei — diz ele, roçando o polegar no meu.

O celular de Atlas apita, então ele o pega com a outra mão e lê a mensagem que chegou. Ele suspira baixinho, e a maneira como solta o celular no porta-copos me passa a impressão de que ele está irritado com quem quer que tenha lhe mandado a mensagem.

— Está tudo bem?

Atlas abre um sorriso forçado, pouco convincente. Posso ver que há algo errado, e ele sabe disso. Ele desvia a vista e olha para nossas mãos. Depois vira a minha até a palma ficar para cima e começa a traçar linhas nela. Seu dedo mais parece um para-raios, fazendo a eletricidade se espalhar da minha mão para todo o meu corpo.

— Minha mãe me ligou na semana passada.

Sou pega de surpresa por isso.

— O que ela queria?

— Não sei. Desliguei antes que pudesse dizer, mas tenho quase certeza de que ela está precisando de dinheiro.

Junto nossas mãos de novo. Não sei o que falar. Deve ser difícil passar quinze anos sem ter notícias da mãe e depois ela finalmente entrar em contato quando precisa de alguma coisa. Isso faz eu me sentir muito grata pela enorme presença da minha mãe na minha vida.

— Não queria soltar essa bomba quando você está com pressa.

Vamos deixar alguns papos para o nosso segundo encontro. — Ele sorri para mim, mudando a vibe completamente. É incrível como seu sorriso define o que acontece dentro de mim. — Vamos, eu te acompanho até seu carro.

Dou uma risada, pois meu carro está literalmente a um metro e meio de distância. Mas Atlas passa pela frente do seu carro, abre a porta do carona e me ajuda a sair. Em seguida, cada um dá um passo e chegamos ao meu carro.

— Adorei a caminhada — brinco.

Ele abre um sorriso rápido, e não sei se era para me seduzir, mas de repente sinto um calor no corpo inteiro, apesar do tempo frio. Atlas dá uma olhada por cima do meu ombro, indicando o meu carro.

— Tem mais algum diário aí dentro?

— Aquele era o único.

— Droga — lamenta ele.

Atlas encosta o ombro no meu carro, então faço o mesmo, ficando de frente para ele.

Não sei se estamos prestes a nos beijar. Eu não acharia ruim, mas também acabei de comer cebola após passar mais de uma hora dormindo, então duvido que minha boca esteja muito atrativa no momento.

— Você me dá outra chance? — pergunto.

— Em relação a quê?

— Ao nosso encontro. Gostaria de estar acordada no próximo.

Atlas ri, mas depois sua risada se dissipa. Ele me encara por um instante.

— Tinha esquecido o quanto é divertido estar com você.

Suas palavras me confundem, pois eu não diria que nosso período juntos naquela época tenha sido divertido. Foi triste, na melhor das hipóteses.

— Você acha que aquela época foi divertida?

Ele ergue um pouco os ombros.

— Bem, foi o pior momento da minha vida, com certeza. Mas as lembranças que tenho com você daquela época são algumas das minhas favoritas.

Seu elogio me faz corar. Ainda bem que está escuro.

Mas ele tem razão. Foi uma fase ruim para nós dois, no entanto, ainda assim, estar com ele foi o ponto alto da minha adolescência.

Acho que divertido é a maneira perfeita de descrever o que conseguimos criar no meio daquilo. E se conseguimos nos divertir num momento tão ruim das nossas vidas, como seríamos nos melhores momentos delas?

É exatamente o oposto do que pensei sobre Ryle na semana passada. Passei por momentos péssimos com Atlas, e ele nunca foi nada além de incrível e respeitoso comigo. Já o homem que escolhi para ser meu marido me desrespeitou de maneiras que ninguém jamais deveria conhecer — e isso durante um momento ótimo das nossas vidas.

Sou grata a Atlas porque sei que agora ele é o padrão ao qual eu comparo as pessoas. Ele é o padrão ao qual eu deveria ter comparado Ryle desde o princípio.

Uma conveniente rajada de ar passa entre nós dois. Seria a desculpa perfeita para Atlas me puxar para perto, mas ele não o faz.

Em vez disso, o silêncio entre nós vai aumentando até sobrar apenas uma escolha: ou nos beijamos, ou nos despedimos.

Atlas afasta uma mecha de cabelo da minha testa.

— Não vou te beijar ainda.

Torço para que minha decepção não fique evidente, mas sei que fica. Eu praticamente murcho na frente dele.

— É meu castigo por ter cochilado?

— Claro que não. É só porque estou me sentindo inferior depois de ler sobre nosso primeiro beijo.

Dou uma risada.

— Inferior a quem? A você mesmo?

Ele assente.

— Visto pelos seus olhos, o Atlas adolescente era puro charme.

— O Atlas adulto também é.

Ele geme um pouquinho, como se já quisesse mudar de ideia a respeito do beijo. O gemido deixa as coisas um pouco mais sérias.

Ele se afasta do carro até parar bem na minha frente. Recosto-me na porta do carro e o encaro, torcendo para que ele esteja prestes a me dar um beijo de deixar as pernas bambas.

— Além disso, você me pediu para ir devagar, então...

Que droga. Eu pedi mesmo isso. E disse bem devagar, se não me engano. Eu me odeio.

Atlas se inclina para a frente e eu fecho os olhos. Sinto seu hálito se espalhar pelo meu rosto pouco antes de ele me dar um beijo rápido na bochecha.

— Boa noite, Lily.

— Tudo bem.

Tudo bem? Por que eu disse “tudo bem”? Estou tão nervosa.

Atlas ri baixinho. Quando abro os olhos, ele está se afastando de mim, voltando para o lado do motorista do seu carro. Antes de ir embora, ele apoia o braço no teto do carro e diz:

— Espero que consiga dormir esta noite.

Assinto, mas não sei se será possível. Parece que toda a cafeína que consumi hoje está fazendo efeito de uma vez. E não vou conseguir dormir depois deste encontro. Vou ficar pensando na

carta que ele escreveu para mim. E quando não estiver pensando nela, estarei reencenando mentalmente nosso primeiro beijo a noite inteira, pensando em como será a parte dois.

Continue a nadar, nadar, nadar...

Os sons familiares de Procurando Nemo estão vindo da sala de estar de Allysa e Marshall quando abro a porta do apartamento deles.

Quando passo pela cozinha, Marshall está na frente da geladeira com ambas as portas escancaradas. Ele me cumprimenta com a cabeça e eu aceno, mas não quero puxar papo com ele, pois mal posso esperar para abraçar Emerson.

Quando entro na sala, fico chocada ao ver Ryle no sofá. Ele não mencionou que estaria de folga hoje à noite. Emerson está dormindo no peito dele, e Allysa não está em canto nenhum.

— Oi.

Ryle não se vira para me cumprimentar, mas não é necessário: posso ver que tem alguma coisa o incomodando. Vejo a tensão em seu maxilar como um sinal evidente de que está zangado. Quero pegar Emerson, mas ela parece relaxada, então a deixo acomodada no peito de Ryle.

— Faz quanto tempo que ela dormiu?

Ryle ainda está encarando a televisão, com uma das mãos protegendo as costas de Emmy e a outra atrás da cabeça.

— Desde que o filme começou.

Reconheço a cena, então faz cerca de uma hora.

Allysa finalmente aparece na sala, aliviando o clima.

— Oi, Lily. Me desculpe por ela ter dormido. Fizemos de tudo para deixá-la acordada.

Nós duas nos entreolhamos por dois segundos. Allysa se desculpa silenciosamente pelo fato de Ryle estar aqui. Respondo em silêncio que não tem problema. Eles são irmãos — não posso esperar que ele não venha para cá quando sabe que ela está cuidando da nossa filha.

Ryle gesticula para Allysa.

— Você pode colocar Emerson no moisés? Preciso conversar com Lily.

A rispidez em sua voz assusta nós duas. Eu e Allysa voltamos a nos entreolhar enquanto ela tira Emerson do colo de Ryle. A vontade de pegá-la só aumenta enquanto Allysa a deixa no moisés.

Ryle se levanta e, pela primeira vez desde que cheguei, faz contato visual comigo. Ele me olha da cabeça aos pés, reparando na roupa e nos saltos que estou usando. Observo enquanto engole em seco lentamente. Ele vira a cabeça para cima, indicando que quer conversar comigo no terraço da cobertura do prédio.

Seja lá qual for a conversa, ele quer privacidade total.

Ele sai do apartamento em direção ao terraço, e olho para Allysa em busca de orientação. Quando Ryle se afasta, ela avisa:

— Eu disse a ele que você tinha um evento hoje.

— Obrigada. — Allysa jurou que não contaria para Ryle sobre meu encontro, mas não sei por que ele está tão zangado se não sabe onde eu estava. — Por que ele está chateado?

Allysa dá de ombros.

— Não faço ideia. Ele parecia bem quando chegou aqui uma hora atrás.

Eu sei melhor do que ninguém que Ryle é capaz de parecer bem num instante e, no outro, parecer o oposto. No entanto, costumo saber o que o irritou.

Será que ele descobriu que saí com alguém ? Será que descobriu que foi com Atlas?

Quando chego ao terraço, vejo Ryle encostado na beirada, olhando para baixo. Já sinto um frio na barriga. Meus saltos estalam no piso enquanto vou até ele.

Ryle me olha rapidamente.

— Você está... bonita.

Ele diz como se fosse um insulto, não um elogio. Ou talvez seja apenas minha culpa falando.

— Obrigada.

Eu me encosto na beirada, esperando que ele diga o que o está incomodando.

— Está voltando de um encontro?

— Eu estava num evento. — Confirmo a mentira de Allysa. Não adianta ser honesta com ele, pois ainda é cedo demais para saber se essa história com Atlas vai dar em alguma coisa, e a verdade só

deixaria Ryle ainda mais chateado. Pressiono as costas na beirada e cruzo os braços na frente do peito. — O que foi, Ryle?

Ele faz uma pausa antes de finalmente falar:

— Eu nunca tinha visto aquele desenho antes de hoje.

Ele está apenas tentando puxar papo ou está irritado com alguma coisa? Não estou entendendo nada dessa conversa.

Mas aí a ficha cai.

Eu juro, às vezes sou a maior idiota. É óbvio que ele está chateado. Certa vez, ele leu tudo que tinha nos meus diários. Ele sabe o quanto aquele filme é importante para mim depois de ler o que escrevi sobre a história. Mas, agora que ele finalmente o viu, imagino que tenha encaixado as peças. E pelo jeito, ele encaixou ainda mais peças também.

Agora ele se vira e me olha como se estivesse se sentindo traído.

— Você colocou o nome Dory na nossa filha? — Ele dá um passo à frente. — O nome do meio da nossa filha é por causa do seu vínculo com aquele homem?

Sinto meu coração disparar na mesma hora. Aquele homem.

Interrompo o contato visual enquanto penso em como explicar isso direito. Quando escolhi que Dory seria o nome do meio de Emerson, não foi pensando em Atlas. Aquele filme era importante para mim muito antes de Atlas aparecer na minha vida, mas eu devia ter pensado melhor antes de colocar esse nome nela.

Limpo a garganta, abrindo caminho para a verdade.

— Escolhi esse nome porque a personagem me inspirou quando eu era mais jovem. Não teve nada a ver com mais ninguém.

Ryle solta uma risada exasperada, decepcionada.

— Você é mesmo foda, Lily.

Quero argumentar para provar a verdade do que eu disse, mas estou ficando nervosa. Seu comportamento está trazendo à tona todos os medos que já tive em relação a ele. Tento acalmar a situação escapando dela.

— Vou para casa.

Começo a descer a escada, mas ele se adianta e passa na minha frente, se colocando entre mim e a porta da escada. Dou um

passo nervoso para trás. Coloco a mão no bolso à procura do celular caso precise usá-lo.

— Vamos mudar o nome do meio dela — avisa.

Mantenho a voz firme e calma enquanto respondo:

— O nome dela é Emerson em homenagem ao seu irmão. Essa é a sua ligação com o nome dela. O nome do meio é a minha ligação. Acho mais do que justo. Você está procurando pelo em casca de ovo.

Vou para o lado querendo passar, mas ele me acompanha.

Dou uma olhada por cima do ombro para medir a distância entre mim e a beirada. Não que eu ache que ele vá me jogar, mas eu também não achava que ele era capaz de me empurrar escada abaixo.

— Ele sabe? — pergunta Ryle.

Ele não precisa dizer o nome de Atlas para que eu saiba a quem está se referindo. Sou invadida pela culpa e fico preocupada por achar que Ryle pode perceber isso.

Atlas sabe que o nome do meio de Emerson é Dory porque fiz questão de lhe dizer. Mas estou sendo sincera: o nome não é por causa dele. O nome é por minha causa. Dory era minha personagem favorita antes mesmo de eu saber da existência de Atlas Corrigan. Eu admirava a força dela, e só escolhi esse nome para a minha filha porque espero que ela tenha, acima de tudo, força.

Porém, a reação de Ryle está me dando vontade de me desculpar, porque Procurando Nemo é mesmo importante para Atlas e para mim, algo que se tornou óbvio quando saí correndo atrás de Atlas na rua para lhe contar o nome dela.

Talvez Ryle tenha razão de estar com raiva.

Essa é a questão, contudo. Ryle pode sentir raiva, mas isso não significa que eu mereço tudo que vem junto. Estou caindo de novo na mesma armadilha de esquecer que nenhuma ação minha justifica suas ações extremas do passado.

Posso não ser perfeita, mas não mereço temer pela minha própria vida sempre que cometo um erro. E talvez esse erro de agora mereça ser mais discutido, mas não me sinto à vontade para

conversar sobre isso com Ryle num terraço de cobertura sem nenhuma testemunha.

— Você está me deixando nervosa. Podemos voltar lá para baixo, por favor?

O comportamento inteiro de Ryle muda assim que digo isso. É

como se o tamanho do insulto o abalasse.

— Lily, sério. — Ele se afasta da porta e anda até o outro lado do terraço. — A gente está discutindo. As pessoas discutem. Pelo amor de Deus.

Ele se vira, me dando as costas.

Lá vem o gaslighting. Ryle está tentando fazer com que eu ache que é loucura ter medo, apesar de meu medo ser mais do que justificado. Encaro-o por um instante e me pergunto se a discussão acabou ou se ele tem algo mais a dizer. Quero que esteja terminada, então abro a porta da escada.

— Lily, espere.

Paro porque sua voz está bem mais calma, o que me faz pensar que talvez ele seja capaz de conversar sem descambar para nenhuma briga explosiva. Ryle se aproxima de mim com a expressão sofrida.

— Desculpe. Você sabe como eu me sinto em relação a tudo o que tem a ver com ele.

Sei mesmo, e é exatamente por isso que estou tão dividida sobre a possibilidade de Atlas voltar a fazer parte da minha vida. Só de pensar em ter que confrontar Ryle sobre isso me dá vontade de vomitar. Ainda mais agora.

— Fiquei chateado por descobrir que o nome do meio da nossa filha possa ter sido escolhido para me magoar. Você não pode esperar que uma coisa dessas não me afete.

Eu me recosto na parede e cruzo os braços na frente do peito.

— Não teve nada a ver com você nem com Atlas. Foi uma coisa só minha. Juro.

Só de mencionar o nome de Atlas em voz alta parece deixar o ar entre nós dois mais tenso, como se fosse algo tangível que Ryle pudesse esmurrar.

Ryle assente, a expressão tensa, mas parece aceitar a resposta.

Para

ser

sincera,

nem

sei

se

ele

deveria.

Talvez,

subconscientemente, eu tenha mesmo feito isso para magoá-lo. A esta altura, nem sei mais. A raiva dele está me fazendo questionar minhas próprias intenções.

Tudo isso me parece familiar demais.

Nós dois ficamos quietos por um tempo. Tudo que eu quero é ir atrás de Emerson, mas Ryle parece ter mais a dizer, pois se aproxima e coloca a mão na parede atrás da minha cabeça. Fico aliviada por ele não parecer mais estar zangado, mas não sei se gosto da expressão no seu olhar que substituiu a raiva. Não é a primeira vez que ele me olha assim desde que nos separamos.

Sinto meu corpo inteiro enrijecer com a mudança gradual em seu comportamento. Ele se aproxima alguns centímetros, ficando perto demais, e abaixa a cabeça.

— Lily — diz ele, a voz um sussurro áspero. — O que a gente está fazendo?

Não lhe respondo porque não sei o motivo da pergunta. Estamos tendo uma conversa. Uma conversa iniciada por ele.

Ryle ergue a mão e passa o dedo na gola do meu macacão, que está um pouco à mostra por baixo do meu casaco. Quando ele suspira, seu hálito atravessa meu cabelo.

— Tudo seria tão mais fácil se a gente pudesse simplesmente...

Ryle faz uma pausa, talvez para pensar no que está prestes a dizer. Nas palavras que não quero ouvir.

— Pare — sussurro, impedindo-o de terminar.

Ele não conclui o pensamento, mas também não se afasta. Na verdade, parece até que chega ainda mais perto. Não fiz nada no passado para ele achar que pode se aproximar de mim desse jeito.

Não faço nada que lhe dê esperanças de que teremos qualquer coisa além de uma relação coparental civilizada. É sempre ele que fica tentando ultrapassar os meus limites e chegar perto daquilo que eu considero aceitável e, francamente, cansei disso.

— E se eu tiver mudado? — pergunta ele. — Mudado de verdade?

Agora seus olhos estão cheios de sinceridade e sofrimento.

Isso não me afeta nem um pouco. Nem um pouco mesmo.

— Para mim não faz diferença se você mudou, Ryle. Eu espero que você tenha mudado. Mas não cabe a mim testar essa teoria.

Essas palavras o abalam bastante. Vejo quando precisa de um momento para reprimir alguma resposta grosseira que sabe que não deve dar neste momento. Ele para de falar, para de me olhar, para de ficar grudado em mim.

Ryle bufa, frustrado, depois se afasta e se dirige para a escada.

Tomara que esteja indo para o próprio apartamento. Ele bate a porta após entrar.

Não vou atrás dele imediatamente, por motivos óbvios. Preciso de espaço. Preciso assimilar as coisas.

Não é a primeira vez que Ryle me pergunta o que estamos fazendo, como se nosso divórcio fosse algum joguinho meu. Às vezes ele diz isso casualmente, outras, por mensagem.

Algumas vezes chega até a fazer piada. No entanto, toda vez que insinua o quanto nosso divórcio é um absurdo, reconheço o que está fazendo. É uma tática de manipulação. Ele acha que, se tratar nosso divórcio como uma bobagem nossa, eu vou acabar concordando e voltando com ele.

A vida dele ficaria mais fácil se eu o aceitasse de volta. Até as vidas de Allysa e Marshall ficariam mais fáceis, pois os dois não precisariam lidar com o nosso divórcio nem pisar em ovos com Ryle.

Mas a minha vida não ficaria mais fácil. Não é nada fácil temer pela própria segurança sempre que se pisa em falso.

A vida de Emerson não ficaria mais fácil. Eu tive a vida dela. Não é nada fácil viver num lar daqueles.

Espero minha raiva se dissipar antes de voltar lá para baixo, mas isso não acontece. Ela apenas vai aumentando a cada degrau que desço. É como se minha reação fosse intensa demais para o que acabou de acontecer ou pode ser que eu tenha apenas me condicionado a sentir isso quando estou com Ryle. Quem sabe não seja uma mistura disso com minha falta de sono? Ou ainda o encontro com Atlas que eu quase arruinei? O que quer que esteja causando uma reação tão forte me domina ainda mais quando estou diante da porta de Allysa.

Preciso de um instante para me recompor antes de ficar perto da minha filha, então me sento no corredor para chorar. Gosto de chorar sozinha. Acontece com certa regularidade, infelizmente, mas tenho me sentido sobrecarregada com frequência. O divórcio é

cansativo, ser mãe solo é cansativo, cuidar de um negócio é cansativo, lidar com um ex-marido que ainda me assusta é cansativo.

E também há a pontada de medo que se infiltra na minha consciência quando Ryle diz algo para insinuar que nosso divórcio foi um erro. Porque às vezes eu realmente me pergunto se minha vida não seria menos cansativa se eu tivesse um marido que ajudasse na criação da nossa filha. E às vezes me pergunto se não estou exagerando ao não deixar minha filha dormir na casa do pai.

Relacionamentos e acordos de guarda compartilhada não vêm com manuais, infelizmente.

Não sei se cada atitude que tomo é a correta, mas estou fazendo o melhor que posso. Não preciso da manipulação dele, muito menos do seu gaslighting.

Queria estar em casa, onde poderia ir até meu porta-joias pegar minha lista de motivos. Eu deveria tirar uma foto para tê-la sempre no celular. Com certeza subestimo o quanto as interações com Ryle podem ser difíceis e confusas.

Como as pessoas largam esses ciclos quando não têm os recursos que tive nem o apoio dos amigos e da família? Como elas se mantêm fortes em todos os segundos do dia? Me parece que basta um momento de fraqueza, de insegurança, na presença do ex para a pessoa se convencer de que tomou a decisão errada.

Toda pessoa que já deixou um cônjuge manipulador e abusivo e conseguiu se manter longe dele merece uma medalha. Uma estátua. Um filme de super-herói, cacete.

É óbvio para mim que a sociedade tem idolatrado os heróis errados esse tempo todo, pois estou convencida de que erguer um prédio nos braços requer menos força do que abandonar de vez uma situação abusiva.

Ainda estou chorando alguns minutos depois quando ouço a porta de Allysa se abrir. Olho para cima e vejo Marshall saindo do apartamento com dois sacos de lixo. Ele para ao me ver sentada no chão.

— Ah.

Ele olha para os lados, como se esperasse que outra pessoa viesse me ajudar. Não que eu precise de ajuda. Eu precisava de um

respiro, só isso.

Marshall deixa os sacos no chão e se aproxima. Ele se senta na minha

frente

e

estende

as

pernas.

Coça

o

joelho

desconfortavelmente.

— Não sei bem o que dizer. Não sou muito bom nisso.

Seu constrangimento me faz rir no meio das lágrimas. Ergo a mão, frustrada.

— Eu estou bem. É que às vezes preciso chorar depois de uma briga com Ryle, só isso.

Marshall dobra a perna como se estivesse prestes a se levantar e ir atrás de Ryle.

— Ele te machucou?

— Não. Não, ele estava relativamente calmo.

Marshall relaxa e se acomoda de novo, e não sei o porquê, talvez seja por ele ter dado o azar de estar na minha frente agora, mas lhe conto tudo que estou pensando.

— Acho que o problema é justamente esse. Desta vez ele tinha mesmo o direito de estar irritado comigo e se manteve relativamente calmo. Às vezes a gente se desentende e não acontece nada além de uma discussão. E quando isso ocorre, eu começo a me perguntar se não foi um exagero pedir o divórcio. Quer dizer, sei que não foi exagero. Sei que não foi. Mas ele sabe plantar as sementinhas da dúvida em mim, como se talvez as coisas pudessem ter melhorado se eu tivesse apenas lhe dado mais tempo para melhorar. — Eu me sinto mal por estar despejando tudo isso em Marshall. Não é justo com ele. Ryle é seu melhor amigo. —

Desculpe. Isso não é problema seu.

— Allysa me traiu.

As palavras de Marshall me deixam tão perplexa que fico calada por uns cinco segundos.

— O... o quê?

— Faz muito tempo. A gente conseguiu se resolver, mas, cacete, doeu pra caramba. Ela partiu meu coração.

Estou balançando a cabeça, tentando assimilar a informação.

Ele continua falando, contudo, então tento acompanhar.

— Não estávamos num momento bom. Estudávamos em universidades diferentes, tentamos fazer o relacionamento à

distância dar certo, e éramos jovens. E nem foi nada de mais. Ela bebeu e pegou um cara qualquer numa festa antes de lembrar o quanto eu sou maravilhoso. Mas quando ela me contou... Nunca senti tanta raiva na vida. Nada jamais me ferira daquele jeito. Quis retaliar, quis traí-la para ela saber como era, quis furar seus pneus e gastar todo o limite dos seus cartões de crédito e queimar todas as suas roupas. Mas, por mais que eu estivesse furioso, quando ela estava na minha frente, eu jamais, nem por um segundo, pensei em machucá-la fisicamente. Na verdade, eu só queria abraçá-la e chorar no ombro dela.

Marshall me olha com sinceridade.

— Quando penso em Ryle te batendo... sinto uma raiva absurda.

Porque amo o cara. Amo mesmo. Ele é meu melhor amigo desde que éramos crianças. Mas também o odeio por ele não ser uma pessoa melhor. Nada do que você fez e nada do que você poderia fazer justificaria um homem pôr as mãos em você por raiva. Lembre-se disso, Lily. Você tomou a decisão certa ao sair daquela situação.

E jamais deveria se sentir culpada por isso. Tudo o que você deveria sentir é orgulho.

Eu não fazia ideia do quanto isso estava pesando em mim, mas as palavras de Marshall tiram um fardo tão grande de cima de mim que senti como se pudesse voar.

Acho que essas palavras não seriam tão importantes se tivessem vindo de outra pessoa. Receber essa validação de alguém que ama Ryle como a um irmão tem algo de reafirmador. De empoderador.

— Você está errado, Marshall. Você é bom pra cacete nisso.

Marshall sorri e me ajuda a levantar. Ele pega os sacos de lixo, e eu volto para o apartamento deles para ir até a minha filha e lhe dar um baita abraço.

13. Atlas

É incrível como uma noite pode deixar de ser algo que eu queria que acontecesse havia anos para ser algo que eu temia havia anos.

Se eu não tivesse acabado de receber aquela mensagem enquanto estava deixando Lily, eu certamente a teria beijado. Mas não quero que haja nenhuma distração durante nosso primeiro beijo como adultos.

A mensagem era de Darin me avisando que minha mãe estava no Bib’s. Não contei a Lily da mensagem porque ainda não tinha lhe contado que minha mãe estava tentando voltar para a minha vida.

Então, assim que lhe contei que minha mãe tinha ligado, me arrependi. O encontro estava indo tão bem, e isso arriscava encerrá-lo de uma maneira tão triste.

Não respondi a Darin porque não queria interromper meu tempo com Lily. Porém, mesmo depois que o encontro acabou e que fomos embora nos nossos próprios carros, não respondi à mensagem.

Passei meia hora dirigindo sem rumo, tentando resolver o que ia fazer.

Estou torcendo para que minha mãe tenha se cansado de me esperar. Demorei para voltar ao restaurante, mas agora estou aqui e preciso confrontar a situação. Ela parece querer falar comigo de qualquer forma.

Estaciono no beco atrás do Bib’s para poder sair pela porta dos fundos caso ela esteja esperando na entrada do restaurante ou sentada a uma mesa. Não sei se ela me reconheceria se me visse, mas prefiro ter a vantagem de me aproximar dela nos meus termos.

Darin me vê entrar pelos fundos e se aproxima de mim na mesma hora.

— Recebeu minha mensagem?

Faço que sim e tiro o casaco.

— Recebi. Ela ainda está aqui?

— Está, insistiu em esperar. Coloquei-a na mesa oito.

— Valeu.

Darin me olha cautelosamente.

— Talvez eu esteja passando dos limites, mas... juro que você me disse que sua mãe tinha morrido.

Isso quase me faz rir.

— Eu nunca disse morrido. Disse que ela tinha partido. É

diferente.

— Posso dizer a ela que você não vai voltar aqui hoje. — Ele deve estar sentindo a tempestade se formando.

— Pode deixar. Tenho a sensação de que ela só vai embora depois que eu falar com ela.

Darin assente e se vira para voltar à sua estação na cozinha.

Ainda bem que ele não fez muitas perguntas, pois não sei por que ela está aqui nem quem ela é no momento. Deve estar querendo dinheiro. Caramba, eu lhe daria dinheiro se isso significasse não precisar mais lidar com suas ligações nem com suas visitas inesperadas.

Deveria ter me preparado para isso. Vou até o escritório e pego algum dinheiro no cofre, depois passo pelas portas da cozinha e entro no restaurante. Hesito antes de olhar para a mesa oito.

Quando olho, fico aliviado de ver que ela está de costas para mim.

Respiro fundo para me acalmar e vou até lá em seguida. Não quero abraçá-la nem fingir ser educado, então, depois que fazemos contato visual, eu me sento na frente dela de uma vez, sem esperar.

Quando me olha do outro lado da mesa, sua expressão de indiferença é a mesma de sempre. O canto da sua boca está um pouquinho voltado para baixo, mas é sempre assim. Embora não perceba, ela vive de cara fechada.

Parece cansada. Faz apenas uns treze anos que não a vejo, mas há décadas de novas rugas ao redor de seus olhos e de sua boca.

Ela me observa por um instante. Sei que mudei demais desde a última vez que me viu, mas minha mãe não demonstra nenhuma surpresa em relação a isso. Está completamente impassível, como se fosse eu que devesse falar primeiro. Não falo.

— Tudo isso é seu? — pergunta, finalmente, gesticulando para o restaurante.

Assinto.

— Nossa.

Qualquer pessoa que estivesse nos vendo acharia que ela está impressionada. Mas ninguém a conhece como eu. Essa palavra foi para me esculachar, como se ela estivesse dizendo: “Nossa, Atlas.

Você não é inteligente o bastante para ter algo assim.”

— De quanta grana você precisa?

Ela revira os olhos.

— Não estou aqui porque quero dinheiro.

— Então o que foi? Precisa de um rim? De um coração?

Ela se recosta na cadeira, apoiando as mãos no colo.

— Esqueci o quanto era difícil conversar com você.

— Então por que ainda tenta?

Minha mãe semicerra os olhos. Ela só conhecia a versão de mim que se sentia intimidada por ela. Não me sinto mais assim. Apenas zangado e decepcionado.

Ela bufa, depois traz os braços de volta para a mesa e os cruza, me olhando com atenção.

— Não consigo encontrar o Josh. Estava na esperança de que estivesse em contato com ele.

Sei que faz muito tempo que não vejo minha mãe, mas não consigo de jeito nenhum lembrar quem é Josh. Quem diabos é Josh? Um namorado novo que ela acha que eu devia conhecer?

Será que ela ainda está usando drogas?

— Ele vive fazendo isso, mas nunca por tanto tempo assim. Se não voltar para o colégio, estão ameaçando me denunciar por causa das faltas.

Estou absolutamente perdido.

— Quem é Josh?

Ela joga a cabeça para trás, como que irritada por eu não estar acompanhando.

Josh. Seu irmão mais novo. Ele fugiu de novo.

Meu... irmão?

Irmão.

— Sabia que os pais podem ser presos quando os filhos levam muitas faltas no colégio? Eu posso ser presa, Atlas.

— Eu tenho um irmão?

— Você sabia que eu estava grávida quando fugiu de casa.

Eu não sabia mesmo...

— Eu não fugi de casa, você me expulsou.

Não sei por que preciso deixar óbvio esse fato, ela sabe muito bem disso. Está apenas tentando se esquivar da culpa. Mas agora faz muito mais sentido ela ter me expulsado naquela época. Eles estavam com um bebê a caminho, e eu não me encaixava mais naquele cenário.

Ergo os dois braços e entrelaço as mãos atrás da cabeça, frustrado. Chocado. Depois os encosto na mesa de novo e me inclino para a frente tentando entender.

— Eu tenho um irmão? Quantos anos ele tem? Quem é o... Ele é filho do Tim?

— Ele tem onze anos. E sim, Tim é o pai, mas ele foi embora anos atrás. Nem sei mais onde ele mora.

Espero a ficha cair por completo. Eu estava esperando qualquer coisa, menos isso. Tenho tantas perguntas, mas o mais importante no momento é descobrir onde o menino está.

— Quando foi a última vez que o viu?

— Umas duas semanas atrás — responde.

— E você comunicou à polícia?

Ela franze o rosto.

— Não. É óbvio que não. Ele não desapareceu, está apenas querendo encher meu saco.

Tenho que colocar a mão nas têmporas para não erguer a voz.

Ainda não entendo como ela me encontrou ou por que ela pensa que um menino de onze anos está tentando dar uma lição nela, mas agora meu único objetivo é encontrá-lo.

— Você voltou a morar em Boston? Ele desapareceu aqui?

Minha mãe faz uma cara de confusão.

— Voltei a morar?

Parece que estamos falando duas línguas diferentes.

— Você voltou a morar aqui ou ainda mora no Maine?

— Ah, meu Deus — sussurra ela, tentando lembrar. — Eu voltei pra cá, tipo, uns dez anos atrás. Josh era apenas um bebê.

Ela está morando aqui faz dez anos?

— Eles vão me prender, Atlas.

O filho dela está desaparecido há duas semanas, e ela está mais preocupada com a própria prisão do que com ele. Tem gente que não muda nunca.

— O que você precisa que eu faça?

— Sei lá. Estava esperando que ele tivesse entrado em contato com você e que talvez você soubesse onde ele estava. Mas se nem sabia que ele existia...

— Por que ele entraria em contato comigo? Ele sabe que existo?

O que ele sabe?

— Além do seu nome? Nada. Você nunca esteve por perto.

A adrenalina me invade e fico chocado de ainda estar sentado na frente dela. Meu corpo inteiro está tenso quando me inclino para a frente.

— Deixe-me entender isso direito. Tenho um irmão mais novo que eu nem sabia que existia, e ele acha que eu não dava a mínima para ele?

— Não acho que ele pense muito em você, Atlas. Você esteve ausente durante a vida inteira dele.

Ignoro a alfinetada porque ela está enganada. Qualquer menino dessa idade pensa no irmão que ele acha que o abandonou. Tenho certeza de que ele me detesta. Cacete, é provável que seja ele que... merda. É óbvio.

Isso explica tanta coisa. Aposto meus dois restaurantes que é ele quem está por trás do vandalismo. E é por isso que a pronúncia errada me lembrou da minha mãe. O menino tem onze anos, tenho certeza de que ele é capaz de pesquisar minhas informações no Google.

— Onde você mora? — pergunto.

Ela praticamente se encolhe na cadeira.

— Estamos num período de transição de moradia, então passamos os últimos meses no Risemore Inn.

— Fique lá para o caso de ele aparecer — sugiro.

— Não tenho mais dinheiro para ficar lá. Estou sem trabalho, então estou passando uns dias na casa de uma amiga.

Eu me levanto e tiro o dinheiro do bolso, depositando na mesa na frente dela.

— O número do qual você me ligou no outro dia... Era seu celular?

Ela assente, puxando o dinheiro da mesa e o colocando na mão.

— Eu ligo se descobrir alguma coisa. Volte para o hotel e tente conseguir o mesmo quarto de antes. Ele precisa que você esteja lá caso volte.

Minha mãe concorda, e pela primeira vez parece um tanto envergonhada. Deixo-a assimilando esse sentimento e saio sem me despedir. Espero que agora ela esteja sentindo ao menos uma parte do que me fez sentir durante anos. Do que ela provavelmente está fazendo meu irmão mais novo sentir.

Não consigo acreditar nisso. Ela foi lá e gerou outro ser humano e nem pensou em me contar?

Vou direto para a cozinha e saio pela porta dos fundos. Não tem ninguém no beco agora, então paro um instante para me recompor.

Acho que nunca me senti tão perplexo.

O filho dela está andando sozinho pelas ruas de Boston, e ela espera duas semanas para tomar alguma atitude, cacete? Nem sei por que estou surpreso. É quem ela é. É quem sempre foi.

Meu telefone começa a tocar. Estou tão nervoso que quero atirá-lo na caçamba, mas, quando vejo que é Lily me ligando pelo FaceTime, eu me acalmo.

Deslizo o dedo na tela, pronto para lhe dizer que não é um bom momento, mas quando seu rosto surge, o momento parece perfeito.

É um alívio ter notícias dela, embora faça apenas uma hora que a gente se despediu. Eu daria tudo para entrar no celular e abraçá-la.

— Oi — digo, tentando manter a voz tranquila, mas há uma rispidez que fica evidente.

Ela percebe, pois fica preocupada.

— Você está bem?

Faço que sim.

— Depois que voltei para o trabalho, tudo meio que deu errado.

Mas estou bem.

Ela abre um sorriso, mas um pouco triste.

— Pois é, minha noite também deu errado.

Não tinha percebido antes, mas parece que ela esteve chorando.

Seus olhos estão embaçados e um pouco inchados.

Você está bem?

Ela se força a sorrir de novo.

— Vou ficar. Só queria te agradecer pela noite antes de ir dormir.

Odeio o fato de ela não estar bem na minha frente agora. Não gosto de vê-la triste. Isso me lembra muito de todas as vezes que a vi triste quando éramos mais jovens. Pelo menos naquela época eu estava perto o bastante para abraçá-la. Talvez eu ainda possa.

— Um abraço faria você se sentir melhor?

— É óbvio. Mas é só dormir que eu vou ficar bem. A gente se fala amanhã?

Não faço ideia do que aconteceu entre nosso encontro e esta ligação, mas ela parece completamente desanimada. Parece estar sentindo o mesmo que eu.

— Um abraço dura dois segundos, e assim você vai dormir bem melhor. Volto antes mesmo que eles percebam que saí. Qual é o seu endereço?

Um pequeno sorriso se espreita atrás de sua tristeza.

— Vai dirigir oito quilômetros só para me abraçar?

— Eu correria oito quilômetros só para te abraçar.

Isso faz seu sorriso aumentar ainda mais.

— Vou mandar meu endereço por mensagem. Mas não bata à porta com muita força. Acabei de colocar Emmy para dormir.

— Até daqui a pouco.

14. Lily

Faz tempo que não saio com uma nova pessoa, então sei lá se abraço é código para outra coisa.

Um abraço deve ser só um abraço mesmo.

Mal consigo usar as redes sociais, quanto mais conhecer as gírias mais recentes. Juro que sou a millennial mais desatualizada que conheço. É como se eu tivesse pulado a geração X e ido direto para o território dos boomers. Sou uma millennial boomer. Uma boollennial. Meu Deus, minha mãe boomer deve entender mais dessas coisas do que eu, afinal, é ela que está de namorado novo.

Eu deveria ligar para ela e pedir ajuda.

Escovo os dentes, caso um abraço seja um beijo. Em seguida, troco de roupa duas vezes até acabar colocando de novo o pijama que estava usando quando falei com ele pelo FaceTime. Estou me esforçando para dar a impressão de que não estou me esforçando.

Às vezes, ser mulher é ridículo.

Estou andando de um lado para o outro do apartamento, ansiando pela sua chegada. Não sei por que estou tão nervosa, já que acabei de passar três horas com ele.

Bem, uma hora e meia, sem contar o cochilo que dei no meio do encontro.

Várias dezenas de passos depois, ouço alguém bater levemente à porta do apartamento. Sei que é Atlas, mas confiro o olho mágico de qualquer maneira.

Ele fica bonito mesmo distorcido pelo olho mágico. Sorrio quando reparo que ele também trocou de roupa. Apenas o casaco, mas mesmo assim. Ele estava com um sobretudo grosso e preto quando saímos mais cedo, mas agora está com um simples moletom cinza.

Meu Deus. Adorei.

Abro a porta e Atlas não espera nem sequer um segundo entre o momento em que nos entreolhamos e o momento em que ele me

abraça.

Ele me abraça bem forte, e sinto vontade de lhe perguntar o que houve de tão ruim na última hora, mas não o faço. Apenas retribuo o abraço em silêncio. Encosto a bochecha em seu ombro e aproveito sua presença reconfortante.

Atlas nem entrou no apartamento. Estamos apenas parados na porta, como se um abraço significasse apenas um abraço. A colônia dele é cheirosa. Lembra o verão, como se estivesse desafiando o frio. Ele estava todo preocupado com o cheiro de alho mais cedo, mas só consegui sentir essa mesma colônia.

Ele leva a mão à minha nuca e a encosta ali com delicadeza.

— Você está bem? — pergunta ele.

— Agora estou. — Minha resposta é abafada pelo corpo dele. —

E você?

Ele suspira, mas não diz que está bem. Apenas deixa a resposta pairando no ar que expira, e então me solta devagar. Atlas ergue a mão e passa os dedos numa mecha do meu cabelo.

— Espero que consiga dormir um pouco esta noite.

— Você também.

— Não vou para casa. Vou passar a noite no restaurante. — Ele balança a cabeça como se não devesse ter dito nada. — É uma longa história, e preciso voltar. Amanhã eu te conto tudo.

Quero convidá-lo para entrar e pedir que explique todos os detalhes agora, mas me parece que ele já teria falado se quisesse.

Não estou nada a fim de conversar sobre o que aconteceu com Ryle, então não vou obrigá-lo a falar sobre o que quer que tenha estragado a noite dele. Queria apenas poder animá-lo um pouco de alguma maneira.

Fico empolgada quando penso em algo que talvez funcione.

— Está querendo algo novo para ler?

Seus olhos brilham com uma centelha de entusiasmo.

— Na verdade, estou.

— Espere aqui. — Vou até o quarto e olho na minha caixa de coisas, procurando o próximo diário. Depois que o encontro, levo-o até ele. — Este aqui é um pouco mais explícito — provoco.

Atlas pega o diário com uma das mãos, coloca o outro braço na minha lombar e me puxa para perto. Então, de repente, ele me dá

um selinho. É tão rápido e delicado que só percebo que ele me beijou depois que acaba.

— Boa noite, Lily.

— Boa noite, Atlas.

Não nos mexemos. Parece que vai doer se a gente se separar.

Atlas me puxa para ainda mais perto e encosta os lábios no ponto da minha clavícula onde minha tatuagem está escondida por baixo da blusa. A tatuagem que ele não sabe que existe. Ele a beija sem saber e depois, infelizmente, vai embora.

Fecho a porta e encosto a testa nela. Percebo todas as sensações familiares de um crush, mas desta vez elas trazem consigo preocupação e hesitação, embora seja Atlas, e ele seja um dos caras bons.

Isso é culpa de Ryle. Ele pegou a pouca confiança que eu tinha nos homens graças ao meu pai e acabou com ela.

No entanto, acho que esse crush é um sinal de que talvez Atlas consiga me devolver o que meu pai e Ryle tiraram de mim. Esse pensamento acaba com o frio na barriga que Atlas provocou e me faz sentir como se eu estivesse despencando, pois sei como isso faria Ryle se sentir.

Quanto mais alegria as minhas interações com Atlas me proporcionam, mais apreensão eu sinto por ter que contar a Ryle.

15. Atlas

Quando estava na Marinha, eu tinha um colega com família em Boston. Os tios dele estavam se preparando para se aposentar e queriam vender o restaurante. Ele se chamava Milla’s, e quando o conheci durante as férias, me apaixonei completamente pelo local.

Até poderia dizer que foi pela comida ou pelo fato de ele ficar em Boston, mas a verdade é que me apaixonei por ele devido à árvore que crescia bem no meio do restaurante.

A árvore me lembrava de Lily.

Se é para ter alguma lembrança do seu primeiro amor, as árvores deveriam ser a última opção. Elas estão por toda parte. E

deve ser por isso que tenho pensado em Lily todo santo dia desde que eu tinha dezoito anos, mas também pode ser porque, até hoje, sinto que devo minha vida a ela.

Não sei muito bem se foi a árvore ou o fato de o restaurante vir quase totalmente equipado e com funcionários, mas tive o ímpeto de comprá-lo quando ficou disponível. Não era meu objetivo ter um restaurante logo após sair da Marinha. Eu planejava trabalhar como chef para adquirir experiência, mas, quando a oportunidade surgiu, não consegui deixar escapar. Usei o dinheiro que tinha poupado durante meu período na Marinha, fiz um empréstimo, comprei o restaurante, mudei o nome e criei um cardápio novinho em folha.

Às vezes me sinto culpado pelo sucesso do Bib’s, como se não fosse mérito meu. Eu não apenas herdei os funcionários, que já sabiam o que estavam fazendo, também herdei clientes. Não construí tudo do zero, e é por isso que a síndrome do impostor fala mais alto quando as pessoas me parabenizam pelo sucesso do Bib’s.

Foi por isso que abri o Corrigan’s. Talvez eu não quisesse provar nada para ninguém além de mim mesmo, mas queria saber que eu conseguiria. Queria o desafio de criar algo do zero e de ver o estabelecimento prosperar e crescer. Como aquilo que Lily escreveu

no diário sobre por que gostava de cuidar de sua horta quando éramos adolescentes.

Talvez seja esse o motivo de eu me sentir mais protetor em relação ao Corrigan’s do que ao Bib’s, pois o criei do zero. Talvez também seja por isso que me esforço mais para protegê-lo. O

Corrigan’s está com o sistema de segurança funcionando, e é bem mais difícil de arrombar do que o Bib’s.

E é por isso que decido passar a noite no Bib’s, embora seja a vez de o Corrigan’s ser invadido, já que o menino tem alternado os alvos. Na primeira noite foi o Bib’s, na segunda, o Corrigan’s. Depois ele tirou alguns dias de folga, e o terceiro e o quarto incidentes foram no Bib’s. Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que ele vai preferir passar aqui, e não no Corrigan’s, porque teve mais facilidade para entrar no restaurante menos protegido. Só espero que hoje não seja uma das noites em que ele decida não dar as caras.

Ele com certeza vai aparecer aqui se estiver com fome. O Bib’s é sua melhor opção para conseguir comida, e é por isso que estou escondido do outro lado da caçamba, esperando. Peguei uma das cadeiras velhas que os fumantes usam e estou lendo para passar o tempo. As palavras de Lily têm feito companhia a mim. E a companhia tem sido tão boa que, em vários momentos, fiquei tão vidrado no diário que esqueci que deveria estar vigiando.

Não sei ao certo se quem tem vandalizado meus restaurantes tem a mesma mãe que eu, mas faz sentido devido ao momento. E

também faz sentido um menino que me despreza pichar aqueles insultos. Não consigo pensar em mais ninguém que teria um bom motivo para estar irritado comigo além de um garoto que se sente abandonado pelo irmão mais velho.

São quase 2h da manhã. Confiro o Corrigan’s pelo aplicativo de segurança no celular, mas também não tem nada acontecendo lá.

Volto à leitura do diário, embora tenha sido sofrido ler as duas últimas entradas. Não sabia o quanto minha mudança para Boston tinha afetado Lily quando ela era mais jovem. Na minha cabeça, com aquela idade, eu era um inconveniente para ela. Não fazia ideia do quanto ela achava que eu acrescentava à sua vida. Ler as cartas escritas naquela época tem sido bem mais difícil do que eu

imaginava. Achei que seria divertido ler seus pensamentos, mas, quando comecei, lembrei o quanto nossas infâncias foram cruéis conosco. Já não penso tanto nesse assunto porque me sinto muito distante da vida que levava naquela época, mas, pelo jeito, esta semana está me fazendo voltar àqueles momentos de diversas maneiras. As informações nos diários, minha mãe, a descoberta de que tenho um irmão — parece que tudo aquilo de que tentei fugir formou um vazamento vagaroso que agora ameaça me afogar.

Mas aí tem Lily, que reapareceu na minha vida no momento perfeito. Parece que ela sempre retorna quando preciso de um salva-vidas.

Folheio o resto do diário e vejo que já estou na metade da última entrada. Não me lembro de quase nada daquela noite devido à maneira terrível como ela acabou. Parte de mim nem quer vivenciá-la do ponto de vista de Lily, mas não posso ficar sem saber o que ela sentiu.

Abro a última entrada e continuo de onde parei.

Ele segurou minhas mãos e disse que ia entrar para a Marinha antes do que tinha planejado, mas que não podia ir embora sem me agradecer. Disse que passaria quatro anos longe e que a última coisa que desejava para mim era que eu fosse uma garota de dezesseis anos que não aproveitava a vida por causa de um namorado que nunca mandava notícias, que eu nunca via.

A próxima coisa que ele disse fez seus olhos lacrimejarem até ficarem límpidos.

— Lily. A vida é engraçada. A gente só tem alguns anos para viver, então precisamos fazer o possível para viver esses anos intensamente. Não devemos perder tempo com coisas que talvez aconteçam algum dia ou então nunca.

Entendi o que ele estava dizendo. Que ia se alistar e não queria que eu me prendesse a ele enquanto estivesse longe.

Ele não estava terminando nada comigo porque nunca estivemos realmente juntos. Éramos só duas pessoas que se ajudavam quando era preciso e que fundiram seus corações um ao outro no meio do caminho.

Foi difícil ver alguém que nunca ficou comigo de verdade se afastar de mim. Durante todo o tempo que passamos juntos, acho que nós meio que sabíamos que não era algo para sempre. Não sei por quê, afinal eu poderia facilmente amá-lo desse jeito. Acho que talvez em circunstâncias normais, se estivéssemos juntos como típicos adolescentes, e ele tivesse uma vida comum com uma casa, nós dois poderíamos ser esse casal. O tipo de casal que se une com facilidade e cuja vida nunca é interrompida pela crueldade.

Nem tentei fazê-lo mudar de ideia naquela noite. Sinto que a gente tem uma conexão que nem os fogos do inferno quebrariam. Sinto que ele pode passar um tempo na Marinha e que eu posso viver mais alguns anos como uma adolescente normal, porque depois tudo vai se encaixar quando for a hora certa.

— Vou te prometer uma coisa — disse ele. — Quando minha vida estiver boa o suficiente para que você faça parte dela, vou te encontrar. Mas não quero que fique me esperando, porque talvez isso nunca aconteça.

Não gostei dessa promessa, pois significava duas possibilidades. Ou ele achava que nunca sairia vivo da Marinha, ou que sua vida nunca seria boa o suficiente para mim.

Sua vida já era boa o suficiente para mim, mas apenas assenti e forcei um sorriso.

— Se você não vier atrás de mim, eu vou atrás de você. E

isso não vai ser nada bom, Atlas Corrigan.

Ele riu de minha ameaça.

— Bem, não vai ser muito difícil me achar. Você sabe exatamente onde estarei.

Sorri.

— Onde tudo é melhor.

Ele retribuiu o sorriso.

— Em Boston.

E depois me beijou.

Ellen, sei que você é adulta e sabe tudo sobre o que aconteceu em seguida, mas mesmo assim não me sinto à

vontade contando o que fizemos nas duas horas seguintes.

Vamos dizer apenas que a gente se beijou muito. Rimos muito. Amamos muito. Sussurramos muito. Muito. E nós dois tivemos de tapar as bocas e fazer o máximo de silêncio possível para que não nos flagrassem.

Quando terminamos, ele me abraçou, pele com pele, mão no coração. Ele me beijou e me olhou bem nos olhos.

— Eu te amo, Lily. Tudo que você é. Eu te amo.

Sei que essas palavras são muito repetidas por aí, principalmente por adolescentes. Muitas vezes de forma prematura e sem muito mérito. Mas, quando ele as disse para mim, sei que não queria falar que estava apaixonado por mim. Não era esse tipo de “eu te amo”.

Imagine todas as pessoas que você conhece ao longo da vida. São muitas. Elas surgem como ondas, entrando e saindo aos poucos, dependendo da maré. Algumas ondas são muito maiores e causam mais impacto que outras. Às vezes, as ondas trazem coisas lá do fundo do mar e as largam no litoral. Marcas nos grãos de areia que provam que as ondas estiveram lá, muito depois de a maré recuar.

Foi isso que Atlas quis dizer ao falar “eu te amo”. Estava me contando que eu era a maior onda que tinha aparecido em sua vida. E eu havia trazido tanta coisa comigo que minhas marcas sempre estariam presentes, mesmo quando a maré recuasse.

Depois de dizer que me amava, ele falou que tinha um presente de aniversário para mim. Pegou uma pequena sacola marrom.

— Não é nada de mais, mas foi tudo o que consegui comprar.

Abri a sacola e tirei o melhor presente que já ganhei. Era um ímã que dizia “Boston” em cima. Embaixo, com letras pequenas, estava escrito: “Onde tudo é melhor.” Eu disse que guardaria para sempre e que pensaria nele toda vez que o visse.

Quando comecei a escrever esta carta, falei que meu aniversário de dezesseis anos tinha sido um dos melhores

dias de minha vida. Porque até aquele segundo tinha sido mesmo.

Os próximos minutos é que não foram.

Antes de Atlas aparecer naquela noite, eu não estava esperando por ele, então não pensei em trancar a porta do quarto. Meu pai me escutou conversando com alguém e, ao escancarar a porta e encontrar Atlas na cama comigo, ele ficou mais zangado do que eu já o vira antes. E Atlas estava em desvantagem, porque não estava preparado para o que veio em seguida.

Nunca vou esquecer aquele momento enquanto estiver viva. Eu não podia fazer absolutamente nada enquanto meu pai o golpeava com um bastão de beisebol. O barulho dos ossos se quebrando foi a única coisa que escutei acima de meus gritos.

Ainda não sei quem chamou a polícia. Tenho certeza de que foi minha mãe, mas já se passaram seis meses e ainda não conversamos sobre aquela noite. Quando a polícia apareceu em meu quarto e tirou meu pai de cima dele, eu nem reconheci Atlas, de tão ensanguentado que ele estava.

Fiquei histérica.

Histérica.

Não só tiveram de levar Atlas em uma ambulância, como também precisaram chamar uma para mim porque eu não conseguia respirar. Foi o primeiro e único ataque de pânico que já tive.

Ninguém queria me dizer onde ele estava ou se estava bem. Meu pai nem foi preso pelo que fez. Espalharam a notícia de que Atlas estava naquela casa antiga, sem ter onde morar. Meu pai foi venerado pelo ato heroico, por ter salvado a filhinha do mendigo que a manipulou para que transasse com ele.

Meu pai disse que eu tinha envergonhado a família, dando motivos para a cidade inteira fofocar. E vou te contar, até hoje falam sobre isso. Hoje de manhã escutei Katie dizer a alguém no ônibus que tentou me alertar sobre Atlas. Disse que sabia que ele era uma má influência desde o momento em que o

viu. Mas isso é mentira. Se Atlas estivesse no ônibus comigo, eu provavelmente teria ficado de boca calada e agido com maturidade, como ele tentou me ensinar. Em vez disso, fiquei com tanta raiva que me virei e mandei Katie ir para o inferno.

Disse que Atlas era um ser humano melhor do que ela jamais seria, e que, se eu a escutasse falar mal dele de novo, ela ia se arrepender.

Ela apenas revirou os olhos e disse:

— Meu Deus, Lily. Ele fez lavagem cerebral em você, foi?

Era um mendigo sujo e ladrão, que provavelmente usava drogas. Ele te usou porque queria comida e sexo, e agora você o está defendendo?

Ela teve sorte de o ônibus chegar à minha casa bem naquele instante. Peguei minha mochila, saí do ônibus, entrei em casa e passei três horas chorando no quarto. Agora minha cabeça está doendo, mas eu sabia que só ficaria melhor se finalmente colocasse tudo para fora aqui no diário.

Já faz seis meses que evito escrever esta carta.

Sem querer ofender, Ellen, mas minha cabeça continua doendo. Meu coração também. Talvez esteja doendo ainda mais do que ontem. Esta carta não ajudou nem um pouco.

Acho que vou passar um tempo sem escrever. Porque me lembro dele quando escrevo para você, e tudo isso dói muito.

Até ele vir atrás de mim, vou apenas fingir que está tudo bem. Vou continuar fingindo que estou nadando, quando na verdade só estou boiando. Quase sem conseguir manter a cabeça fora da água.

Lily

Fecho o diário depois de ler a última página.

Não sei o que sentir porque sinto tudo. Raiva, amor, tristeza, felicidade.

Sempre odiei não conseguir lembrar de quase nada daquela noite, por mais que tentasse pensar em cada palavra que dissemos.

O fato de Lily ter anotado tudo é um presente, embora seja um presente triste.

Naquela época, eu temia que Lily fosse frágil demais para saber dos detalhes da minha vida. Eu queria protegê-la das coisas negativas que estavam acontecendo, mas ler suas palavras me mostrou que Lily não precisava ser protegida. Pelo contrário: ela poderia até ter me ajudado a enfrentá-las.

Sinto vontade de escrever outra carta para ela, mas, acima de tudo, sinto vontade de estar com ela, de conversar sobre tudo isso pessoalmente. Sei que estamos indo devagar, mas, quanto mais tempo passo perto dela, mais fico impaciente para reencontrá-la.

Eu me levanto para guardar o diário e pegar algo para beber enquanto espero, mas paro assim que fico de pé. Há um poste no começo do beco iluminando o restaurante e tem uma sombra se movendo na luz. A sombra passa na frente do restaurante indo na outra direção, como se o dono da sombra estivesse vindo para perto de mim. Recuo para continuar escondido.

Alguém aparece. Um garoto se aproxima da porta dos fundos.

Não sei se esse garoto é meu irmão, mas com certeza é a mesma pessoa que vi na gravação da câmera do Corrigan’s.

Mesmas roupas, mesmo moletom com o capuz na cabeça.

Continuo escondido, observando-o, e a cada segundo que passa me convenço mais de que ele é exatamente quem eu acho. Ele tem o porte parecido com o meu. Até se move como eu. Sou tomado por uma energia ansiosa, pois quero conhecê-lo. Quero lhe dizer que não estou com raiva e que sei pelo que ele está passando.

Acho que eu não estava irritado com o vândalo nem mesmo antes de saber que talvez fosse meu irmão. Já é difícil se irritar com uma criança, mas é ainda mais difícil se irritar com uma que foi criada pela mesma mulher que supostamente me criou. Sei como é ter de fazer o possível para sobreviver. Também sei como é estar disposto a fazer de tudo para chamar a atenção de alguém. De qualquer pessoa. Houve momentos na minha infância em que eu só queria ser percebido, e tenho a sensação de que é exatamente isso que está acontecendo aqui.

Ele está querendo ser flagrado. Acima de tudo, ele quer ser notado.

Ele vem até a porta dos fundos do restaurante sem nenhuma hesitação. Já está familiarizado com o lugar. Confere a porta para

ver se está trancada. Como não abre, ele tira do moletom uma nova lata de tinta spray. Espero até que a erga, e é quando decido revelar minha presença.

— Você está segurando errado.

Minha voz o sobressalta. Quando ele se vira e me encara, percebo o quanto é jovem e sinto um grande aperto no coração, como se ele estivesse prestes a estourar. Tento imaginar Theo sozinho aqui, no meio de uma noite assim.

Ainda há algo infantil no medo em seus olhos. Quando começo a me aproximar, ele dá um passo para trás, procurando uma maneira de escapar depressa. Mas não tenta correr.

Sei que ele está curioso para ver o que vai acontecer. Não é por isso que tem vindo aqui noite após noite?

Estendo a mão para pegar a lata de tinta spray. Ele hesita, mas me dá. Demonstro como segurar a lata direito.

— Se fizer assim, não vai pingar. Você está segurando perto demais.

Enquanto ele me observa, todas as emoções passam pelo seu rosto: raiva, admiração, traição. Ficamos em silêncio enquanto notamos o quanto somos parecidos. Nós dois puxamos à nossa mãe. Mesma mandíbula, mesmos olhos claros, mesma boca, até a mesma testa involuntariamente franzida. É muita coisa para assimilar. Eu já estava conformado com a ideia de não ter família, mas cá está ele, em carne e osso. Penso no que ele deve estar sentindo enquanto me encara. Raiva, obviamente. Decepção.

Encosto o ombro na parede, olhando-o com total franqueza.

— Não sabia que você existia, Josh. Só descobri algumas horas atrás.

O menino enfia as mãos nos bolsos do moletom e encara os próprios pés.

— Que mentira do cacete — murmura ele.

Fico triste ao ver essa frieza em alguém tão novo. Ignoro a sua resposta raivosa e pego as chaves para destrancar a porta dos fundos do restaurante.

— Está com fome?

Seguro a porta aberta para ele.

Ele me olha como se quisesse sair correndo, mas, após um instante de relutância, abaixa a cabeça e entra.

Acendo a luz e vou até a cozinha. Pego os ingredientes para lhe fazer um queijo-quente e começo a prepará-lo enquanto ele anda lentamente pelo aposento, assimilando tudo. Josh toca nas coisas, abre gavetas, armários. Talvez esteja conferindo o que tem para a próxima vez que decidir arrombar. Ou talvez sua curiosidade seja para disfarçar o medo.

Estou colocando o sanduíche no prato quando ele finalmente diz:

— Como sabe quem sou se não sabia que eu existia?

Talvez isso seja o começo de uma longa conversa, e prefiro tê-la com ele numa posição mais confortável. Não tem nenhuma mesa aqui atrás com lugar para sentar, então aponto para as portas que levam ao salão do restaurante. As placas de saída proporcionam iluminação o suficiente, então não preciso acender nenhuma luz.

— Sente-se aqui. — Aponto para a mesa oito, e ele se acomoda no mesmo lugar onde nossa mãe se sentou mais cedo. — O que você quer beber?

Josh engole em seco, depois dá de ombros.

— Tanto faz.

Volto para a cozinha, pego um copo de água gelada e o empurro por cima da mesa. Ele toma metade de uma vez só.

— Sua mãe esteve aqui hoje à noite — digo. — Ela está te procurando.

Ele faz cara de que não se importa e continua comendo.

— Onde você está dormindo?

— Por aí — responde ele com a boca cheia.

— Está indo à escola?

— Não recentemente.

Deixo-o dar algumas mordidas antes de continuar. A última coisa que eu quero é assustá-lo por ter feito perguntas demais.

— Por que fugiu de casa? — pergunto. — Por causa dela?

— De Sutton?

Assinto. Penso no tipo de relação que os dois têm, se ele nem mesmo se refere a ela como mãe.

— Pois é, a gente brigou. A gente sempre briga por qualquer merda.

Ele termina o queijo-quente e bebe o restante da água.

— E seu pai? Tim?

— Foi embora quando eu era pequeno. — Seus olhos percorrem o salão e se fixam na árvore. Quando me olha de volta, ele inclina a cabeça. — Você é rico?

— Se eu fosse, não te contaria. Você já tentou me roubar quatro vezes.

Vejo um sorrisinho se insinuando em sua boca, mas ele se recusa a sorrir para valer. Josh relaxa um pouco mais no encosto, afastando o capuz do rosto. Mechas de cabelo castanho oleoso caem para a frente, e ele as empurra para trás. Seu cabelo parece estar precisando de um corte há um bom tempo, com laterais longas e irregulares demais para serem propositais.

— Ela disse que você foi embora por minha causa. Disse que você não queria um irmão.

Preciso conter minha irritação. Puxo o prato vazio e o copo para perto de mim e me levanto.

— Só soube de você hoje, Josh. Juro. Teria ficado por perto se soubesse.

Ele me olha de seu lugar, me observando. Querendo saber se pode confiar em mim.

— Agora você já sabe que eu existo.

Josh diz isso como se estivesse me desafiando a agir de uma maneira melhor. A provar que ele não precisa esperar só coisas ruins do mundo.

Aponto a cabeça para as portas da cozinha.

— Tem razão. Vamos.

Ele não se levanta de imediato.

— Para onde?

— Minha casa. Tenho um quarto para você, contanto que pare de ficar xingando tanto.

Ele ergue a sobrancelha.

— Por acaso você é algum fanático religioso, é?

Gesticulo para que ele se levante.

— Um menino de onze anos xingando o tempo todo cheira a desespero. É só aos catorze anos que isso passa a ser coisa de gente descolada.

— Não tenho onze anos. Tenho doze.

— Ah. Ela disse que você tinha onze. Mesmo assim. Você é novo demais para ser descolado.

Josh se levanta e vem para a cozinha atrás de mim.

Eu me viro para ele enquanto empurro as portas para trás.

— E, só para você saber, você escreve palhaço errado. Não tem a letra i no meio.

Ele parece surpreso.

— Bem que achei esquisito depois que escrevi.

Ponho a louça na pia, mas são quase 3h da manhã e não estou a fim de lavá-la. Apago a luz e deixo Josh ir na frente até a porta dos fundos. Enquanto eu a tranco, ele pergunta:

— Você vai contar pra Sutton onde eu estou?

— Ainda não decidi o que vou fazer — admito, e começo a andar pelo beco enquanto ele se apressa para me alcançar.

— De qualquer maneira, estou pensando em ir para Chicago —

anuncia. — Devo passar só uma noite na sua casa.

Rio quando penso que esse menino acha que vou deixá-lo fugir para outra cidade agora que sei que ele existe. No que é que eu estou me metendo, hein? Tenho a impressão de que minhas responsabilidades cotidianas acabam de dobrar.

— A gente tem mais algum irmão ou irmã que eu não conheça?

— pergunto.

— Somente os gêmeos, mas eles só têm oito anos.

Paro imediatamente e olho para ele.

Josh sorri.

— Estou zoando. É só a gente mesmo.

Balanço a cabeça e pego a parte de trás do seu capuz, puxando-o para cima da cabeça dele.

— Você é uma figura.

Ele está sorrindo quando chegamos ao meu carro. Também estou, até que sinto um frio na barriga de preocupação.

Conheço Josh há meia hora. Sei que ele existe há menos de um dia. Mas agora estou com a sensação de que vou protegê-lo pelo

resto da vida.

16. Lily

A pessoa perde as manhãs depois que tem filhos.

Eu costumava abrir os olhos e passar vários minutos deitada antes de pegar o celular e ver tudo o que perdi enquanto dormia.

Tomava um café e planejava mentalmente o dia enquanto tomava banho.

Agora que tenho Emmy, porém, seu choro matinal me arranca da cama e eu vivo em função dela antes mesmo de ter tempo de fazer xixi. Corro para trocar sua fralda, corro para vesti-la, corro para alimentá-la. Quando termino minhas tarefas maternais, já estou atrasada para o trabalho e mal tenho tempo de cuidar de mim mesma.

É por isso que gosto das manhãs de domingo. Parece que é o único dia da semana em que consigo sentir uma certa calma.

Quando Emmy acorda no domingo, sempre a coloco na cama comigo. Ficamos deitadas juntas e a escuto balbuciar, sem nenhuma pressa para levantar ou ir a outro lugar.

Às vezes, como agora, ela volta a dormir e tudo o que faço é fitá-la por longos períodos, maravilhada com o encanto que é a maternidade.

Pego o celular e tiro uma foto de Emmy para enviar a Ryle, mas hesito antes de apertar o botão. Não sinto nenhuma falta dele, mas, em momentos como este, fico triste por Ryle não poder compartilhar isso com a gente ou por eu não poder compartilhar os instantes de alegria que eles têm juntos. Não há nada melhor do que curtir a criança que você gerou com a pessoa que também a criou, e é por isso que sempre tento mandar fotos e vídeos para ele. Porém, ainda estou chateada com a noite de ontem e não estou muito a fim de entrar em contato com ele ainda. Salvo a foto para um dia mais tranquilo.

Porra, Ryle.

O divórcio é difícil. Sabia que seria, mas é muito mais do que eu esperava. E passar por um divórcio com uma criança no meio é um milhão de vezes mais complicado. Você será obrigada a interagir com aquela pessoa pelo resto da vida. Precisa dar um jeito de planejar as festas de aniversário em conjunto ou de aceitar duas comemorações separadas. Precisa planejar os feriados que cada um vai passar com a criança e também quais dias da semana, às vezes até as horas do dia.

Não dá para se livrar num piscar de olhos da pessoa com quem você se casou e de quem se divorciou. Você é obrigada a conviver com ela. Para sempre.

Serei obrigada a lidar com os sentimentos de Ryle para sempre e, sendo bem sincera, estou me cansando de sempre me sentir mal por ele, de me preocupar com ele, de temer sua reação, de ser cuidadosa com seus sentimentos.

Quanto tempo devo esperar antes de começar a namorar alguém sem que o ciúme de Ryle seja justificável? Quanto tempo devo esperar antes de lhe contar que estou saindo com Atlas, caso nos tornemos um casal? Quanto tempo preciso esperar antes de poder tomar decisões sobre minha própria vida sem me preocupar com os sentimentos dele?

Meu celular vibra. É minha mãe ligando. Saio da cama silenciosamente para ir à sala antes de atender.

— Oi.

— Posso ficar com Emerson hoje?

Rio ao perceber que ela não está nem aí para a filha agora que tem uma neta.

— Tudo bem comigo, sim, e com você?

Minha mãe ama Emmy tanto quanto eu, tenho certeza disso.

Quando Emmy completou seis semanas, minha mãe começou a cuidar dela por algumas horas enquanto eu trabalhava. Emmy até dormiu na casa dela no mês passado — foi sua primeira noite longe de mim desde que nasceu. Ela tinha pegado no sono e não quisemos acordá-la, então fui buscá-la na manhã seguinte.

— Rob e eu estamos por perto. Podemos buscá-la daqui a vinte minutos. Vamos ao jardim botânico e pensei que seria divertido levar Emerson. E imagino que um descanso possa ser bom pra você.

— Está bem. Vou arrumá-la.

Meia hora depois, ouço alguém bater à porta. Abro-a e deixo minha mãe e Rob entrarem. Minha mãe vai direto para a sala de estar, onde Emmy está dormindo num moisés.

— Oi, mãe — digo brincando.

— Mas que roupinha mais linda — diz minha mãe, pegando-a.

— Fui eu que comprei para ela?

— Não, era da Rylee, na verdade.

É legal que a diferença entre as duas seja de apenas seis meses. Não precisamos comprar tantas roupas para Emmy porque Allysa me dá muitas que eram de Rylee. E elas estão sempre em ótimas condições, pois acho que Rylee nunca repete a mesma roupa.

Emmy está usando o conjunto que Rylee usou na sua festa de um ano. Estava torcendo para que Emmy o herdasse, pois é uma fofura. É uma legging rosa com estampa de melancias e uma camiseta verde de manga comprida com uma fatia de melancia no meio.

Minha mãe comprou quase todas as outras roupas de Emmy, inclusive a jaqueta azul que estou colocando nela agora.

— Não combina com o conjuntinho — minha mãe censura. —

Cadê a jaqueta rosa que comprei para ela?

— Está pequena demais. É só uma jaqueta, e ela tem um ano de idade. Não faz diferença se combina ou não.

Minha mãe bufa, e pela sua cara percebo que Emmy vai voltar para casa com uma jaqueta novinha em folha. Beijo a bochecha de Emmy, e minha mãe se dirige à porta.

Entrego a bolsa maternidade para Rob, e ele a pendura no ombro.

— Quer que eu a pegue? — pergunta ele para minha mãe.

Ela aperta Emmy ainda mais.

— Não precisa — responde ela por cima do ombro. — A gente volta em algumas horas.

— Que horas? — pergunto.

Não costumo marcar horário com ela, mas estou pensando em perguntar a Atlas o que ele está fazendo agora. Talvez a gente

possa almoçar, já que nós dois estamos de folga hoje e não vou estar com Emmy.

— Eu mando uma mensagem. Por quê? Vai sair? — pergunta.

— Achei que você fosse apenas botar o sono em dia.

Não tenho coragem de lhe dizer que talvez eu vá sair com um cara. Ela ficaria me fazendo perguntas até muito depois de o jardim botânico fechar.

— Pois é, acho que vou só dormir mesmo. Mas deixo o celular ligado. Divirtam-se.

Minha mãe já saiu e está no corredor, mas Rob para e me olha.

— Lembre-se de parar o carro na mesma vaga. Se estacionar em outro lugar, ela vai perceber e vai fazer perguntas.

Rob dá uma piscadela, deixando evidente que me entende melhor do que ela.

— Valeu pela dica — sussurro.

Fecho a porta e vou procurar o celular. Arrumei Emmy para o passeio na pressa, então não olho o celular desde que encerrei a ligação com minha mãe. Tem uma chamada perdida de Atlas de vinte minutos atrás.

Sinto um frio de expectativa na barriga. Espero que ele esteja de folga hoje. Uso a câmera do celular para conferir minha aparência e faço uma chamada de vídeo para ele.

Na primeira vez que Atlas me ligou pelo FaceTime, eu detestei, mas agora essa me parece a opção mais natural. Sempre quero vê-lo. Gosto de ver o que está vestindo, onde está e as caras que faz quando diz as coisas que diz.

Já estou sorrindo quando ouço o som indicando que ele aceitou a chamada. Atlas ergue o celular e, quando finalmente entendo o que estou vendo, percebo que está numa cozinha que não conheço.

Ela é branca, bem-iluminada e diferente da cozinha de que me lembro de quando visitei sua casa quase dois anos atrás.

— Bom dia — Atlas me cumprimenta.

Ele está sorrindo, mas parece cansado, como se tivesse acabado de acordar ou estivesse prestes a dormir.

— Oi.

— Dormiu bem? — pergunta ele.

— Dormi. Finalmente. — Semicerro os olhos tentando ver o que há atrás dele. — Você reformou a cozinha?

Atlas olha por cima do ombro e depois para mim.

— Eu me mudei.

— O quê? Quando?

— No início do ano. Vendi minha casa e encontrei um lugar mais perto do restaurante.

— Ah. Que bom. — Mais perto do restaurante significa mais perto de mim. Qual será a distância entre a gente agora? — Está cozinhando?

Atlas vira o celular para a bancada. Tem uma frigideira com ovos, uma pilha de bacon, panquecas e... dois pratos. Dois copos de suco. Sinto um aperto no coração.

— Quanta comida — comento, tentando disfarçar o imenso ciúme que estou sentindo.

— Não estou sozinho — explica ele, virando a tela para o rosto de novo.

Minha decepção deve ter ficado evidente, pois ele balança a cabeça na mesma hora.

— Não, Lily. Não é isso...

Atlas ri e parece nervoso. Sua reação é encantadora, mas não me tranquiliza por completo. Ele ergue um pouco mais o celular até eu conseguir ver quem está atrás dele. Não sei quem é, mas não é outra mulher.

É um garoto.

Um garoto igualzinho a Atlas, e ele está me encarando com seus olhos idênticos aos de Atlas. Ele tem um filho e eu não sei?

O que está acontecendo?

— Ela acha que sou seu filho — diz o menino. — Você está apavorando ela.

Na mesma hora, Atlas vira o celular para o próprio rosto.

— Não é meu filho. É meu irmão.

Irmão?

Atlas move o celular para que eu veja seu irmão de novo.

— Diga oi para a Lily.

— Não.

Atlas revira os olhos e me encara como que se desculpando.

— Ele é um pouco babaca — justifica, bem na frente do irmão caçula.

— Atlas! — sussurro, chocada com tudo que está sendo dito.

— Está tudo bem, ele sabe que é babaca.

Vejo o menino rir atrás dele, então percebo que ele sabe que Atlas está brincando. Mas também estou confusa.

— Eu não sabia que você tinha um irmão.

— Nem eu. Descobri ontem à noite, depois do nosso encontro.

Penso na noite de ontem e em como ficou óbvio que ele estava chateado com a mensagem que recebeu, mas não fazia ideia de que era uma questão familiar. Acho que isso explica por que a mãe estava tentando falar com ele.

— Pelo jeito, você tem muito o que resolver hoje.

— Espere, não desligue ainda — pede ele. Atlas sai da cozinha e vai para outro cômodo para ter privacidade. Fecha a porta e se senta na cama. — Os pãezinhos só ficam prontos em dez minutos.

Posso falar.

— Nossa. Panquecas e pãezinhos. Que menino de sorte! Meu café da manhã foi café preto.

Atlas sorri, mas é um sorriso fraco. Ele parecia de bom humor na frente do irmão, mas agora que estou sozinha com ele, percebo o estresse na maneira como está se portando.

— Cadê Emmy? — pergunta.

— Minha mãe vai ficar com ela por algumas horas.

Quando ele nota que nós dois não vamos trabalhar e que não estou com Emmy, ele suspira como se estivesse desanimado.

— Então está com o dia de hoje livre?

— Tudo bem, a gente vai fazer tudo devagar, lembra? Além disso, não é todo dia que você descobre que tem um irmão mais novo.

Atlas passa a mão no cabelo e suspira.

— Era ele que estava vandalizando os restaurantes.

Isso me surpreende. Preciso ouvir o resto da história.

— Foi por isso que minha mãe tentou me ligar na semana passada. Ela queria saber se ele tinha falado comigo. Agora me sinto mal por ter bloqueado o número dela.

— Não tinha como você saber. — Estou de pé no meio da sala, mas quero estar sentada para esta conversa. Vou até o sofá e deixo o celular no braço dele, apoiando-o no suporte de dedo. — Ele sabia sobre você?

Atlas assente.

— Sabia, e achava que eu sabia da existência dele, e é por isso que estava descontando a raiva nos meus restaurantes. Tirando os milhares de dólares que me fez gastar, ele me parece um bom menino. Ou pelo menos parece ter potencial para ser um bom menino. Sei lá, ele passou pelas mesmas merdas que eu com minha mãe, então não sei como isso o afetou.

— Sua mãe também está aí?

Atlas balança a cabeça.

— Ainda não contei para ela que o encontrei. Falei com um amigo que é advogado e ele disse que, quanto mais cedo eu contar, melhor; assim ela não vai poder usar isso contra mim.

Usar isso contra ele?

— Você quer tentar obter a guarda dele?

Atlas assente sem titubear.

— Não sei se é o que Josh quer, mas não consigo aceitar outra opção. Sei o tipo de mãe que ela é. Ele mencionou que queria ir atrás do pai, mas Tim é ainda pior do que minha mãe.

— Você tem algum direito como irmão dele?

Atlas balança a cabeça.

— Somente se minha mãe deixar que ele more comigo. Não estou nada a fim de ter essa conversa. Ela vai negar só para me irritar, mas... — Atlas suspira fortemente. — Se Josh ficar com ela, não vai ter nenhuma chance na vida. Ele já é mais calejado do que eu era com aquela idade. Mais raivoso. Fico com medo do que essa raiva pode virar se ele não tiver alguma estabilidade na vida. Mas não sei se consigo fazer algo assim. E se eu fizer mais merda com ele do que minha mãe?

— Isso não vai acontecer, Atlas. Você sabe que não.

Ele aceita meu consolo com um sorriso rápido.

— É fácil para você dizer isso. Você leva muito jeito para cuidar da sua filha.

— Eu apenas sei fingir bem — admito. — Não faço ideia do que estou fazendo. Nenhum pai ou mãe sabe. Todos nós sofremos de síndrome do impostor e nos viramos como dá a cada minuto do dia.

— Por que isso é reconfortante e apavorante ao mesmo tempo?

— Você acabou de resumir a paternidade e a maternidade em uma frase.

Atlas expira.

— Acho melhor eu voltar e conferir se ele não está me roubando.

Eu te ligo mais tarde, tá?

— Tudo bem. Boa sorte.

A maneira como Atlas articula silenciosamente a palavra tchau é sexy pra cacete.

Quando encerro a chamada, me deito e suspiro. Adoro como me sinto depois de falar com ele. Atlas me deixa toda boba e energizada e feliz, mesmo quando a chamada é tão maluca e caótica como essa de agora.

Queria saber onde ele mora. Eu passaria na casa dele só para fazer um delivery de abraço, assim como ele fez comigo na outra noite. Odeio o fato de Atlas estar lidando com isso, mas ao mesmo tempo fico feliz por ele. Não consigo imaginar sua solidão desde que o conheci, não tendo nenhum familiar em sua vida.

E pobre criança. É a história de Atlas se repetindo, como se um único menino sendo tão maltratado pela mãe não bastasse.

Meu celular apita, indicando uma nova mensagem. Sorrio quando vejo que é dele. Sorrio ainda mais quando vejo o tamanho da mensagem.

Obrigado por ser a parte mais reconfortante da minha vida neste momento. Obrigado por sempre ser o farol de que eu preciso toda vez que me sinto perdido, quer você queira me iluminar ou não. Eu me sinto grato pela sua existência. Estou com saudade. Deveria demais ter te beijado.

Estou cobrindo a boca com a mão quando termino de ler. Sinto emoções tão fortes que não sei como lidar.

Sorte de Josh ter você na vida dele neste momento.

Após alguns segundos, Atlas reage à mensagem com um coração. Então mando outra:

E você tem razão. Deveria demais ter me beijado.

Atlas reage com outro coração.

17. Atlas

Josh não confia em mim, mas vou vencê-lo pelo cansaço. Aposto que não confia em ninguém, então não vou levar para o pessoal. Se a infância dele tiver sido parecida com a minha, tenho certeza de que ele já endureceu bem mais do que qualquer menino de doze anos deveria endurecer.

Por mais que me olhe com desconfiança, posso ver que também está curioso a meu respeito. Ele não faz muitas perguntas, mas me observa de uma maneira que denuncia os milhares de perguntas que tem na ponta da língua. Por algum motivo, no entanto, Josh prefere guardá-las para si. Deve estar se perguntando por que peguei tão leve com ele ontem à noite, depois que descobri que era ele causando danos aos meus restaurantes. Também deve estar se perguntando por que eu não sabia da existência dele e como acabei com uma vida tão diferente da minha mãe e de Tim.

Quaisquer que sejam suas perguntas, ele está tentando conter bastante suas expressões. Não quero constrangê-lo, então tenho falado mais enquanto ele toma o café da manhã. Não é tão difícil, pois as perguntas que tenho para ele são igualmente numerosas.

Foi também por isso que não consegui dormir ontem à noite depois que enfim chegamos à minha casa. Fiquei alerta para ver se ele não ia tentar ir embora de fininho, e realmente me surpreendi quando vi que ele ainda estava aqui pela manhã.

Por mais que minhas perguntas possam irritá-lo, lembro como é ter doze anos. Tudo o que eu queria era que alguém se interessasse por quem eu era, mesmo que fosse um interesse falso.

Se a vida dele tiver sido parecida com a minha, ele passou doze anos sendo ignorado, e não vou deixar que se sinta desse jeito na minha casa. Porém, tenho feito apenas perguntas fáceis, abrindo caminho para os assuntos mais difíceis.

Josh come uma coisa de cada vez. Primeiro um pãozinho, depois o bacon. Ele está cortando as panquecas pela primeira vez

quando digo:

— Do que você gosta? Tem algum hobby?

Ele dá uma mordida, e uma das suas sobrancelhas se ergue um pouco, mas não sei se é por causa da comida ou da minha pergunta.

— Por quê?

— Quer saber por que estou perguntando do que gosta?

Seu pescoço está rígido quando assente.

— Perdi doze anos da sua vida. Quero te conhecer.

Josh desvia o olhar e põe mais panqueca na boca.

— Mangá — murmura.

Fico surpreso. Mas, graças a Theo, eu até que conheço mangá.

— Qual sua série favorita?

One Piece. — Ele balança a cabeça, pensando melhor. —

Não, deve ser Chainsaw Man.

É só até aí que consigo chegar na conversa sem parecer ignorante.

— A gente pode passar numa livraria mais tarde se você quiser.

Ele assente.

— As panquecas estão gostosas.

— Obrigado.

Observo-o dar um gole no suco, e, enquanto coloca o copo na mesa, ele diz:

— Do que você gosta? — Ele vira a cabeça para o prato. —

Além de cozinhar.

Não sei responder. Passo a maior parte do tempo nos restaurantes. Gasto o tempo que me sobra fazendo consertos pela casa, lavando roupa, dormindo.

— Gosto de assistir ao canal de culinária.

Josh dá uma risadinha.

— Que parada mais triste.

— Por quê?

— Eu falei “além de cozinhar”.

É uma pergunta mais difícil do que imaginei, agora que sou eu que tenho de responder.

— Gosto de museus — acrescento. — E de ir ao cinema. E de viajar. Só não faço nada disso.

— Porque está sempre trabalhando?

— Isso.

— Como eu disse: que parada mais triste.

Ele se inclina por cima do prato para comer outra garfada de panqueca.

As perguntas para nos conhecermos melhor não estão funcionando, então vou direto ao ponto:

— Por que vocês brigaram?

Ele dá de ombros.

— Na metade do tempo, nem sei qual foi a merda que eu fiz. Ela apenas se irrita sem motivo.

Sei como é. Deixo-o comer mais um pouco antes de fazer outra pergunta.

— Onde você estava dormindo?

Josh não me olha. Ele empurra a comida no prato por um instante, depois diz:

— No seu restaurante. — Seus olhos sobem devagar até encontrarem os meus. — O sofá do seu escritório é bem confortável.

— Você estava dormindo dentro do restaurante? Há quanto tempo?

— Duas semanas.

Fico chocado.

— Como você estava entrando?

— Não tem alarme naquele restaurante, e finalmente descobri como forçar a fechadura depois de algumas tentativas. Já no outro, é bem difícil de entrar.

— Você sabe forçar fe... — Não posso deixar de rir. Brad e Darin vão adorar me dizer eu te avisei. — E por que, depois de um tempo, você começou a vandalizar também?

Josh me olha com relutância.

— Sei lá. Acho que estava com raiva. — Ele empurra o prato e se recosta na cadeira. — E agora? Preciso voltar a morar com ela?

— O que você quer que aconteça?

— Quero morar com meu pai. — Ele coça o cotovelo. — Pode me ajudar a encontrá-lo?

Minha vontade de encontrar Tim é a mesma que eu tinha de encontrar minha mãe: nenhuma.

— Sabe alguma coisa sobre ele? — pergunto.

— Acho que agora está morando em Vermont. Só não sei onde.

— Quando foi que o viu pela última vez?

— Alguns anos atrás. Mas ele não sabe mais onde me encontrar.

Agora Josh está refletindo bem sua idade. Um menino frágil, abandonado pelo pai, mas que se recusa a perder a esperança. Não quero ser a pessoa que acaba com ela, então apenas concordo.

— Está bem, vou ver o que posso fazer. Mas, por enquanto, preciso avisar a sua mãe que você está bem. Preciso ligar para ela.

— Por quê?

— Se eu não ligar, isso pode ser considerado sequestro.

— Não se eu estiver aqui por vontade própria.