A lança de luz de Sam cintilou na mão dela. Ela voou para o alto, para fora do alcance das gigantas, e começou a acertar as irmãs com arcos de puro brilho de valquíria.
Enquanto isso, Blitzen só aumentava o caos, distraindo as nove irmãs com críticas ferinas de estilo, como:
— Sua barra está curta demais! Tem um fio puxado na sua meia-calça! Esse lenço não combina com seu vestido!
Kolga e Blod vieram para cima de mim. Eu me enfiei corajosamente embaixo da mesa e tentei escapar engatinhando, mas Blod me puxou pela perna.
— Ah, não — rosnou ela, os dentes pingando vermelho. — Vou arrancar sua alma do corpo, Magnus Chase!
Mas um gorila caiu em cima dela, derrubou-a no chão e arrancou sua cara. (Soou nojento, mas na verdade, quando o gorila arrancou a cara de Blod, a cabeça toda da giganta simplesmente se dissolveu em água salgada, encharcando o chão de algas.)
O gorila me encarou, os olhos de cores diferentes, um castanho, e o outro, mel. Ele grunhiu para mim com impaciência, como quem diz: Levanta logo, idiota! Lute!
O gorila se virou para enfrentar Kolga.
Eu cambaleei para trás. Explosões mágicas, raios de luz, machados, espadas e insultos sobre moda voavam para todo lado, recebidos por explosões de água salgada, estilhaços de gelo e pedaços de
gelatina cor de sangue.
Meus instintos me diziam que as gigantas seriam bem mais poderosas se combinassem as forças, como fizeram quando afundaram nosso navio. Nós só estávamos vivos porque as irmãs tinham se concentrado em matar cada uma o próprio alvo. Tínhamos sido bem-sucedidos em sermos individualmente irritantes.
Se as nove gigantas começassem a cantar aquela música esquisita de novo, trabalhando em equipe, seria nosso fim.
Mesmo lutando com cada uma separadamente, nós estávamos encrencados. Toda vez que uma giganta era vaporizada ou reduzida a uma poça, ela se reformava na mesma hora. Estávamos em menor número. E
por melhor que meus amigos lutassem, as gigantas tinham a vantagem do terreno… e também da imortalidade, que era um toque frutado bem grande.
Nós tínhamos que encontrar um jeito de pegar o barco e sair dali, voltar para a superfície e ir para bem longe. Para isso, precisaríamos de uma distração, então decidi chamar meu especialista.
Eu tirei a pedra de runa do cordão.
Jacques surgiu em forma de espada.
— Oi! Sabe, eu estava pensando na Contracorrente. Quem precisa dela, né? Tem muitas outras espadas no arsenal e… OPA! Estamos no palácio de Aegir? Incrível! Que hidromel ele está servindo hoje?
— Socorro! — gritei quando Blod surgiu na minha frente, o rosto no lugar, as garras pingando sangue.
— Claro! — disse Jacques, animado. — Mas, cara, o Hidromel de Abóbora com Especiarias da Oktoberfest de Aegir é de beber de joelhos!
Ele foi até Cabelo Vermelho de Sangue e se colocou entre minha agressora e eu.
— Ei, moça! — chamou Jacques. — Quer dançar?
— Não! — rosnou Blod.
Ela tentou contorná-lo, mas Jacques era ágil. Ele ia de um lado para outro, apontando a lâmina para a giganta e cantando “Funkytown”.
Blod pareceu não querer ou não conseguir se desviar da lâmina mágica de Jacques, o que me deu alguns segundos para recuperar o fôlego enquanto minha espada dançava discoteca.
— Magnus! — Samirah passou voando três metros acima de mim. — Prepare o navio!
Meu coração despencou. Percebi que meus amigos estavam distraindo as gigantas para mim, na esperança de eu conseguir deixar nosso navio pronto para navegar novamente. Pobres amigos iludidos.
Eu fui correndo até o Bananão.
O navio estava caído de lado, o mastro atravessando a parede de água. A corrente lá fora devia ser forte, porque estava empurrando o barco de leve, a quilha deixando marcas no chão de algas.
Toquei no casco. Felizmente, o barco reagiu e voltou à forma de lenço. Se conseguisse reunir todos os meus amigos, talvez pudéssemos atravessar a parede de água juntos e conjurar o navio enquanto a corrente nos carregasse para longe dali. Talvez o navio, por ser mágico, nos levasse de volta à superfície. Talvez não nos afogássemos nem fôssemos esmagados pela pressão da água.
Eram muitas hipóteses. Mesmo que nós conseguíssemos, as nove filhas de Aegir já tinham nos sugado para debaixo d’água uma vez. Eu não via por que não poderiam fazer isso de novo. De alguma forma, tinha que impedir que elas nos seguissem.
Eu observei a batalha. Hearthstone passou correndo por mim, jogando runas nas gigantas em seu encalço. A runa parecia funcionar melhor do que as outras. Cada vez que acertava uma giganta, ela virava uma poça por vários segundos. Não era muito, mas era alguma coisa.
Olhei para as paredes do salão e tive uma ideia.
— Hearth! — gritei.
Xinguei minha própria burrice. Alguma hora, eu superaria o hábito de gritar para chamar a atenção do meu amigo surdo. Corri atrás dele, desviando de Onda Ávida, que Mallory Keen estava guiando pela sala com os cabos das adagas como se fosse um robô de combate.
Segurei a manga de Hearth para chamar sua atenção. A runa, sinalizei. Qual é?
L-A-G-A-Z, soletrou ele. Água. Ou… Ele fez um gesto que eu nunca tinha visto: uma das mãos na horizontal, os dedos da outra mão balançando abaixo dela. Captei a ideia: pingar, vazar. Ou talvez liquefazer.
Você consegue fazer isso com a parede? , perguntei. Ou com o teto?
A boca de Hearth se curvou, formando o que para ele era um sorriso diabólico. Ele assentiu.
Espere meu sinal, sinalizei.
Onda Arremessadora surgiu entre nós, urrando, e Hearthstone voltou para o meio da confusão.
Eu tinha que pensar em uma forma de separar meus amigos das gigantas. Assim, poderíamos desabar parte do salão em cima das nove irmãs durante nossa fuga. Eu duvidava de que isso fosse machucar nossas inimigas, mas pelo menos poderia surpreendê-las e atrapalhar qualquer contra-ataque. O
problema era que eu não sabia como interromper a luta. Duvidava de que pudesse soprar um apito e gritar “Falta!”.
Jacques voava de um lado para outro, perturbando gigantas com sua lâmina mortal e com sua interpretação mais mortal ainda de um clássico da discoteca dos anos 1970. Kolga espalhou gelo pelo tapete, fazendo Mestiço Gunderson escorregar. Bylgja lutava com T.J., uma espada vermelha de coral contra uma baioneta. Onda Ávida finalmente conseguiu tirar Mallory das costas. A giganta a teria partido ao meio, mas Blitzen jogou um prato bem na cara dela.
(Uma das habilidades secretas de Blitz: ele dava um show no Ultimate Frisbee anão.) Himinglaeva pulou atrás de Samirah. Ela conseguiu agarrar as pernas de Sam, mas Alex atacou com o garrote. A giganta perdeu de repente vários centímetros de cintura… Na verdade, a cintura toda. Ela tombou no chão, quase partida ao meio, e se dissolveu em espuma salgada.
Hearthstone chamou minha atenção. A runa?
Queria ter uma resposta. Meus amigos não podiam fazer a luta durar para sempre. Considerei conjurar a Paz de Frey (meu superpoder de arrancar as armas das mãos de todo mundo), mas as gigantas não estavam usando armas, e eu achava que meus amigos não iam gostar de serem desarmados.
Eu precisava de ajuda. Desesperadamente. Então, fiz uma coisa que não era fácil para mim. Olhei para o teto líquido e rezei com sinceridade, não de palhaçada.
— Certo… Frey, pai, por favor. Sei que fui meio ingrato mais cedo quando reclamei do navio amarelo. Mas estamos prestes a morrer aqui, então, se você puder enviar alguma ajuda, eu agradeceria.
Amém. Com amor, Magnus. Magnus Chase, se você estiver em dúvida.
Fiz uma careta. Eu era péssimo em orações. Também não tinha certeza de que ajuda um deus do verão poderia me mandar no fundo da baía de Massachusetts.
— Oi — disse uma voz perto de mim.
O susto quase me fez atravessar o teto, o que não seria bom, considerando as circunstâncias.
De pé ao meu lado havia um homem com uns cinquenta e tantos anos, forte e queimado de sol como se tivesse trabalhado décadas como salva-vidas. Usava uma camisa polo azul-clara e um short cargo, e os pés estavam descalços. O cabelo fino e a barba curta eram cor de mel, com alguns fios brancos. Ele sorriu como se fôssemos velhos amigos, apesar de eu ter certeza de que nunca o tinha visto antes.
— Hã, oi?
Quando se mora em Valhala, a gente se acostuma com entidades estranhas aparecendo do nada. Mesmo assim, parecia um momento esquisito para um encontro casual.
— Eu sou seu avô — explicou ele.
— Ah… — O que eu poderia dizer? O homem não se parecia em nada com o vovô (nem com a vovó) Chase, mas imaginei que ele estava falando do outro lado da árvore genealógica. O lado vanir. Se eu ao menos conseguisse lembrar qual era o nome do pai de Frey, seria um sucesso. — Oi… vovô.
— Seu pai não pode fazer muita coisa no mar — explicou meu avô, o pai de Frey. — Mas eu posso.
Estão precisando de uma mãozinha?
— Sim, bastante — respondi, o que talvez fosse idiotice.
Eu não tinha como ter certeza de que aquele cara era quem dizia ser, e aceitar ajuda de um ser poderoso sempre o deixava em dívida.
— Ótimo! — Ele deu um tapinha no meu braço. — Encontro você na superfície quando isso tudo acabar, tá?
Eu assenti.
— Aham.
Meu recém-descoberto avô entrou no meio da batalha.
— Oi, garotas! Como estão?
A luta parou de repente. As gigantas recuaram com cautela na direção da mesa de jantar. Meus amigos cambalearam e tropeçaram até onde eu estava.
Blod mostrou os dentes manchados de vermelho.
— Njord, você não é bem-vindo aqui!
Njord! É esse o nome dele!
Vou tentar me lembrar de enviar um cartão para ele no Dia dos Avós. Será que essa data era importante para os vikings?
— Ah, pare com isso, Blódughadda — retrucou o deus, animado. — Um velho amigo não pode vir tomar uma caneca de hidromel? Vamos conversar como deidades do mar civilizadas.
— Esses mortais são nossos! — rosnou Onda Ávida. — Você não tem direito!
— Ah, mas eles estão sob minha proteção agora, sabe? O que quer dizer que voltamos ao nosso velho conflito de interesses.
As gigantas sibilaram e rosnaram. Claramente, as irmãs queriam fazer Njord em pedacinhos, mas estavam com medo de atacar.
— Além do mais — continuou o deus —, um dos meus amigos aqui tem um truque para mostrar. Não tem, Hearthstone?
Hearthstone olhou para mim. Eu assenti.
Hearth jogou a runa lagaz para cima, passando pelo candelabro das almas perdidas. Eu não via como poderia chegar ao teto trinta metros acima, mas a runa pareceu ir ficando mais leve e mais rápida conforme subia. Bateu nas vigas e explodiu em um dourado ardente, e o teto líquido desabou, enterrando as gigantas e Njord em um jato de um milhão de litros d’água.
— Agora! — gritei para os meus amigos.
Nós nos reunimos em um abraço grupal desesperado quando a onda nos acertou. Meu lenço se expandiu à nossa volta. O salão nos expulsou das profundezas do oceano como pasta de dente do tubo, e disparamos para a superfície em nosso navio de guerra amarelo.
O cara com belos pés
NÃO HÁ NADA melhor do que explodir das profundezas do oceano em um navio viking mágico!
Mentira. É horrível. Muito.
Meus olhos pareciam uvas que tinham sido lagaz-adas. Meus ouvidos estalaram com tanta força que achei que tinha levado um tiro na nuca. Desorientado e trêmulo, agarrei a amurada quando o Bananão atingiu as ondas — WHOOOSH! — e deslocou meu maxilar.
A vela se abriu sozinha. Os remos destravaram, mergulharam na água e começaram a remar sozinhos.
Navegamos sob o céu estrelado, o mar calmo e cintilante, nenhuma terra à vista em qualquer direção.
— O navio… está seguindo por conta própria — observei.
Ao meu lado, Njord apareceu do nada, sem aparentar estar abalado por ter sido pego no meio do desabamento do salão de Aegir.
O deus riu.
— Bom, sim, Magnus, claro que o navio está seguindo por conta própria. Vocês estavam tentando remar à moda antiga?
Eu ignorei meus amigos me olhando de cara feia.
— Hum, talvez.
— Você só precisa mandar o navio levar você para onde quer ir — explicou Njord. — Não precisa de mais nada.
Pensei em todo o tempo que passei com Percy Jackson, aprendendo sobre bolinas e mastros só para acabar descobrindo que os deuses vikings inventaram um aplicativo que dirigia barcos. Aposto que o navio até usaria mágica para me ajudar, se eu precisasse cair do mastro.
— Magnus — Alex cuspiu uma bola de cabelo de giganta do mar que estava na boca dele. Ops. Dela.
Eu não tinha certeza do que aconteceu, mas estava quase certo de que Alex havia mudado de gênero. —
Você não vai nos apresentar para o seu novo amigo?
— Certo — concordou. — Pessoal, esse é o pai do Frey. Quer dizer, Njord.
Blitz fez cara feia e murmurou baixinho:
— Eu devia ter imaginado.
Mestiço Gunderson arregalou os olhos.
— Njord? Deus dos navios? O Njord?
Em seguida, o berserker se virou e vomitou por cima da amurada.
T.J. deu um passo à frente e levantou as mãos em um gesto de Viemos em paz.
— Mestiço não estava fazendo um comentário crítico, grande Njord. Nós apreciamos sua ajuda! É que ele bateu a cabeça com força.
Njord sorriu.
— Não tem problema nenhum. Vocês todos deviam descansar um pouco. Eu fiz o que podia para aliviar o enjoo provocado pela descompressão, mas vocês vão se sentir mal por um ou dois dias. E, olha, tem sangue escorrendo do seu nariz. Ah, e das suas orelhas também.
Percebi que ele estava falando com todo mundo. Estávamos vazando como Blódughadda, mas pelo
menos meus amigos pareciam inteiros.
— Então, Njord — disse Mallory, limpando o nariz. — Antes de descansarmos, você tem certeza de que aquelas nove gigantas não vão aparecer de novo a qualquer momento e nos destruir?
— Não, não — prometeu ele. — Vocês estão sob minha proteção e seguros no momento! Agora será que poderiam me dar um tempo para conversar com meu neto?
Alex tirou um último fio de cabelo de giganta da língua.
— Tudo bem, pai do Frey. Ah, e a propósito, pessoal, meus pronomes são ela e dela agora, ok? É um novo dia!
(Viva pra mim porque acertei.)
Samirah deu um passo à frente, os punhos fechados. O hijab molhado estava grudado na cabeça como um polvo muito carinhoso.
— Magnus, lá no salão de jantar… Você percebe o que aceitou fazer? Tem alguma ideia…?
Njord levantou a mão.
— Minha querida, que tal deixar que eu discuta isso com ele? O amanhecer está chegando. Você não deveria fazer sua refeição suhur?
Sam olhou para o leste, onde as estrelas começavam a sumir. Ela cerrou os dentes.
— Acho que você está certo, apesar de eu não estar com muita fome. Alguém quer me acompanhar?
T.J. pendurou o rifle no ombro.
— Sam, quando o assunto é comida, eu sempre estou pronto. Vamos lá embaixo ver se a cozinha ainda está inteira. Mais alguém?
— Claro. — Mallory olhou para o deus do mar. Por algum motivo, pareceu fascinada pelos pés descalços dele. — Vamos dar a Magnus um momento família.
Alex foi atrás dela, se esforçando para ajudar Mestiço Gunderson a andar. Talvez fosse minha imaginação, mas antes de descer a escada, ela me olhou com cara de Você está bem?. Ou talvez só estivesse se perguntando por que eu era tão esquisito, como sempre.
Isso deixou só Blitz e Hearth no convés, um arrumando a roupa do outro. O cachecol de Hearth ficara enrolado no braço como uma tipoia. A gravata de Blitz tinha se envolvido na cabeça dele como um turbante elaborado. Eles estavam tentando se ajudar ao mesmo tempo que um empurrava o outro, e com isso não chegavam a lugar nenhum.
— Anão e elfo. — O tom de Njord foi relaxado, mas meus amigos pararam na mesma hora o que estavam fazendo e olharam para o deus. — Fiquem conosco. Precisamos conversar.
Hearthstone pareceu satisfeito, mas Blitz fez uma careta ainda pior.
Nós nos sentamos na proa, que era o único lugar onde não seríamos atingidos pelos remos que funcionavam sozinhos ou pelo botaló, nem estrangulados pelos cordames mágicos.
Njord se sentou de costas para a amurada, as pernas bem abertas. Mexeu os dedos dos pés como se quisesse que ficassem bem bronzeados. Isso não deixou muito espaço para o restante de nós, mas como Njord era um deus e tinha nos salvado, achei que ele merecia o espaço extra.
Blitz e Hearth se sentaram lado a lado em frente ao deus. Eu me agachei junto à proa, embora sempre ficasse meio enjoado sentado de costas em um veículo em movimento. Esperava que não fosse me tornar o segundo tripulante a vomitar na presença do deus.
— Bem — disse Njord —, está uma noite muito agradável.
Sentia como se minha cabeça tivesse sido esmagada por um torno. Eu estava encharcado de hidromel e água salgada. Mal tinha tocado no meu prato vegetariano e meu estômago parecia devorar a si mesmo.
Gotas de sangue pingavam do nariz no meu colo. Fora isso, sim, era realmente uma noite agradável.
Em algum momento na subida, Jacques voltou à forma de pingente. Estava pendurado no cordão,
vibrando sobre meu peito como se cantarolasse: Elogie os pés dele.
Devo ter imaginado ou entendido errado. Talvez Jacques quisesse dizer: Elogie os anéis dele.
— Ah, obrigado de novo pela ajuda, vovô.
Njord sorriu.
— Pode me chamar de Njord. Vovô faz eu me sentir velho!
Supus que ele estava vivo havia dois ou três mil anos, mas não queria insultá-lo.
— Certo. Desculpa. Então, foi Frey que te mandou ou calhou de você estar por perto?
— Ah, eu escuto todas as orações feitas no mar.
Njord balançou os dedos dos pés. Era imaginação minha ou ele estava se exibindo intencionalmente?
Tinha que admitir que os pés dele eram bem cuidados. Sem calos. Nem uma mancha de sujeira. As unhas estavam aparadas e lixadas à perfeição. Não havia pele sobrando nem pelos de hobbit. Mas, mesmo assim…
— Fiquei feliz em ajudar — continuou Njord. — Aegir e eu nos conhecemos há um tempão. Ele, Ran e as filhas dele representam a força destruidora da natureza, o poder primitivo do mar, blá-blá-blá.
Enquanto eu…
— Você é o deus da pescaria — afirmou Blitzen.
Njord franziu a testa.
— De outras coisas também, sr. Anão.
— Por favor, me chame de Blitz — pediu ele. — Sr. Anão era o meu pai.
Hearthstone grunhiu com impaciência, como costumava fazer quando Blitzen estava prestes a ser morto por uma deidade.
Njord é o deus de muitas coisas, sinalizou ele. Da navegação. Da construção de navios.
— Exatamente! — disse Njord, aparentemente sem dificuldade nenhuma com a linguagem de sinais.
— Do comércio, da pescaria, da navegação, qualquer ocupação que envolva o mar. Até da agricultura, pois as marés e as tempestades afetam o crescimento da lavoura! Aegir é o lado ruim e brutal do oceano.
Eu sou o cara para quem você reza quando quer que o mar te ajude!
— Humf, sei — disse Blitz.
Eu não sabia por que Blitz estava sendo antagônico. Mas aí lembrei que o pai dele, Bilì, tinha morrido enquanto verificava as correntes que prendiam o lobo Fenrir. A roupa rasgada e cortada de Bilì tinha ido parar na costa de Nídavellir. Nada de viagem segura para casa, no caso dele. Então por que Blitzen consideraria o mar qualquer outra coisa além de cruel?
Eu queria que Blitz soubesse que eu entendia, que lamentava, mas ele manteve o olhar firme no convés.
— Enfim — disse Njord —, Aegir e a família dele são meus, hã, concorrentes há séculos. Eles tentam afogar mortais; eu tento salvá-los. Eles destroem navios; eu construo navios melhores. Não somos propriamente inimigos, mas sempre deixamos o outro com o pé atrás!
Ele enfatizou a palavra pé e esticou os dele mais um pouco. Aquilo estava ficando estranho.
A voz de Jacques zumbiu na minha cabeça com mais força. Elogie os pés dele.
— Você tem lindos pés, vov… er, Njord.
O deus abriu um grande sorriso.
— Ah, essas coisas velhas? É gentileza sua. Sabia que já ganhei um concurso de beleza por causa dos meus pés? O prêmio foi minha esposa!
Olhei para Blitz e Hearth para ver se eu estava imaginando aquela conversa.
Por favor, sinalizou Hearth com zero entusiasmo. Nos conte a história.
— Bem, já que insistem. — Njord olhou para as estrelas, talvez relembrando seus dias de glória em
concursos de beleza de pés. — A maior parte da história não é importante. Os deuses mataram um gigante, Thiazi. A filha dele, Skadi, exigiu vingança. Sangue. Mortes. Blá-blá-blá. Para impedir outra guerra e acabar com a discussão, Odin deixou Skadi se casar com um deus da escolha dela.
Blitzen fez cara de desprezo.
— E ela escolheu… você?
— Não! — Njord bateu palmas com prazer. — Ah, foi tão engraçado. Sabe, Odin deixou Skadi escolher o marido olhando apenas para os pés dos deuses!
— Por quê? — perguntei. — Por que não… narizes? Ou cotovelos?
Njord fez uma pausa.
— Nunca tinha pensado nisso. Não sei! Mas Skadi achou que o marido mais bonito teria os pés mais bonitos, certo? Então ficamos atrás de uma cortina, e ela andou junto à fila, procurando Balder, que era o deus que todo mundo achava incrível. — Ele revirou os olhos e disse só com movimentos labiais: Metido. — Mas eu tinha os pés mais bonitos de todos os deuses, Odin com certeza sabia disso. E Skadi me escolheu! Vocês tinham que ver a cara dela quando puxou a cortina e descobriu com quem ia ter que se casar!
Blitzen cruzou os braços.
— Então Odin usou você para enganar a pobre moça. Você foi um misto de prêmio com armadilha.
— Claro que não! — Njord pareceu mais surpreso do que zangado. — Foi uma ótima combinação!
— Tenho certeza de que foi — falei, ansioso para impedir Blitzen de ser transformado em bote ou qualquer outra punição que um deus da navegação pudesse infligir. — Vocês dois viveram felizes para sempre?
Njord relaxou as costas contra a amurada.
— Bem, não. Nós nos separamos pouco depois. Ela queria morar na montanha. Eu gostava da praia.
Além disso, Skadi teve um caso com Odin. Então nos divorciamos. Mas essa não é a questão! No dia da competição meus pés estavam incríveis! Eles conquistaram a mão de Skadi, a linda giganta do gelo!
Fiquei tentado a perguntar se ele só ganhou a mão dela ou o restante também, mas concluí que não era uma boa ideia.
Blitzen olhou para mim e retorceu as mãos como se quisesse sinalizar alguma coisa feia a respeito de Njord, mas lembrou que o deus conseguia entender linguagem de sinais. Ele suspirou e encarou o colo.
Njord franziu a testa.
— O que houve, sr. Anão? Você não parece impressionado.
— Ah, ele está — garanti. — Só está sem palavras. Nós todos percebemos que… hã, seus pés são muito importantes para você.
Qual é seu segredo de beleza? , perguntou Hearthstone educadamente.
— Vários séculos de pé nas ondas — confidenciou Njord. — Isso alisou os dois até se tornarem essas obras de arte esculpidas que podem ver aqui. Isso e tratamentos regulares com parafina. — Ele mexeu os dedos com unhas brilhantes. — Eu estava na dúvida se devia lustrar ou não, mas acho que lustrar deixa esses fofinhos reluzentes!
Eu assenti e concordei que ele tinha dedos mindinhos bem reluzentes. Também desejei não ter uma família tão esquisita.
— Na verdade, Magnus — disse Njord —, esse era um dos motivos para eu querer me encontrar com você.
— Para me mostrar seus pés?
Ele riu.
— Não, bobinho. — Ao dizer isso, tenho certeza de que ele queria dizer “sim”. — Para te dar alguns
— Sobre como lustrar as unhas dos pés? — perguntou Blitzen.
— Não! — Njord hesitou. — Se bem que eu poderia fazer isso. Tenho duas dicas que podem ajudar na sua missão para impedir Loki.
Gostamos de dicas, sinalizou Hearth.
— A primeira é o seguinte: para chegar ao navio dos mortos, vocês vão precisar passar pela fronteira entre Niflheim e Jötunheim, um território hostil. Mortais podem congelar em segundos. Se isso não matar vocês, os gigantes e draugrs matarão — explicou Njord.
Blitz resmungou:
— Não estou gostando dessa dica.
— Ah, mas existe um porto seguro — acrescentou Njord. — Ou pelo menos um porto potencialmente seguro. Ou pelo menos um porto em que vocês talvez não sejam mortos instantaneamente. Vocês precisam procurar o Lar do Trovão, a fortaleza da minha amada Skadi. Digam que fui eu que enviei vocês.
— Sua amada? — perguntei. — Vocês não estão divorciados?
— Estamos.
— Mas ainda são amigos.
— Eu não a vejo há séculos. — Njord ficou com o olhar distante. — E nossa separação não se deu exatamente em bons termos. Mas preciso acreditar que ela ainda tenha algum afeto por mim. Procurem por ela. Se Skadi oferecer porto seguro a vocês por minha causa, isso vai significar que ela me perdoou.
E se ela não oferecer? , perguntou Hearth.
— Seria uma decepção.
Eu entendi que isso queria dizer: Vocês todos vão parar no freezer da Skadi.
Não gostei de ser a cobaia do meu avô para uma reconciliação com a ex-esposa. Por outro lado, um porto potencialmente seguro parecia melhor do que morrer congelado em vinte segundos.
Infelizmente, eu tinha a sensação de que ainda não tínhamos ouvido a pior dica “útil” de Njord.
Esperei pelo outro lado da moeda, apesar de o deus não parecer ter moeda nenhuma.
— Qual é a segunda dica? — perguntei.
— Hum? — O foco de Njord voltou para mim. — Ah, sim. A lição da minha história sobre meus belos pés.
— Tinha uma lição? — Blitz pareceu genuinamente surpreso.
— É claro! — exclamou Njord. — A coisa mais inesperada pode ser a chave da vitória. Balder era o mais bonito dos deuses, mas, por causa dos meus pés, eu ganhei a garota.
— De quem você se separou e se divorciou depois — comentou Blitz.
— Você pode parar de ficar se prendendo a isso? — Njord revirou os olhos como quem diz: Esses anões de hoje em dia. — O que quero dizer, meu querido neto, é que você vai precisar usar meios inusitados para derrotar Loki. Você começou a perceber isso no salão de Aegir, não foi?
Eu não me lembrava de ter arrancado tufos de cabelo de giganta com os dentes, mas uma bola de cabelos parecia estar se formando na minha garganta.
— O vitupério. Vou ter que vencer Loki em uma competição… de insultos?
Novos fios grisalhos se espalharam como gelo pela barba de Njord.
— Um vitupério é bem mais do que uma simples série de xingamentos — avisou ele. — É um duelo de prestígio, poder, confiança. Eu estava presente no salão de Aegir quando Loki insultou os deuses. Ele nos envergonhou tanto… — Njord pareceu murchar, como se só de pensar no episódio o deixasse mais velho e mais fraco. — Palavras podem ser mais letais que lâminas, Magnus. E Loki é um mestre da retórica. Para vencê-lo, você precisa encontrar o poeta dentro de você. Apenas uma coisa pode lhe dar a
chance de vencer Loki no seu próprio jogo.
— Hidromel — adivinhei. — O hidromel de Kvásir.
A resposta não me pareceu certa. Eu vivi nas ruas por tempo suficiente para ver como “hidromel”
aprimorava as habilidades das pessoas. Fosse qual fosse o veneno: cerveja, vinho, vodca, uísque. As pessoas alegavam precisar disso para aguentar o dia. Chamavam de coragem líquida. Deixava-os mais engraçados, mais inteligentes, mais criativos. Só que não. Só os tornava menos capazes de perceber como estavam agindo de forma idiota e burra.
— Não é um simples hidromel — retrucou meu avô, lendo minha expressão. — O hidromel de Kvásir é o elixir mais valioso já criado. Encontrá-lo não vai ser fácil. — Ele se virou para Hearthstone e Blitzen. — Vocês já sabem, não é? Sabem que essa missão pode ser o fim de vocês dois.
Malditos avôs explosivos
— VOCÊ DEVIA TER começado falando isso — falei, com o coração disparado. — Hearth e Blitz não vão morrer. Isso invalida qualquer acordo.
O sorriso cheio de dentes de Njord era branco como neve escandinava. Eu queria saber o segredo dele para ficar tão calmo. Meditação? Pescaria? Aulas de yoga do Hotel Valhala?
— Ah, Magnus, você é tão parecido com o seu pai.
Eu pisquei.
— Nós dois somos louros e gostamos de ficar ao ar livre?
— Vocês dois têm bom coração — explicou Njord. — Frey faria qualquer coisa pelos amigos. Ele sempre amou com facilidade e desprendimento, embora às vezes sem sabedoria. Você carrega a prova disso no seu pescoço.
Fechei os dedos em volta da pedra de runa de Jacques. Eu conhecia a história: Frey renunciara à Espada do Verão para conquistar o amor de uma bela giganta. Como abriu mão da arma, ele seria morto no Ragnarök. A moral da história, como Jacques gostava de dizer: Primeiro as espadas, depois as namoradas.
Mas, de qualquer jeito, a questão era que praticamente todo mundo morreria no Ragnarök. Eu não culpava meu pai pelas escolhas dele. Se ele não se apaixonasse tão facilmente, eu não teria nascido.
— Tudo bem, eu sou igual ao meu pai. Ainda prefiro meus amigos a uma caneca de hidromel. Não ligo se é de abóbora com especiarias ou de pêssego tipo lambic.
— É de sangue, na verdade — disse Njord. — E de cuspe.
Comecei a ficar enjoado, mas achei que não era por estar viajando de costas.
— Como é que é?
Njord abriu a mão. Acima da palma flutuava a miniatura de um homem de barba vestindo uma túnica de lã. O rosto era simpático e alegre, a expressão capturada no meio de uma gargalhada. Ao vê-lo, foi difícil não me inclinar para a frente, sorrir e querer ouvir sobre o que ele estava rindo.
— Esse era Kvásir. — O tom de Njord beirava a tristeza. — O ser mais perfeito já criado. Milênios atrás, quando os deuses vanires e aesires deram fim à guerra, todos nós cuspimos em um cálice de ouro.
Dessa mistura surgiu Kvásir, nosso tratado de paz ambulante!
De repente, eu não queria mais me inclinar para tão perto do homem cintilante.
— O cara foi feito de cuspe.
— Faz sentido — grunhiu Blitzen. — Saliva de deus é um excelente ingrediente.
Hearthstone inclinou a cabeça. Pareceu fascinado pela figura holográfica. Ele sinalizou: Por que alguém o assassinaria?
— Assassinato? — perguntei.
Njord assentiu, com um brilho nos olhos. Pela primeira vez tive a impressão de que meu avô não era só um cara tranquilo com pés bem cuidados. Ele era uma deidade poderosa que provavelmente poderia esmagar nosso navio com um único pensamento.
— Kvásir perambulou pelos nove mundos levando sabedoria, conselhos e justiça aonde quer que
fosse. Era amado por todos. Até que foi massacrado. Uma coisa horrível. Injustificável.
— Loki? — tentei adivinhar, porque parecia a próxima palavra lógica daquela lista.
Njord deu uma gargalhada curta e amarga.
— Não dessa vez, não. Foram anões. — Ele olhou para Blitzen. — Sem querer ofender.
Blitzen deu de ombros.
— Os anões não são todos iguais. Assim como os deuses.
Se Njord se sentiu insultado, não demonstrou. Ele fechou a mão, e o homenzinho de cuspe desapareceu.
— Os detalhes do assassinato não são importantes. Depois, o sangue de Kvásir foi drenado do corpo e misturado com mel para criar um hidromel mágico. Tornou-se a bebida mais estimada e desejada dos nove mundos.
— Ugh. — Eu coloquei a mão na boca. Minha ideia de quais detalhes deviam ficar de fora de uma história era bem diferente da de Njord. — Você quer que eu beba hidromel feito do sangue de um deus feito de cuspe.
Njord coçou a barba.
— Dito assim, realmente parece ruim. Mas, sim, Magnus. Quem bebe o hidromel de Kvásir encontra seu poeta interior. As palavras perfeitas surgem. A poesia flui. O discurso encanta. As histórias hipnotizam os ouvintes. Com um poder como esse, você poderia ficar cara a cara e insulto a insulto em uma disputa com Loki.
Meus pensamentos se reviraram junto com meu estômago. Por que tinha que ser eu a desafiar Loki?
Minha consciência respondeu, ou talvez tivesse sido Jacques: Porque você se ofereceu no banquete, bobão. Todo mundo ouviu.
Massageei as têmporas, me perguntando se era possível um cérebro literalmente explodir por excesso de informações. Essa era uma morte que eu nunca tinha tido em Valhala.
Hearthstone olhou para mim com preocupação. Quer uma runa? , sinalizou ele. Ou aspirina?
Eu fiz que não.
Então o diário do tio Randolph não era um truque. Ele deixou um plano real e viável. No fim das contas, apesar de tudo que fez, parecia que o velho tolo sentiu algum remorso. Ele tentou me ajudar. Eu não tinha certeza se isso me fazia sentir melhor ou pior.
— E o nome Bolverk? — perguntei. — O que significa?
Njord sorriu.
— Era um dos pseudônimos de Odin. Por muito tempo, os gigantes estiveram de posse de todo o hidromel de Kvásir. Odin usou um disfarce para roubar um pouco para os deuses. E conseguiu. Ele até espalhou gotas de hidromel por Midgard para inspirar bardos mortais. Mas o suprimento do elixir dos deuses acabou séculos atrás. O único hidromel que resta é uma porção pequena, guardada com muito ciúme pelos gigantes. Para conseguir, você vai ter que seguir os passos de Bolverk e ser capaz de roubar algo que apenas Odin já conseguiu.
— Perfeito — murmurou Blitz. — E como é que nós fazemos isso?
— Mais importante — interrompi —, por que a missão é tão perigosa para Hearth e Blitz? E como podemos fazer com que não seja?
Senti um desejo enorme de escrever um bilhete em nome de Hearth e Blitz: Queridas forças cósmicas, por favor, liberem meus amigos do destino mortal. Eles não estão se sentindo muito bem hoje. No mínimo, queria paramentá-los com capacete e coletes salva-vidas antes de mandá-los em frente.
Njord olhou para Hearthstone e Blitzen. Ele sinalizou: Vocês já sabem qual é sua tarefa.
Ele fez um boneco de palito ficar de pé na palma da mão: base; depois, dois punhos, um batendo em
Trabalhem para construir as bases. Ao menos foi o que eu entendi. Tinha sido isso ou: Vocês vão cultivar os campos. Como Njord era o deus da colheita, fiquei na dúvida.
Hearthstone tocou no cachecol e sinalizou com relutância: A pedra?
Njord assentiu. Vocês sabem onde procurar.
Blitzen interrompeu a conversa, sinalizando tão rápido que as palavras ficaram meio confusas. Deixe meu elfo em paz! Nós não podemos fazer isso de novo! É muito perigoso!
Ou ele podia estar querendo dizer: Deixe meu elfo no banheiro! Não podemos fazer esse relógio de pulso! Lixo demais!
— Do que vocês estão falando? — perguntei.
Em voz alta, minhas palavras pareceram incômodas e indesejadas no diálogo silencioso.
Blitzen passou as mãos pelo colete de cota de malha.
— Do nosso trabalho de reconhecimento de amplo espectro, garoto. Mímir nos mandou procurar o hidromel de Kvásir. E aí, ouvimos boatos de certo item de que precisaríamos…
— A pedra de amolar de Bolverk — adivinhei.
Ele assentiu com infelicidade.
— É o único jeito de derrotar o que protege o hidromel. — Ele abriu os braços. — Só não sabemos direito quem são, como faremos isso ou por quê.
Todas me pareceram perguntas importantes.
— A questão é que — continuou Blitz —, se essa pedra estiver onde achamos que está…
Tudo bem, sinalizou Hearthstone. Nós temos que fazer isso. Então é o que faremos.
— Amigo, não — disse Blitz. — Você não pode…
— O elfo está certo — interrompeu Njord. — Vocês dois precisam encontrar a pedra enquanto Magnus e o restante da tripulação navegam para descobrir a localização do hidromel. Estão prontos?
— Opa, opa, opa — falei. — Você vai mandá-los para longe agora? Eles acabaram de chegar!
— Neto, você tem muito pouco tempo até que o navio de Loki esteja pronto para zarpar. É preciso dividir para conquistar.
Eu tinha quase certeza de que a frase dividir para conquistar significava que o exército dividido era conquistado, mas Njord não parecia estar com humor para discutir.
— Deixe que eu vá então. — Fiquei de pé com dificuldade. Eu havia tido o dia mais longo da história dos dias. Estava prestes a desmoronar, mas não havia a menor possibilidade de eu ficar parado enquanto meus amigos mais antigos ficavam à mercê de um perigo mortal. — Ou pelo menos deixe que eu vá com eles.
— Garoto — disse Blitz, a voz falhando. — Está tudo bem.
O fardo é meu, sinalizou Hearth, as mãos empurrando um dos ombros dele para baixo.
Njord me deu outro sorriso calmo. Eu estava quase pronto para dar um soco nos dentes perfeitos do meu avô.
— A tripulação deste navio vai precisar de você, Magnus — avisou ele. — Mas prometo o seguinte: quando Hearthstone e Blitzen tiverem encontrado o paradeiro da pedra de amolar, quando tiverem preparado as bases para o ataque, enviarei os dois de volta para buscar você. E assim vocês três poderão enfrentar o perigo juntos. Se falharem, morrerão como uma equipe. Que tal?
Isso não me fez gritar viva, mas concluí que era a melhor proposta que eu ia receber.
— Tudo bem. — Ajudei Blitz a ficar de pé e dei um abraço nele. Meu amigo tinha cheiro de alga torrada e perfume Anão Noir. — Não ousem morrer sem mim.
— Vou me esforçar, garoto.
Eu me virei para Hearthstone. Coloquei a mão delicadamente em seu peito, um gesto élfico de profunda afeição. Você, eu sinalizei. Em segurança. Senão eu. Com raiva.
Os cantos da boca de Hearth se ergueram, apesar de ele ainda parecer distraído e preocupado. Os batimentos saltavam sob meus dedos como uma pomba assustada batendo as asas.
Você também, sinalizou ele.
Njord estalou os dedos e meus amigos viraram água do mar, como ondas quebrando no casco.
Engoli minha raiva.
Disse para mim mesmo que Njord havia apenas enviado Hearth e Blitz para longe. Não pulverizado os dois. Meu avô prometeu que eu os veria de novo. Eu tinha que acreditar nisso.
— E agora? O que eu faço enquanto eles estiverem longe?
— Ah. — Njord cruzou as pernas em posição de lótus, provavelmente só para exibir as solas dos pés esculpidos pelas ondas. — Sua tarefa é igualmente difícil, Magnus. Você precisa descobrir onde está o hidromel de Kvásir. É um segredo bem guardado, que só alguns gigantes conhecem. Um deles, no entanto, pode ser convencido a contar para você: Hrungnir, que habita a terra humana de Jórvík.
O navio bateu em uma onda enorme, fazendo meu estômago pular.
— Já tive alguns maus encontros com gigantes.
— E quem não teve? — disse Njord. — Quando chegar a Jórvík, você terá que encontrar Hrungnir e desafiá-lo. Se vencer, exija dele a informação de que precisa.
Tremi, pensando na última vez que estive em Jötunheim.
— Diga que esse desafio não vai ser um torneio de boliche.
— Ah, não, fique tranquilo! — disse Njord. — Provavelmente será um combate corpo a corpo até a morte. Você precisa levar alguns amigos. Eu recomendaria a garota bonita, Alex Fierro.
Eu me perguntei se Alex ficaria lisonjeada ou enojada com o elogio, ou se só riria. Eu me perguntei se os pés de Alex eram tão bem cuidados quanto os de Njord. Uma coisa bem idiota de se pensar.
— Tudo bem. Jórvík. Onde quer que isso seja.
— O navio sabe o caminho — assegurou Njord. — Posso garantir navegação segura até lá, mas, se você sobreviver e avançar, seu navio vai ficar mais uma vez vulnerável a ataques de Aegir, Ran, as filhas deles ou… coisas piores.
— Vou tentar conter minha felicidade.
— É uma boa ideia — disse Njord. — Seu elfo e seu anão vão encontrar a pedra de amolar de que você precisa. Você vai descobrir a localização secreta do hidromel de Kvásir, vai derrotar Loki e prender aquele trapaceiro novamente!
— Agradeço o voto de confiança.
— Bem, é que, se você não fizer isso, Loki vai te insultar até que vire uma sombra patética e impotente de si mesmo. Depois, terá que assistir a todos os seus amigos morrendo, um por um, até só sobrar você para sofrer em Helheim por toda a eternidade enquanto os nove mundos ardem em chamas.
Esse é o plano de Loki.
— Ah.
— Enfim! — disse Njord com alegria. — Boa sorte!
Meu avô explodiu em uma névoa marinha fina, borrifando meu rosto com água salgada.
Nada acontece. É um milagre
TUDO NA MAIS completa paz.
Eu nunca tinha apreciado essa expressão até vivenciá-la em primeira mão. Os dois dias seguintes foram chocante e perversamente parados. O céu permaneceu sem nuvens, e os ventos, suaves e frescos. O
mar se estendia em todas as direções como seda verde, me lembrando das fotos que minha mãe me mostrava do artista favorito dela, um cara chamado Christo, que trabalhava ao ar livre e envolvia florestas, prédios e ilhas inteiras em tecido fino. Parecia que Christo havia transformado o Oceano Atlântico em uma enorme instalação de arte.
O Bananão avançava alegremente. Nossos remos amarelos trabalhavam sozinhos. A vela mudava de direção conforme necessário.
Quando falei para a tripulação que estávamos indo para Jórvík, Mestiço grunhiu com infelicidade, mas não quis contar o que sabia sobre o lugar. Pelo menos o navio parecia entender para onde estávamos indo.
Na segunda tarde, me vi no convés ao lado de Mallory Keen, que parecia mais insatisfeita do que o habitual.
— Ainda não entendo por que Blitz e Hearth tiveram que ir embora — resmungou ela.
Eu tinha a leve desconfiança de que a srta. Keen estava interessada em Blitzen, mas não tinha coragem suficiente para perguntar. Cada vez que Blitz ia a Valhala, eu pegava Mallory observando sua barba imaculada e suas roupas perfeitas, depois olhando para Mestiço Gunderson como se questionando por que seu namorado/ex-namorado/renamorado/ex-namorado não podia se vestir tão bem.
— Njord jurou que era necessário — respondi, apesar de ter feito pouca coisa além de me preocupar com Blitz e Hearth. — Algo a ver com otimizar nosso tempo.
— Humf. — Mallory apontou para o horizonte. — Mas aqui estamos nós, navegando e navegando. Seu avô não podia ter levado a gente até Jórvík de uma vez? Teria sido mais útil.
Mestiço Gunderson passou com um esfregão e um balde.
— Útil — murmurou ele. — Diferentemente de algumas pessoas.
— Cala a boca e esfrega! — disparou Mallory. — Quanto a você, Magnus, eu avisei sobre morder a isca de Loki. E o que você fez? Foi lá e se voluntariou para um vitupério. Você é tão burro quanto aquele berserker!
Com isso, ela subiu no alto do mastro, o lugar mais solitário do navio, e ficou encarando o mar com a testa franzida.
Mestiço resmungou enquanto esfregava o convés:
— Megera irlandesa. Não dê atenção a ela, Magnus.
Eu queria que não tivéssemos que fazer nossa viagem com os dois brigando. Nem com Sam fazendo jejum por causa do ramadã. Nem com Alex tentando ensinar a ela como resistir ao controle de Loki.
Pensando bem, eu queria que não tivéssemos que fazer aquela viagem e pronto.
— Qual é a história de Mallory com Loki? — perguntei. — Ela parece…
Eu não sabia bem que palavra usar: preocupada? Ressentida? Homicida?
Mestiço deu de ombros, fazendo as tatuagens de serpente ondularem nas costas. Ele olhou para o alto do mastro, como se pensando em mais xingamentos para Mallory.
— Não posso contar uma história que não é minha. Mas morder a isca para fazer uma coisa de que mais tarde vai se arrepender… Mallory entende o que é isso. Foi assim que ela morreu.
Pensei nos meus primeiros dias em Valhala, quando Mestiço pegou no pé de Mallory por ter tentado desarmar um carro-bomba com a cara. Tinha alguma peça faltando nessa história. Afinal, ela foi corajosa o bastante para chamar a atenção de uma valquíria.
— Magnus, você tem que entender — disse Mestiço —, nós dois estamos indo para os lugares onde morremos. Pode ser diferente pra você. Você morreu em Boston e ficou em Boston. Não está morto há tempo suficiente para ver o mundo mudar ao seu redor. Mas para nós? Mallory não tem vontade nenhuma de ver a Irlanda de novo, mesmo que seja apenas a costa. E eu… eu nunca quis voltar a Jórvík.
Senti uma pontada de culpa.
— Cara, sinto muito mesmo. Foi lá que você morreu?
— Ah. Não o lugar exato, mas perto. Eu ajudei a conquistar a cidade com Ivar, o Sem-Ossos. Serviu de local de acampamento. Mal podia ser considerada uma cidade, na época. Só espero que não tenha mais vatnavaettir no rio. — Ele estremeceu. — Isso seria péssimo.
Eu não tinha ideia do que era vatnavaettir, mas se Mestiço Gunderson considerava ruim, eu não queria conhecer.
Mais tarde, conversei com T.J., que estava na proa olhando as ondas, tomando café e comendo seus biscoitos. Por que ele gostava daquelas coisas eu não sabia dizer. Era como um grande cream cracker sem sal feito com cimento em vez de farinha.
— Oi — cumprimentei.
Ele parecia distraído.
— Ah, oi, Magnus. — Ele me ofereceu um biscoito de cimento. — Quer um?
— Não, obrigado. Acho que vou precisar dos meus dentes mais tarde.
Ele assentiu como se não tivesse entendido a piada.
Desde que contei para a tripulação sobre minha conversa com Njord, T.J. ficou quieto e retraído, o mais perto que ele já tinha chegado de pensativo.
Ele molhou o biscoito no café.
— Eu sempre quis visitar a Inglaterra. Só nunca imaginei que fosse acontecer depois de eu estar morto, no meio de uma missão para impedir o Ragnarök, em um navio de guerra amarelo.
— Inglaterra?
— É pra lá que estamos indo. Você não sabia?
Quando pensava na Inglaterra, o que não acontecia com frequência, eu pensava nos Beatles, em Mary Poppins e em homens usando chapéus-coco, carregando guarda-chuvas e bebendo chá. Não pensava em hordas de vikings e nem em lugares chamados Jórvík. Mas aí lembrei que, quando conheci Mestiço Gunderson, ele me contou que morreu durante uma invasão à Ânglia Oriental, que era um reino na Inglaterra uns mil e duzentos anos atrás. Os vikings gostavam mesmo de dar um passeio.
T.J. se apoiou na amurada. Ao luar, uma fina linha âmbar se destacou no pescoço dele: resquícios de uma bala minié que o acertou de raspão na primeira batalha dele como soldado do exército da União. Eu achava estranho que fosse possível morrer, chegar a Valhala, ressuscitar diariamente por cento e cinquenta anos e continuar com uma pequena cicatriz da sua vida mortal.
— Na guerra — disse ele —, nós tínhamos medo de que a Grã-Bretanha se declarasse a favor dos rebeldes. Os britânicos tinham abolido a escravatura bem antes de nós, da União, mas eles precisavam do algodão do sul para abastecer a indústria têxtil. O fato de o Reino Unido ter permanecido neutro e não ter
ajudado os estados do sul foi crucial para a vitória do norte na guerra. Por isso sempre gostei muito dos britânicos. Eu sonhava em ir lá um dia e agradecer em pessoa.
Tentei notar sarcasmo ou ironia no tom dele. T.J. era filho de uma escrava liberta. Ele lutou e morreu por um país que manteve sua família acorrentada por gerações. Até carregava o nome de um escravocrata bem famoso. Mas T.J. dizia nós quando se referia à União. Ainda usava o uniforme com orgulho depois de mais de um século. Sonhava em atravessar o oceano para agradecer aos britânicos só porque fizeram o favor de ficarem neutros.
— Como você consegue sempre ver o lado bom de tudo? — perguntei, impressionado. — Você é tão… positivo.
T.J. riu e quase engasgou com o biscoito.
— Magnus, amigo, se você tivesse me visto logo depois que cheguei a Valhala… Não. Aqueles primeiros anos foram difíceis. Os soldados da União não foram os únicos a irem para Valhala. Vários rebeldes morreram com espadas em punho. Valquírias não ligam para o lado da guerra em que você luta, nem se sua causa é justa. Ligam só para bravura e honra. — Ah. Notei um toque de reprovação na voz dele. — Nos dois primeiros anos que fui einherji, vi alguns rostos familiares entrarem no salão de jantar…
— Como você morreu? — perguntei. — A história real.
Ele passou o dedo na borda da caneca.
— Já contei. Atacando Fort Wagner, na Carolina do Sul.
— Mas essa não é a história inteira, não é? Alguns dias atrás você me alertou sobre aceitar desafios.
Falou como se já tivesse passado por isso.
Eu observei a linha do maxilar de T.J., a tensão acumulada ali. Talvez fosse por isso que ele gostava tanto do biscoito duro. Mastigá-lo fazia ele trincar os dentes.
— Um tenente da Confederação me escolheu — disse ele, por fim. — Mas não tenho ideia do motivo.
Nosso regimento aguardava a ordem para atacar as ameias. O inimigo estava poupando munição. Nenhum dos dois lados podia se mexer.
Ele olhou para mim.
— Aí um oficial rebelde se levantou nas linhas inimigas. Apontou com a espada bem para mim, como se me conhecesse, e gritou: “Você aí, criou…” Bom, já deu para perceber do que ele me chamou. “Venha lutar comigo homem a homem!”
— O que teria sido suicídio.
— Prefiro encarar como uma exibição incrível de coragem.
— Você quer dizer que foi?
A caneca tremeu nas mãos dele. O pedaço de biscoito afundado no café começou a se dissolver e se expandir como uma esponja, líquido marrom encharcando o amido branco.
— Quando se é filho de Tyr — explicou ele —, não dá para recusar um duelo. Se alguém disser Lute comigo, você luta. Cada músculo do meu corpo reagiu àquele desafio. Acredite, eu não queria lutar contra aquele… cara.
Ficou claro que ele estava pensando em outra palavra no lugar de cara.
— Mas eu não podia recusar. Então me levantei e ataquei as fortificações rebeldes sozinho. Mais tarde, depois que morri, soube que minha ação deflagrou a ofensiva que levou à queda de Fort Wagner. O
restante do pessoal seguiu meu exemplo. Devem ter achado que eu estava tão maluco que era melhor me ajudarem. Mas eu só queria matar aquele tenente. E matei. Jeffrey Toussaint. Atirei uma vez no peito dele e cheguei perto o bastante para enfiar a baioneta na sua barriga. Claro que, àquela altura, os rebeldes já tinham atirado em mim umas trinta vezes. Eu caí no meio deles e morri sorrindo para um bando de
Confederados zangados. Quando percebi, estava em Valhala.
— Pelas cuecas de Odin — murmurei, um xingamento que eu reservava para ocasiões especiais. —
Espera… o tenente que você matou. Como você descobriu o nome dele?
T.J. deu um sorriso pesaroso.
Por fim, eu entendi.
— Ele acabou em Valhala também.
T.J. assentiu.
— Andar setenta e seis. Eu e o velho Jeffrey… nós passamos uns cinquenta anos nos matando sem parar, todos os dias. Eu estava com tanto ódio. Aquele homem era tudo que eu desprezava e vice-versa.
Fiquei com medo de acabarmos como Hunding e Helgi: inimigos imortais, ainda trocando insultos milhares de anos depois.
— Mas não foi assim?
— É até engraçado. Eu cansei. Parei de procurar Jeffrey Toussaint no campo de batalha. Eu me dei conta de uma coisa: não dá para sentir ódio para sempre. Não vai afetar nem um pouco a pessoa que você odeia, mas vai te envenenar, com certeza.
Ele passou a mão na cicatriz da bala.
— Quanto a Jeffrey, ele parou de aparecer no salão de jantar. Nunca mais vi o cara. Isso aconteceu com muitos dos einherjar da Confederação. Eles não duraram. Trancaram-se nos quartos, nunca mais saíram. Acabaram desaparecendo. — T.J. deu de ombros. — Acho que era mais difícil para eles se ajustarem. Você acha que o mundo é de um jeito, depois descobre que na verdade é bem maior e mais estranho do que imaginava. Se não conseguir expandir seus horizontes, não vai se dar bem na pós-vida.
Eu me lembrei de estar com Amir Fadlan no telhado, sob a propaganda do Boston Citgo, segurando os ombros dele e desejando que sua mente mortal não se fraturasse sob o peso de ver a ponte Bifrost e os nove mundos.
— É — concordei. — Expandir os horizontes dói.
T.J. sorriu, mas eu não via mais como um sorriso fácil. Foi difícil de conquistar, tão corajoso quanto um soldado atacando sozinho as linhas inimigas.
— Você aceitou seu desafio, Magnus. Vai ter que encarar Loki cara a cara. Não dá para voltar atrás.
Mas você não precisa atacar as fortificações sozinho. Nós vamos estar com você.
Ele deu um tapinha no meu ombro.
— Agora, se me der licença… — T.J. me entregou a mistura de café e biscoito duro como se fosse um presente fantástico. — Vou tirar uma soneca!
A maior parte da tripulação dormia sob o convés. Nós descobrimos que o Bananão oferecia quantos quartos nós precisássemos para ficar à vontade, independentemente do tamanho do casco. Eu não fazia ideia de como aquilo funcionava. Apesar de ser fã de Doctor Who, eu não estava com vontade de testar os limites da nossa TARDIS amarela. Preferia dormir no convés, observando as estrelas, lugar em que eu estava na nossa terceira manhã no mar quando Alex me acordou.
— Anda logo, Chase — ordenou ela. — Nós vamos testar as habilidades de Samirah. Vou ensinar a ela como resistir a Loki nem que isso acabe matando a gente. E quando digo “a gente”, quero dizer você.
Macaco!
PERCEBI MEU PROBLEMA imediatamente.
Eu não devia ter apresentado Alex para Percy Jackson. Parece que ela aprendeu bastante com os métodos implacáveis de treinamento dele. Talvez Alex não conseguisse conjurar animais marinhos, mas podia virar um. E isso talvez fosse até pior.
Nós começamos com Samirah e Alex lutando uma com a outra… no convés, na água, no ar. Meu trabalho era gritar animais aleatórios de uma pilha de cartões que Alex tinha feito. Eu gritava “MACACO!”, e Sam tinha que se transformar em macaco no meio do combate, enquanto Alex constantemente mudava de forma, de humana para animal para humana de novo, dando seu melhor para vencer Sam.
Sempre que Alex estava em forma humana, ela fazia provocações como:
— Vamos lá, al-Abbas! Você chama isso de mico-leão-dourado? Se esforce!
Depois de uma hora daquele combate à la Imagem & Ação, o rosto de Samirah estava brilhante de suor. Ela tinha tirado o hijab e prendido o cabelo castanho comprido para poder lutar melhor. (Ela nos considerava parte da família, então não tinha problema ficar sem o hijab quando necessário.) Sam se apoiou na amurada para descansar. Eu quase ofereci água, mas aí lembrei que ela estava de jejum.
— Acho que a gente deveria descansar até a noite — sugeri. — Depois que escurecer, você pode comer e beber. Isso deve estar te matando.
— Eu estou bem. — Sam não mentia muito bem, mas forçou um sorriso. — Obrigada.
Alex andou pelo convés consultando a prancheta. Uma prancheta, como se ela estivesse almejando ser gerente-assistente no Hotel Valhala ou algo parecido. Estava usando calça jeans skinny verde e uma blusa rosa, a parte da frente bordada com lantejoulas em um gesto de mão obsceno. O cabelo tinha começado a crescer, as raízes pretas fazendo-a parecer ainda mais imponente, como um leão com juba volumosa.
— Muito bem, Magnus, agora é sua vez — anunciou ela. — Pegue Jacques e se prepare para a batalha.
Jacques ficou feliz em ajudar.
— Hora do combate? Legal! — Ele flutuou em círculos em volta de mim. — Com quem a gente vai lutar?
— Com a Sam.
Jacques hesitou.
— Mas eu gosto da Sam.
— A gente só está treinando — expliquei. — Tente matar ela sem matar ela de verdade.
— Ufa! Tudo bem. Posso fazer isso.
Alex tinha um apito. Não havia limites para a crueldade dela. Jacques e eu lutamos contra Sam: Jacques atacando com a lâmina, obviamente; eu com um esfregão, que duvidei de que tivesse despertado pavor no coração de Sam. Sam desviou e pulou e tentou nos acertar com o machado, a lâmina enrolada em uma das velas do barco. Sam tinha que mudar de forma sempre que Alex apitava, coisa que ela fazia em intervalos aleatórios sem dar bola para a situação de Sam.
Acho que a ideia era condicionar Samirah a mudar de forma em qualquer momento e qualquer lugar que fosse necessário, sem hesitar.
Jacques estava se segurando, percebi. Só acertou Sam duas vezes. Eu tive menos sucesso com meu esfregão. Fazer manobras de combate no convés de um navio viking era uma das muitas habilidades importantes que eu não tinha. Eu tropeçava nos remos. Ficava enrolado nas cordas. Duas vezes, bati a cabeça no mastro e caí direto no mar. Normal para mim, em outras palavras.
Sam não tinha esse tipo de dificuldade. Ela me deixou todo roxo e dolorido. A única vez em que acertei um golpe foi quando Alex apitou em um momento particularmente ruim. No meio do pulo, Sam virou uma arara e voou de bico no cabo do meu esfregão. Ela piou, voltou à forma humana e caiu sentada no convés, uma nuvem de penas azuis e vermelhas voando em torno dela.
— Desculpa. — Fiquei cheio de vergonha. — Nunca bati em uma arara.
Apesar do nariz sangrando, Sam riu.
— Tudo bem. Vamos tentar de novo.
Nós lutamos até ficarmos exaustos. Alex disse que nosso treino estava encerrado, e nós três nos encostamos na amurada de escudos.
— Ufa! — Jacques parou ao meu lado. — Estou exausto!
Como toda energia que ele gastava sairia de mim assim que eu o segurasse, decidi deixar Jacques ficar na forma de espada por mais um tempo. Eu só estava pronto para entrar em coma depois do almoço.
Mas pelo menos eu podia almoçar.
Olhei para Samirah.
— Essa coisa de ramadã… eu não sei como você consegue.
Ela ergueu a sobrancelha.
— Você quer dizer por que eu faço?
— Isso também. Você tem mesmo que aguentar o jejum por um mês inteiro?
— Tenho, Magnus — disse ela. — Talvez você fique surpreso de saber que o mês do ramadã dura um mês.
— Fico feliz de você não ter perdido o senso de humor.
Ela secou o rosto com uma toalha, coisa que aparentemente não era proibida.
— Eu já passei da metade do mês. Não é tão ruim. — Ela franziu a testa. — Claro, se todos nós morrermos antes do fim do ramadã, será bem irritante.
— É — concordou Alex. — Loki bota fogo nos nove mundos enquanto você está de jejum e não pode nem tomar um gole d’água? Ui.
Sam deu um tapa no braço dela.
— Você tem que admitir, Fierro, eu estava mais concentrada hoje. O ramadã ajuda.
— Ah, talvez — disse Alex. — Ainda acho que você é louca de fazer jejum, mas não estou tão preocupada quanto antes.
— Sinto que minha mente está mais clara — comentou Sam. — Mais vazia, mas de um jeito bom. Não estou hesitando tanto. Vou estar pronta quando enfrentar Loki, inshallah.
Sam não usava muito esse termo, mas eu sabia que significava se Deus quiser. Embora obviamente a ajudasse, nunca inspirou muita confiança em mim. Eu vou me sair bem, inshallah era meio como dizer Vou me sair bem, supondo que eu não seja atropelado por um caminhão primeiro.
— Bom — continuou Alex —, nós só vamos saber o que vai acontecer quando você enfrentar o querido mãe-barra-pai. Mas estou levemente otimista. E você não matou Magnus, o que acho que foi bom.
— Obrigado — murmurei.
Até essa pequena consideração de Alex, a ideia de que minha morte pudesse ser ligeiramente desagradável para ela, me deu uma sensação calorosa no peito. Eu era patético.
No resto da tarde, ajudei no Bananão. Apesar da navegação automática, ainda havia muita coisa a fazer: lavar o convés, desembaraçar os cordames, impedir que Mallory e Mestiço se matassem. As tarefas me impediam de pensar muito no meu confronto iminente com Loki ou no que Blitz e Hearth poderiam estar fazendo. Eles já estavam longe havia três dias, e agora nós tínhamos menos de duas semanas até o solstício de verão, talvez menos tempo até o gelo derreter o suficiente para o navio de Loki zarpar. Quanto tempo Blitz e Hearth podiam demorar a encontrar uma pedra?
Naturalmente, a ideia de procurar uma pedra de amolar trouxe de volta lembranças ruins da minha última missão com Blitz e Hearth, quando estávamos tentando encontrar a pedra Skofnung. Tentei me convencer de que não havia conexão. Desta vez, não haveria luz do sol brutal de Álfaheim, nem nøkk violinistas do mal, nem pai elfo sádico e carrancudo.
Em pouco tempo, Hearth e Blitzen voltariam e nos informariam sobre uma série de novos obstáculos perigosos para enfrentarmos! Toda vez que uma onda quebrava no casco, eu via o borrifo do mar e torcia para se solidificar nos meus amigos. Mas eles não reapareceram.
Duas vezes durante a tarde, pequenas serpentes do mar com uns seis metros de comprimento passaram nadando por nós. Elas olharam o navio, mas não atacaram. Concluí que ou não gostavam de presas sabor banana ou ficaram com medo da cantoria de Jacques.
Minha espada me seguia pelo convés, alternando entre cantar sucessos do Abba (vikings são muito fãs de Abba) e me contar histórias sobre antigamente, quando ele e Frey passeavam pelos nove mundos espalhando luz do sol e felicidade e, de tempos em tempos, matando pessoas.
Conforme o dia avançava, aquilo se tornou um teste de resistência: eu queria que Jacques voltasse à forma de runa, o que me faria desmaiar pelo cansaço do nosso esforço conjunto, ou queria ficar ouvindo o cara cantar por mais tempo?
Por fim, perto do anoitecer, não consegui mais aguentar. Fui tropeçando até a popa do navio, onde tinha colocado meu saco de dormir. Eu me deitei, apreciando o som de Samirah fazendo sua oração noturna na proa, a poesia melódica suave e relaxante.
Pareceu estranho a Oração do Crepúsculo a bordo de um navio viking cheio de ateus e pagãos. Por outro lado, os ancestrais de Samirah enfrentavam vikings desde a Idade Média. Eu duvidava de que fosse a primeira vez que orações para Alá tinham sido ditas a bordo de um navio viking. O mundo, os mundos, eram bem mais interessantes por causa da mistura constante.
Fiz Jacques voltar para a forma de pingente e mal tive tempo de prendê-lo no pescoço antes de desmaiar.
Nos meus sonhos, testemunhei um assassinato.
Homem de cuspe vs. serra elétrica. Adivinhem quem ganhou?
EU ESTAVA AO lado de quatro deuses no cume de uma colina, próximo das ruínas de uma cabana de sapê.
Odin apoiava-se em um cajado grosso de carvalho, os elos da cota de malha cintilando embaixo da capa azul de viagem. Uma lança estava presa nas costas. Havia uma espada pendurada na cintura. Seu único olho brilhava por baixo do chapéu azul de abas largas. Com a barba grisalha, o tapa-olho e as armas variadas, ele parecia um homem incapaz de decidir se ia para uma festa de Halloween de bruxo ou de pirata.
Ao lado dele encontrava-se Heimdall, o guardião da ponte Bifrost. Os smartphones ainda não deviam ter sido inventados, porque ele não estava tirando fotos a cada cinco segundos. O deus usava uma armadura branca de lã grossa, com duas espadas cruzadas presas nas costas. Gjallar, a Trombeta do Juízo Final, estava pendurada no cinto, o que não me pareceu muito seguro. Qualquer um poderia ter surgido por trás dele, soprado a trombeta e começado o Ragnarök de bobeira.
O terceiro deus, Frey, meu pai, estava ajoelhado ao lado das cinzas de uma fogueira. Ele usava uma calça jeans surrada e uma camisa de flanela, apesar de eu não entender como aquelas roupas já podiam ter sido inventadas. Talvez Frey, na verdade, tivesse sido o primeiro criador de tendências dos nove mundos. O cabelo louro caía até os ombros. A barba volumosa brilhava à luz do sol. Se houvesse justiça no mundo, Thor, o deus do trovão, teria esta aparência: louro, bonito e majestoso, e não a máquina de peido ruiva e musculosa que eu tivera o desprazer de conhecer.
O quarto deus eu não conhecia, mas reconheci da demonstração holográfica de Njord: Kvásir, o tratado de paz ambulante entre os aesires e vanires. Ele era um homem bonito considerando que se originou de cuspe divino. O cabelo e a barba, ambos pretos e encaracolados, balançavam na brisa.
Estava envolto em um manto comprido, o que lhe dava um ar de mestre Jedi. Ele se ajoelhou ao lado do meu pai, os dedos pairando acima dos restos queimados da fogueira.
Odin se inclinou na direção dele.
— O que você acha, Kvásir?
Aquela pergunta por si só me mostrou quanto os deuses respeitavam Kvásir. Normalmente, Odin não pedia a opinião de ninguém. Ele só dava respostas, normalmente na forma de enigmas ou apresentações de Power Point.
Kvásir tocou nas cinzas.
— É uma fogueira de Loki, com certeza. Ele esteve aqui recentemente. Ainda está na região.
Heimdall observou o horizonte.
— Não o vejo em um raio de oitocentos quilômetros, a não ser que… Não, é um irlandês com um belo corte de cabelo.
— Nós temos que capturar Loki — resmungou Odin. — Aquele vitupério foi a gota d’água. Ele precisa ser preso e punido!
— Uma rede — anunciou Kvásir.
Frey franziu a testa.
— Como assim?
— Está vendo? Loki decidiu queimar as provas. — Kvásir mostrou um padrão de linhas cruzadas em meio às cinzas que mal dava para identificar. — Ele estava tentando prever nossos atos, considerando todas as formas pelas quais poderíamos capturá-lo. Ele teceu uma rede e, logo em seguida, a queimou.
Kvásir se levantou.
— Cavalheiros, Loki se disfarçou de peixe. Nós precisamos de uma rede!
Os outros pareceram impressionados, como quem diz: Como você fez isso, sr. Holmes?
Achei que Kvásir ia gritar Elementar, meus caros! , mas ele disse apenas:
— Para o rio mais próximo!
E saiu andando, os outros deuses correndo atrás dele.
Meu sonho mudou. Tive vislumbres da vida de Kvásir enquanto viajava pelos nove mundos, oferecendo conselhos sobre tudo, desde a melhor época para o cultivo a como preencher corretamente a declaração de imposto de renda. Todos os mortais o amavam. Em todas as cidades, castelos e vilarejos ele era recebido como herói.
Certo dia, depois de preencher um formulário particularmente difícil de imposto de renda para uma família de gigantes, ele estava na estrada para Midgard quando foi parado por um par de anões; sujeitinhos franzinos, peludos e cheios de verrugas com sorrisos maliciosos.
Infelizmente, eu os reconheci: os irmãos Fjalar e Gjalar. Uma vez, eles me venderam um passeio de barco só de ida. De acordo com Blitzen, eles também eram ilustres ladrões e assassinos.
— Olá! — disse Fjalar do alto de uma rocha. — Você deve ser o famoso Kvásir!
Ao lado dele, Gjalar acenou com entusiasmo.
— Que sorte! Nós ouvimos muitos elogios sobre você!
Kvásir, o ser mais inteligente já criado, deveria ter tido sabedoria suficiente para dizer Sinto muito, não estou interessado em comprar nada e continuar andando.
Infelizmente, Kvásir também era gentil, então ele apenas levantou a mão em cumprimento.
— Oi, bons anões! Sou mesmo Kvásir. Como posso ajudar?
Fjalar e Gjalar trocaram olhares, como se não conseguissem acreditar na sorte.
— Hã, bom, você pode ser nosso convidado para o jantar!
Gjalar indicou uma colina próxima, onde a entrada de uma caverna estava protegida por uma cortina de couro meio rasgada.
— Nós não estamos interessados em assassinar você — prometeu Fjalar. — Nem em roubar suas coisas. Muito menos em drenar seu sangue, que deve ter propriedades mágicas incríveis. Nós só queremos oferecer nossa hospitalidade!
— Agradeço imensamente — disse Kvásir. — Mas sou esperado em Midgard hoje. Muitos humanos precisam da minha ajuda.
— Ah, entendi — comentou Fjalar. — Você gosta de… ajudar. — Ele falou isso da forma como alguém diria Você gosta de carne crua. — Bom, na verdade, nós estamos tendo uma dificuldade enorme de, hã, fazer nosso fluxo de caixa.
Kvásir franziu a testa em solidariedade.
— Entendi. Pode ser mesmo difícil.
— Sim! — Gjalar uniu as mãos. — Você pode nos ajudar, ó, Sábio?
Foi como aquela parte em todos os filmes de terror em que a plateia grita: Não faça isso! Mas a compaixão de Kvásir superou toda a sua sabedoria.
— Muito bem — disse o deus. — Me mostrem todos os recibos!
Ele seguiu os anões para a caverna.
Eu queria correr atrás dele, avisar o que ia acontecer, mas meus pés ficaram grudados no chão. Dentro
da caverna, Kvásir começou a gritar. Alguns momentos depois, ouvi o som de uma serra elétrica, depois um líquido sendo derramado em um grande caldeirão. Se eu fosse capaz de vomitar dormindo, teria vomitado.
A cena mudou uma última vez.
Eu me vi no jardim de uma mansão de três andares, em uma fileira de casas coloniais de frente para um parque. Devia ser Salém ou Lexington, uma daquelas cidades sossegadas pré-revolucionárias perto de Boston. Colunas pintadas de branco ladeavam a entrada da casa. Arbustos de madressilva exalavam um perfume doce. Uma bandeira americana tremulava na varanda. A cena era tão bucólica que poderia ser Álfaheim se a luz do sol fosse um pouco mais intensa.
A porta da frente se abriu, e uma figura magra rolou pelos degraus de tijolo como se tivesse sido jogada.
Alex Fierro parecia ter uns quatorze anos, talvez dois ou três anos a menos de quando a conheci. Um filete de sangue escorria de sua têmpora esquerda. Ela engatinhou pela calçada, as palmas das mãos raladas da queda deixando manchas de sangue no cimento como uma pintura com esponja.
Ela não parecia assustada, e sim amarga e fervendo de raiva, com lágrimas de frustação nos olhos.
Na porta da casa, um homem de meia-idade apareceu: cabelo curto e preto com fios grisalhos, calça preta sem vincos, sapatos pretos engraxados, uma camisa branca tão engomada e imaculada que meus olhos doeram. Imaginei Blitzen dizendo: Você precisa de um toque de cor, meu amigo!
O homem era bem parecido com Alex. O rosto era bonito da mesma forma angulosa, como um diamante que se pode admirar, mas não tocar sem se cortar.
Ele não deveria ser assustador. Não era grande nem forte nem tinha aparência violenta. Vestia-se como um banqueiro. Mas havia algo de apavorante em seus dentes cerrados, na intensidade do olhar, na forma como os lábios tremiam, como se ele ainda não tivesse dominado as expressões humanas. Tive vontade de ficar entre ele e Alex, mas não consegui me mexer.
Em uma das mãos, o homem segurava um objeto de cerâmica do tamanho de uma bola de futebol americano; algo ovoide marrom e branco. Vi que era um busto com dois rostos diferentes lado a lado.
— NORMAL! — O homem jogou a escultura de cerâmica na direção de Alex. Quebrou-se na calçada.
— É só o que quero de você! Que seja normal! É pedir muito?
Alex finalmente conseguiu se levantar. Ela encarou o pai. Uma saia malva caía até a altura dos joelhos por cima de uma legging preta. A blusa verde sem mangas não a protegeu durante a queda. Os cotovelos pareciam ter sido esfolados por um batedor de carne. O cabelo estava mais comprido do que eu já tinha visto, um rabo de cavalo verde saindo das raízes pretas como uma chama da lareira de Aegir.
— Eu sou normal, pai. — Ela pronunciou a palavra como se fosse o insulto mais distorcido em que conseguiu pensar.
— Chega de ajuda. — O tom dele era duro e frio. — Chega de dinheiro.
— Eu não quero o seu dinheiro.
— Ah, ótimo! Porque ele vai todo para os meus verdadeiros filhos. — Ele cuspiu nos degraus. —
Você tinha tanto potencial. Entendia o ofício quase tão bem quanto seu avô. E olhe só para você agora.
— A arte — corrigiu Alex.
— O quê?
— É uma arte, não um ofício.
O pai dela acenou com nojo para as peças quebradas de cerâmica.
— Isso não é arte. É lixo.
O sentimento estava claro, mesmo ele não precisando dizer em voz alta: Você também escolheu ser lixo.
Alex olhou com raiva para o pai. O ar entre eles se tornou seco e amargo. Cada um parecia estar esperando o outro fazer um gesto definitivo: pedir desculpas e ceder ou cortar os laços para sempre.
Alex não obteve a opção que queria.
O pai dela balançou a cabeça com consternação, como se não conseguisse acreditar que sua vida tinha chegado àquele ponto. Em seguida, se virou e entrou, batendo a porta.
Eu acordei com um baque.
— Que foi?!
— Relaxa, dorminhoco.
Alex Fierro estava de pé olhando para mim. Era a Alex do presente, usando uma capa de chuva de um amarelo tão forte que me perguntei se nosso navio tinha começado a assimilá-la. O som alto que me despertou do sonho foi ela largando um cantil cheio ao lado da minha cabeça. Ela jogou uma maçã no meu peito.
— Café da manhã — disse Alex. — E almoço também.
Esfreguei os olhos. Ainda conseguia ouvir a voz do pai dela e sentir o cheiro das madressilvas do jardim.
— Quanto tempo fiquei apagado?
— Umas dezesseis horas. Não aconteceu muita coisa, então deixamos você dormir. Mas agora, está na hora.
— De quê?
Eu me sentei no saco de dormir. Meus amigos andavam pelo convés, amarrando cordas e prendendo remos. Uma garoa gelada caía ao nosso redor. Nosso navio estava ancorado em uma margem de pedra, em um rio com casas de tijolo nas margens, não muito diferentes das de Boston.
— Bem-vindo a Jórvík. — Mestiço parecia infeliz. — Ou, como os mortais modernos chamam, York, na Inglaterra.
Somos atacados por umas pedras
CASO ESTEJAM QUERENDO saber, a Velha York não se parece em nada com Nova York.
Parece mais velha.
Magnus Chase, mestre da descrição. De nada, pessoal.
Mestiço não ficou animado de voltar para seu antigo local de acampamento.
— Nenhuma cidade viking de respeito deveria ficar tão longe do mar — resmungou ele. — Não sei por que Ivar, o Sem-Ossos, quis vir para este lugar. Nós perdemos a manhã inteira só para chegar até aqui, quarenta quilômetros rio Ouse acima.
— Rio Onze? — perguntei.
— Ouse — corrigiu T.J., abrindo um sorriso. — Tipo “use” só que com um “O” na frente. Eu li sobre ele em um guia de viagens!
Estremeci. Que nome péssimo. Também achei perturbador que T.J. tivesse pesquisado tanto sobre a Inglaterra. Por outro lado, cento e cinquenta anos era bastante tempo para ficar em Valhala, e a biblioteca do hotel era impressionante.
Olhei para bombordo. Água verde suja envolvia nosso casco, a chuva pontilhando a superfície. A correnteza parecia viva demais, desperta demais. Por mais que Percy Jackson tivesse me treinado, eu não queria cair lá.
— Você também sente, não é? — Mestiço ergueu o machado como se estivesse pronto para partir para cima do Ouse. — Os vatnavaettir.
Mestiço disse a palavra como se a achasse verdadeiramente horrível, como covardia ou aparador de barba.
— O que são? — perguntei.
— E eles têm um nome mais pronunciável? — acrescentou Alex.
— São espíritos da natureza — explicou Mallory. — Nós temos lendas similares na Irlanda.
Chamamos de each-uisge, cavalos d’água.
Mestiço fez um ruído de deboche.
— Os irlandeses têm lendas similares porque roubaram dos nórdicos.
— Mentira — rosnou Mallory. — Os celtas estiveram na Irlanda muito antes de vocês, vikings grosseirões, invadirem.
— Grosseirões? O reino viking de Dublin era o único que merece ser citado na sua ilha infeliz!
— Então… — Samirah se meteu entre os pombinhos. — Por que esses cavalos d’água são perigosos?
Mestiço franziu a testa.
— Bom, eles podem formar um bando e, se forem provocados, destruir nosso navio. Imagino que tenham se segurado até agora porque nunca se depararam com um barco amarelo antes. Além disso, se alguém for idiota o bastante para tocar neles…
— Eles grudam na pele — explicou Mallory —, arrastam a pessoa para o fundo do rio e a afogam.
As palavras dela fizeram meu estômago se contrair. Uma vez, fiquei grudado em uma águia mágica que me levou em um passeio de demolição pelos telhados de Boston. A ideia de ser arrastado para o fundo
do Ouse pareceu ainda menos divertida.
Alex passou os braços em volta de Mallory e de Mestiço.
— Então tá. Parece que vocês dois são especialistas em cavalos d’água. Deviam ficar a bordo e defender o Bananão enquanto o restante de nós vai caçar gigantes!
— Hã — falei. — Eu posso transformar o navio em lenço…
— Nada disso! — retrucou Mestiço. — Não tenho desejo nenhum de botar o pé em Jórvík de novo.
Eu nem seria útil. O lugar mudou muito em mil e duzentos anos. Vou ficar no navio, mas não preciso da ajuda de Mallory para defendê-lo.
— Ah, é? — Mallory olhou para ele com raiva, as mãos nos cabos das facas. — E por acaso você conhece canções em gaélico para acalmar os cavalos d’água? Eu não vou deixar este navio aos seus cuidados.
— Bom, e eu não vou deixar aos seus!
— Pessoal! — Samirah ergueu as mãos como uma juíza de boxe.
Ela nunca gostou muito de xingar, mas tive a sensação de que estava lutando novamente com a regra de não falar palavrão do ramadã. Engraçado como isso funciona: assim que dizem que não podemos fazer uma coisa, sentimos um desejo absurdo de fazer.
— Se vocês dois insistem em ficar a bordo — disse ela —, eu também vou ficar. Sou boa com cavalos. Posso voar se ficar encrencada. E, em um piscar de olhos — ela mexeu o pulso, fazendo a lança de luz aparecer —, posso explodir qualquer coisa que nos atacar. Ou posso explodir vocês dois se não se comportarem.
Mestiço e Mallory pareceram igualmente infelizes com essa decisão, o que significava que era um bom meio-termo.
— Você ouviu a moça — disse Alex. — O grupo em terra vai ser formado por mim, T.J. e Cara Louro.
— Excelente! — T.J. esfregou as mãos. — Mal posso esperar para agradecer aos britânicos!
• • •
T.J. não estava brincando.Enquanto andávamos pelas ruas estreitas de York, debaixo de uma garoa fria e cinzenta, ele cumprimentava todo mundo que via e tentava apertar a mão das pessoas.
— Oi! — disse ele. — Sou de Boston. Obrigado por não apoiar a Confederação!
As reações dos moradores variavam de “Hã?” a “Sai pra lá!” a algumas expressões tão elaboradas que eu me perguntava se aquelas pessoas eram descendentes de Mestiço Gunderson.
T.J. não se deixou abater. Continuou andando, acenando e apontando.
— O que vocês precisarem! — oferecia ele. — Eu devo uma a vocês. — Ele sorriu para mim. —
Amei este lugar. As pessoas são tão simpáticas.
— Aham. — Observei os telhados baixos, pensando que, se havia um gigante na cidade, eu deveria conseguir vê-lo. — Se você fosse um jötunn em York, onde estaria escondido?
Alex parou na frente de várias placas de rua. Com o cabelo verde aparecendo embaixo do capuz da capa de chuva amarela, ela parecia a garota-propaganda de uma marca de peixe frito.
— Talvez a gente possa começar aqui. — Ela apontou para a placa do alto. — O Centro Viking de Jórvík.
Parecia um plano tão bom quanto qualquer outro, principalmente porque não conseguimos pensar em mais nada.
Nós seguimos as placas, serpenteando pelas ruas estreitas e sinuosas com casas de tijolos, pubs e lojas. Podia ser o bairro North End de Boston, só que York era uma mistura histórica ainda maior. Tijolos vitorianos dividiam espaço com pedras medievais, que davam lugar a mansões elisabetanas, que ficavam ao lado de um salão de bronzeamento artificial que oferecia vinte minutos por cinco libras.
Vimos muitas pessoas no caminho. O trânsito estava leve. Eu me perguntei se era feriado ou se os moradores teriam ouvido falar do navio viking amarelo invadindo pelo rio Ouse e fugido para as colinas.
Eu decidi que era melhor assim. Se houvesse mais ingleses para cumprimentar, T.J. teria nos atrasado.
Seguimos por uma rua chamada Shambles, que significa bagunça, o que me pareceu uma boa descrição, mas uma péssima propaganda. A rua em si tinha a largura ideal para uma bicicleta passar, supondo que o ciclista fosse magro. As casas ocupavam a calçada em ângulos doidos, como em uma casa de espelhos de parque de diversões, e cada andar era um pouco maior do que o de baixo, dando a impressão de que o bairro inteiro ia desabar se déssemos um passo em falso. Mal consegui respirar até sairmos em uma avenida mais ampla.
Por fim, as placas nos levaram a uma área comercial, onde um prédio baixo de tijolos estava coberto de faixas verdes: VIKINGS! HISTÓRIA VIVA! EMOÇÃO! UMA EXPERIÊNCIA TOTALMENTE INTERATIVA!
Tudo isso pareceu ótimo, exceto pela placa na entrada: FECHADO.
— Ah. — T.J. testou a maçaneta. — Devemos invadir?
Eu não via de que isso adiantaria. O lugar era um museu para turistas, obviamente. Por melhor que a experiência interativa fosse, seria uma decepção depois de morar em Valhala. Eu também não precisava de parafernália viking da loja de souvenirs. Meu pingente de runa/espada falante era suficiente.
— Pessoal — disse Alex, a voz tensa —, aquela parede se mexeu?
Segui o olhar dela. Do outro lado da praça, havia ruínas de blocos de pedra calcária que podia ter sido parte de um castelo ou do antigo muro da cidade.
Pelo menos foi o que pensei até a pilha de pedras se mexer.
Eu já tinha visto Samirah sair de debaixo do hijab de camuflagem algumas vezes. Parecia que ela tinha saído de um tronco de árvore ou de uma parede branca ou da vitrine do Dunkin’ Donuts. A visão das pedras me deu a mesma sensação de vertigem.
Minha mente precisou reprocessar o que eu estava vendo: não um pedaço de muro em ruínas, mas um gigante de seis metros de altura cuja aparência imitava perfeitamente a pedra calcária. A pele áspera era marrom e bege e cheia de bolinhas como a do monstro-de-gila. Havia pedregulhos grudados na barba e no cabelo comprido e desgrenhado. Ele usava uma túnica e uma calça de tecido grosso, o que apenas complementava o visual de muro da fortaleza. Eu não fazia ideia de por que ele estava encostado no mercado. Cochilando? Mendigando? Gigantes mendigavam?
Ele fixou os olhos âmbar em nós, a única parte dele que parecia viva.
— Ora, ora — ribombou o gigante. — Estou esperando há séculos que vikings apareçam no Centro Viking. Mal posso esperar para matar vocês!
— Boa ideia, Alex — balbuciei. — Vamos seguir as placas até o Centro Viking. Viva.
Pela primeira vez, ela não teve resposta mordaz. Só olhou para o gigante, a boca aberta, o capuz da capa de chuva escorregando para trás.
O rifle de T.J. tremia nas mãos dele como vara verde.
Eu não me sentia muito mais corajoso. Claro que já tinha visto gigantes mais altos. Já tinha visto gigantes na forma de águia, gigantes do fogo, gigantes bêbados e gigantes usando camisas ridículas de boliche. Mas nunca vira um gigante da pedra aparecer bem na minha frente e declarar com alegria que queria me matar.
De pé, os ombros ficavam na altura dos telhados das casas de dois andares à nossa volta. Os poucos
pedestres simplesmente o contornavam como se ele fosse uma construção inconveniente.
Ele puxou o poste mais próximo e o arrancou do chão junto com um pedaço da calçada. Só quando o apoiou no ombro foi que percebi que era a arma dele: um martelo com a cabeça do tamanho de uma piscininha de plástico.
— Os vikings já foram mais sociáveis — ribombou ele. — Pensei que eles voltariam ao centro comunitário para julgamentos por combate. Ou pelo menos para jogar bingo! Mas vocês são os primeiros que vejo em… — Ele inclinou a cabeça descabelada, um gesto que pareceu uma avalanche de sheepdogs.
— Por quanto tempo eu fiquei sentado aqui? Devo ter cochilado! Ah, bom. Digam seus nomes, guerreiros. Eu gostaria de saber quem vou matar.
Nesse momento, eu teria gritado: Reivindico direitos de convidados! Mas, infelizmente, não estávamos dentro da casa do gigante. Eu duvidava de que direitos de convidados se aplicassem a uma rua pública em uma cidade humana.
— Você é o gigante Hrungnir? — perguntei, torcendo para parecer mais confiante do que desesperado.
— Sou Magnus Chase. Estes são Thomas Jefferson Jr. e Alex Fierro. Nós viemos negociar com você!
O colosso de pedra descabelado olhou de um lado para outro.
— Claro que sou Hrungnir! Você está vendo algum outro gigante da pedra por aqui? Infelizmente, matar vocês não é negociável, pequeno einherji, mas podemos discutir os detalhes, se quiser.
Engoli em seco.
— Como você sabia que somos einherjar?
Hrungnir sorriu, os dentes pareciam as muralhas de um castelo.
— Vocês têm cheiro de einherjar! Agora, vamos lá. O que vocês queriam negociar? Uma morte rápida? Morte por esmagamento? Talvez uma linda morte sendo pisoteados e depois serem raspados da sola do meu sapato!
Eu olhei para T.J., que balançou a cabeça vigorosamente. O sapato não!
Alex ainda não tinha se movido. Eu só sabia que ela estava viva porque piscou para tirar a chuva dos olhos.
— Ó, Grande e Bege Hrungnir — falei —, nós procuramos a localização do hidromel de Kvásir!
Hrungnir franziu a testa, as sobrancelhas pedregosas se erguendo, os lábios de tijolos formando um arco.
— Ora, ora. Estão dando uma de Odin, é? O velho truque de Bolverk?
— Hã… talvez.
— Eu poderia dar essa informação. Eu estava com Baugi e Suttung quando eles guardaram o hidromel no novo esconderijo — disse o gigante depois de rir.
— Certo. — Acrescentei silenciosamente Baugi e Suttung à minha lista mental de “coisas que não faço a menor ideia do que sejam”. — Foi sobre isso que viemos negociar. A localização do hidromel!
Percebi que já tinha dito isso.
— Qual é seu preço, ó, Poderoso Ser Bege?
Hrungnir coçou a barba, fazendo com que pedras e poeira caíssem na frente da túnica.
— Para eu considerar essa troca, suas mortes teriam que ser muito divertidas. — Ele olhou T.J., depois a mim e, por fim, seus olhos encontraram Alex Fierro. —Ah. Você tem cheiro de argila! Tem as habilidades necessárias, não tem?
Eu olhei para Alex.
— Habilidades necessárias?
— Tenho, sim — concordou Alex.
— Excelente! — trovejou Hrungnir. — Faz séculos que os gigantes da pedra não encontram um
oponente digno para um duelo tradicional dois contra dois! Uma luta até a morte! Vamos marcar para amanhã ao amanhecer?
— Opa, calma aí — falei. — Nós não podemos fazer uma competição de cura?
— Ou jogar bingo — propôs T.J. — Bingo é legal.
— Não! — gritou Hrungnir. — Meu nome significa brigão, pequeno einherji. Você não vai roubar uma boa luta de mim! Nós vamos seguir as antigas regras de combate. Eu contra… Hum…
Eu não queria me oferecer, mas tinha visto Jacques acabar com gigantes maiores do que aquele cara.
Levantei a mão.
— Tudo bem, eu…
— Não, você é magrelo demais. — Hrungnir apontou para T.J. — Eu te desafio!
— E eu ACEITO! — gritou T.J.
E piscou, como se pensando Valeu mesmo, pai.
— Que bom — disse o gigante. — E meu segundo vai lutar com o segundo de vocês, que vai ser feito por ela!
Alex cambaleou para trás como se tivesse sido empurrada.
— Eu… não posso. Eu nunca…
— Ou eu posso matar os três agora — disparou Hrungnir. — Aí vocês não vão ter chance de encontrar o hidromel de Kvásir.
Minha boca parecia tão cheia de poeira quanto a barba do gigante.
— Alex, do que ele está falando? O que você tem que fazer?
Pela expressão temerosa nos olhos dela, percebi que ela entendia a exigência de Hrungnir. Eu só a tinha visto nervosa assim uma vez: no primeiro dia em Valhala, quando achou que fosse ficar presa no mesmo gênero por toda a eternidade.
— Eu… — Ela umedeceu os lábios. — Tudo bem. Eu faço.
— É assim que se fala! — exclamou Hrungnir. — Quanto ao lourinho aqui, acho que ele pode ser o garoto que traz água. Bom, vou lá fazer meu segundo. Vocês deviam fazer o mesmo. Vamos nos encontrar amanhã ao amanhecer em Konungsgurtha!
O gigante se virou e saiu andando pelas ruas de York, os pedestres saindo do caminho como se ele fosse um ônibus desgovernado.
Eu me virei para Alex.
— O que você acabou de aceitar fazer?
O contraste entre os olhos heterocromáticos pareceu ainda maior do que o habitual, como se o mel e o castanho estivessem se separando, se acumulando à esquerda e à direita.
— Precisamos encontrar um estúdio de cerâmica — disse ela. — E rápido.
Eu enrolo massinha até morrer
NÃO OUVIMOS HERÓIS dizerem isso com frequência.
Rápido, Garoto Maravilha! Para o estúdio de cerâmica!
Mas o tom de Alex não deixou dúvida de que se tratava de uma questão de vida ou morte. Acabou que a oficina de cerâmica mais próxima, um lugar chamado Earthery, ficava na minha rua favorita, Shambles.
Não encarei isso como um bom presságio. Enquanto T.J. e eu esperávamos do lado de fora, Alex passou alguns minutos conversando com o proprietário, que finalmente saiu, sorrindo e segurando uma pilha de cédulas coloridas de dinheiro.
— Divirtam-se, rapazes! — disse ele enquanto se apressava pela rua. — Que maravilha! Obrigado!
— Obrigado! — T.J. acenou. — E valeu por não se envolver na nossa Guerra Civil!
Entramos e vimos Alex avaliando o material: mesas de trabalho, tornos, prateleiras de metal repletas de peças de cerâmica inacabadas, potes cheios de ferramentas, um armário com pedaços de argila molhada em sacos plásticos. No fundo do estúdio, uma porta levava a um pequeno banheiro e outra ao que parecia ser um depósito.
— Pode ser que dê certo — murmurou Alex. — Talvez…
— Você comprou este lugar? — perguntei.
— Não seja bobo. Só paguei ao dono por vinte e quatro horas de uso exclusivo. Paguei bem.
— Em libras — observei. — Onde você conseguiu tanta grana?
Ela deu de ombros, a atenção voltada para a quantidade de sacos de argila disponíveis.
— Isso se chama estar preparado, Chase. Eu percebi que viajaríamos pelo Reino Unido e pela Escandinávia. Então trouxe euros, coroas suecas, coroas norueguesas e libras. Cortesia da minha família.
E por cortesia quero dizer que roubei.
Eu me lembrei do sonho que tive com Alex na frente da casa dela, do jeito agressivo com que falou Eu não quero seu dinheiro. Talvez ela quisesse dizer que só queria nos termos dela. Eu respeitava isso. Mas mesmo assim não fazia ideia de como tinha conseguido tantas moedas diferentes.
— Pare de olhar de boca aberta e me ajude — ordenou ela.
— Eu não… eu não estava de boca aberta.
— Nós precisamos juntar essas mesas — disse ela. — T.J., vá ver se tem mais argila lá nos fundos.
Precisamos de bem mais.
— Deixa comigo!
T.J. correu para o depósito.
Alex e eu juntamos as mesas, formando uma superfície de trabalho grande o bastante para jogar pingue-pongue. T.J. trouxe sacos de argila em quantidade adequada para fazer uma picape de cerâmica.
Alex olhou para a matéria-prima e para os tornos. Bateu com a unha nos dentes, nervosa.
— Não temos tempo suficiente — murmurou ela. — Secar, polir, assar…
— Alex — interrompi. — Se você quer nossa ajuda, vai ter que explicar o que vamos fazer.
T.J. se afastou de mim para o caso de Alex pegar o garrote.
Ela só me olhou de cara feia.
— Você saberia o que estou fazendo se tivesse feito comigo as aulas de cerâmica básica em Valhala, como pedi.
— Eu… já tinha um compromisso.
Na verdade, não gostei da ideia de fazer cerâmica até a morte, principalmente se envolvia ser jogado em um forno quente.
— Gigantes da pedra têm uma tradição chamada tveirvigi — explicou Alex. — Combate duplo.
— É como o combate individual, einvigi — acrescentou T.J. — Só que com tveir em vez de ein.
— Fascinante — falei.
— Pois é! Eu li em um…
— Não diga guia de viagem.
T.J. baixou o olhar.
Alex pegou uma caixa com variadas ferramentas de madeira.
— Sinceramente, Chase, não temos tempo para atualizar você. T.J. vai lutar com Hrungnir. Eu vou fazer um guerreiro de cerâmica que vai lutar com o guerreiro de cerâmica do gigante. Você vai ficar trazendo água ou vai curar ou vai fazer o que for preciso. É bem simples.
Eu olhei para os sacos de argila.
— Um guerreiro de cerâmica. De cerâmica mágica?
— Cerâmica normal — repetiu Alex, como se fosse óbvio. — T.J., você pode começar cortando essas placas? Preciso de fatias de dois centímetros e meio, umas sessenta ou setenta.
— Claro! Posso usar seu garrote?
Alex riu alto e por bastante tempo.
— De jeito nenhum. Deve ter um naquele pote cinza.
T.J. saiu emburrado para procurar um cortador normal.
— E você — Alex se virou para mim — vai fazer rolinhos.
— Rolinhos.
— Eu sei que você consegue enrolar argila. É igual fazer cobrinha de massinha.
Eu me perguntei como ela conhecia meu segredo mais sombrio: eu gostava de massinha quando criança. (E quando digo criança, quero dizer até uns onze anos.) Ressentido, admiti que isso estava no meu escopo de talentos.
— E você?
— A parte mais difícil é usar o torno — explicou ela. — Os componentes mais importantes têm que ser amaciados.
Quando ela disse amaciados, eu sabia que estava falando de dar forma à argila no torno e não de amaciar alguém na base da pancada, se bem que com Alex nunca dava para ter certeza.
— Tudo bem, rapazes — disse ela. — Mãos à obra.
Depois de algumas horas fazendo rolinhos, meus ombros começaram a doer. Minha camisa estava grudada na pele de suor. Quando fechei os olhos, cobras de argila surgiram no interior das minhas pálpebras.
Meu único alívio era levantar para mudar a estação do radinho do proprietário sempre que Alex ou T.J. não gostavam de uma música. T.J. preferia música militar, mas as rádios inglesas tocavam uma quantidade absurdamente pequena de música de bandas marciais. Alex gostava de rock japonês, também em pouca quantidade nas rádios AM/FM. Por motivos que não sou capaz de explicar, os dois chegaram a um consenso em Duran Duran.
De tempos em tempos, eu levava para Alex refrigerantes do frigobar do proprietário. O favorito dela era Tizer sabor cereja. Eu não gostei, mas Alex ficou viciada. Tanto que os lábios dela ficaram
vermelhos como os de um vampiro, o que achei perturbador e estranhamente fascinante ao mesmo tempo.
Enquanto isso, T.J. corria de um lado para outro entre o corte de argila e o forno, que ele estava esquentando para um dia épico de fogaréu. Ele parecia ter prazer especial em fazer buracos mais ou menos da grossura de um lápis nas placas de argila para não racharem quando entrassem no forno. Fez isso cantarolando “Hungry Like the Wolf”, o que, considerando minha história pessoal com lobos, não era minha música favorita. T.J. parecia alegre para um cara que logo pela manhã travaria um duelo com um gigante da pedra de seis metros de altura. Decidi não lembrar a ele que, se morresse ali na Inglaterra, continuaria morto, por mais simpáticos que os ingleses fossem.
Eu tinha colocado minha mesa de trabalho o mais perto possível do torno de Alex para poder conversar com ela. Normalmente esperava para fazer uma pergunta quando ela estivesse posicionando um novo pedaço de argila. Com as duas mãos ocupadas, tinha menos chance de ela bater.
— Você já fez isso antes? — perguntei. — Já fez um sujeito de cerâmica?
Ela olhou para mim, o rosto salpicado de porcelana branca.
— Tentei algumas vezes. Nada grande assim. Mas a minha família… — Ela mexeu na argila, modelando até formar algo parecido com uma colmeia. — Como Hrungnir disse, nós temos as habilidades necessárias.
— Sua família.
Tentei imaginar Loki sentado a uma mesa, fazendo cobrinhas de massinha.
— Os Fierro. — Alex me lançou um olhar cauteloso. — Você realmente não sabe? Nunca ouviu falar da Fierro Cerâmicas?
— Hã… deveria?
Ela sorriu, como se achasse minha ignorância revigorante.
— Se você entendesse alguma coisa sobre utensílios de cozinha ou decoração de interiores, talvez.
Era uma marca famosa uns dez anos atrás. Mas tudo bem. Não estou falando daquelas porcarias industrializadas que meu pai vende hoje em dia. Estou falando da arte do meu avô. Ele começou o negócio quando emigrou de Tlatilco.
— Tlatilco. — Eu tentei identificar o lugar. — Fica perto da I-95?
Alex riu.
— Não tem motivo para você já ter ouvido falar. É um lugarzinho no México. Atualmente é só um bairro da Cidade do México. De acordo com meu avô, nossa família faz cerâmica desde antes dos astecas. Tlatilco era uma cultura superantiga.
Ela apertou os polegares no centro da colmeia, abrindo as laterais da nova cerâmica. Ainda parecia meio mágico para mim o jeito como ela dava forma a um vaso delicado e perfeitamente simétrico usando apenas pressão e movimento giratório. Nas poucas vezes que tentei usar um torno eu quase quebrei os dedos e consegui transformar um pedaço de argila em um pedaço de argila um pouco mais feio.
— Quem sabe o que é verdade? — continuou Alex. — São só histórias de família. Lendas. Mas meu abuelo levava a sério. Quando se mudou para Boston, ele continuou fazendo as coisas do jeito tradicional. Mesmo que estivesse fazendo só um prato ou uma caneca, ele criava cada peça à mão, com muito orgulho e atenção aos detalhes.
— Blitzen gostaria disso.
Alex se afastou e olhou para a cerâmica.
— É, meu avô teria dado um bom anão. Depois, meu pai assumiu os negócios e decidiu ir para o lado comercial. Ele se vendeu. Começou a produzir linhas de pratos de cerâmica em massa, fez negócio com redes de lojas de decoração. Ganhou milhões antes de as pessoas começarem a perceber que a qualidade estava despencando.
Relembrei as palavras amargas do pai dela no meu sonho: Você tinha tanto potencial. Entendia o ofício quase tão bem quanto seu avô.
— Ele queria que você desse continuidade aos negócios da família.
Ela me observou, sem dúvida questionando como adivinhei. Quase mencionei o sonho, mas Alex realmente não gostava de gente dentro da cabeça dela, mesmo sem querer. E eu não gostava quando gritavam comigo.
— Meu pai é um idiota — disse ela. — Ele não entendia como eu podia gostar de cerâmica, mas não querer ganhar dinheiro com isso. E não gostava que eu ouvisse as ideias malucas do meu avô.
— Como assim?
Na mesa de trabalho, T.J. continuava fazendo buracos nas placas de argila com uma cavilha, criando diferentes desenhos, como estrelas e espirais.
— Isso até que é divertido — admitiu ele. — É terapêutico!
Os lábios vermelhos-refrigerante de Alex se curvaram nos cantos.
— Meu abuelo fazia cerâmica para viver, mas seu verdadeiro interesse era nas esculturas dos nossos ancestrais. Ele queria entender a parte da espiritualidade. Não era fácil. Quer dizer… depois de tantos séculos, tentar entender uma herança enterrada debaixo de tantas outras coisas: olmecas, astecas, espanhóis, mexicanos. Como saber o que é verdadeiro? Como reivindicar isso para si?
Tive a sensação de que as perguntas eram retóricas e não exigiam respostas, o que achei ótimo. Eu não conseguia pensar direito com T.J. cantarolando “Rio”, do Duran Duran, e fazendo carinhas sorridentes na argila.
— Mas seu avô conseguiu — eu supus.
— Ele achava que sim. — Alex girou o torno de novo, passando uma esponja pelas laterais da escultura. — Eu também. Meu pai… — A expressão dela ficou amarga. — Bem, ele gostava de botar a culpa pelo… você sabe, pelo jeito que eu sou… em Loki. Ele não gostou nem um pouco quando passei a me afirmar pelo lado Fierro da família.
Meu cérebro parecia minhas mãos: com uma camada de argila por cima sugando toda a umidade.
— Desculpa, não entendi. O que isso tem a ver com guerreiros mágicos de cerâmica?
— Você vai ver. Pode pegar o celular aqui no meu bolso e ligar para a Sam? Conte tudo pra ela. E
fique quieto para eu poder me concentrar.
Mesmo com ordens dela, tirar uma coisa do bolso da calça de Alex enquanto ela estava vestindo a tal calça parecia um bom jeito de acabar morto.
Eu consegui, tendo só alguns pequenos ataques de pânico, e descobri que o celular tinha pacote de dados no Reino Unido. Algo que ela devia ter providenciado na mesma ocasião em que resolveu a questão do roubo do dinheiro.
Mandei uma mensagem para Samirah e contei tudo.
Alguns minutos depois, o celular vibrou com a resposta dela. OK . Boa sorte. Lutando. GTG.
Eu me perguntei se o GTG naquele contexto queria dizer got to go, Gunderson trucidando a garota ou gigantes torturando Gunderson. Decidi pensar de forma otimista e escolhi a primeira opção, em que ela quis dizer que precisava ir e não podia mais falar.
Conforme a tarde avançava, as mesas dos fundos foram ficando cheias de quadrados de porcelana que pareciam placas de armadura. Alex me ensinou a moldar os cilindros que serviriam de braços e pernas juntando os rolinhos. Os esforços dela no torno de cerâmica produziram pés, mãos e uma cabeça, todos em formato de vasos e decorados meticulosamente com runas vikings.
Ela passou horas trabalhando nos rostos; eram dois, lado a lado, como a obra de arte que o pai dela estilhaçou no meu sonho. O rosto da esquerda tinha pálpebras pesadas, olhos desconfiados, um bigode
curvo de vilão de desenho animado e uma boca enorme fazendo careta. O rosto da direita era sorridente, tinha buracos ocos no lugar dos olhos e a língua para fora. Vendo os dois rostos juntos, não consegui deixar de pensar nos olhos de cores diferentes de Alex.
À noite, colocamos todas as peças do guerreiro de cerâmica em nossa mesa quádrupla, criando um Frankenstein de dois metros e meio, ainda meio desmontado.
— Bem. — T.J. enxugou a testa. — Essa coisa me daria medo se eu tivesse que enfrentá-la em batalha.
— Concordo — falei. — Por falar nisso, por que os dois rostos?
— É uma máscara. Meus ancestrais de Tlatilco faziam muitas figuras com duas faces ou um rosto com duas metades — explicou Alex. — Ninguém sabe exatamente por quê. Meu avô achava que representavam dois espíritos em um único corpo.
— Como meu velho amigo lenape Mãe William! — exclamou T.J. — Acho que as culturas no México também tinham argrs! — Ele se corrigiu rapidamente: — Digo, indivíduos trans, de gênero fluido.
Argr, o termo viking para alguém que muda de gênero, significava literalmente não másculo, que não era um termo aprovado por Alex.
Eu observei a máscara.
— Não me surpreende que o conceito de dualidade nesse tipo de arte chame a sua atenção. Seu avô…
ele entendia quem você era.
— Entendia — concordou Alex — e respeitava. Quando ele morreu, meu pai se esforçou para desacreditar as ideias do meu abuelo, destruir a arte dele e me transformar em uma boa empresária. Eu não permiti.
Ela massageou a nuca, talvez tocando inconscientemente na tatuagem de oito feita de serpentes. Alex tinha aceitado sua habilidade de metamorfa e se recusava a deixar Loki estragar isso. Fez o mesmo com a cerâmica, apesar de seu pai ter transformado o negócio da família em algo que ela desprezava.
— Alex — falei —, quanto mais descubro sobre você, mais eu te admiro.
Pela expressão em seu rosto, Alex pareceu achar graça e ficar exasperada ao mesmo tempo, como se eu fosse um cachorrinho fofo que tinha acabado de fazer xixi no tapete.
— Guarde a admiração até eu poder dar vida a essa coisa. Esse é o verdadeiro truque. Enquanto isso, nós todos precisamos de um pouco de ar fresco. — Ela jogou outro bolo de dinheiro para mim. — Vamos jantar. Você paga.
Eu vou a um aquecimento zumbi
JANTAMOS OS TRADICIONAIS fish and chips em um lugar chamado Mr. Chippy. T.J. achou o nome hilário.
Enquanto comíamos, ele ficava dizendo “MR. CHIPPY!” com uma voz alta e alegre, o que não teve graça para o cara da caixa registradora.
Depois, voltamos para o estúdio de cerâmica para passarmos a noite. T.J. sugeriu nos juntarmos ao restante da tripulação no navio, mas Alex insistiu que precisava ficar de olho no guerreiro de cerâmica.
Ela mandou uma mensagem para atualizar Sam.
A resposta de Sam: Beleza. Tudo bem por aqui. Lutando com cavalos d’água.
Lutando com cavalos d’água foi escrito com emojis: um punho, uma onda, um cavalo. Achei que Sam já devia ter lutado com tantos que decidiu abreviar.
— Você também arrumou um plano de dados internacional para ela — eu observei.
— Ah, sim — disse Alex. — Tenho que manter contato com a minha irmã.
Eu queria perguntar por que não fez o mesmo para mim, mas então lembrei que não tenho celular. A maioria dos einherjar não se dava ao trabalho. Primeiro, arrumar um número e pagar a conta era difícil quando se estava oficialmente morto. Além do mais, nenhum plano de dados cobria o resto dos nove mundos. E o sinal era horrível em Valhala. Acreditava que a culpa fosse dos telhados de escudos de ouro.
Apesar disso tudo, Alex insistia em ter celular. Como ela conseguia isso eu não fazia ideia. Talvez Samirah a tivesse registrado em algum plano familiar do tipo viva&morta.
Assim que chegamos ao estúdio, Alex foi conferir o projeto. Eu não sabia se ficava aliviado ou decepcionado pelo guerreiro não ter se montado e ganhado vida ainda.
— Daqui a algumas horas eu checo novamente — disse ela. — Agora vou…
Ela cambaleou até a única poltrona confortável da sala, uma poltrona reclinável suja de argila do proprietário, apagou e começou a roncar. E como roncava! T.J. e eu decidimos dormir no depósito, onde estaríamos mais protegidos da versão Alex de um cortador de grama moribundo.
Improvisamos colchões com lonas.
T.J. limpou o rifle e amolou a baioneta, seu ritual noturno.
Eu me deitei e fiquei observando a chuva cair na claraboia. Havia um ponto no vidro pelo qual a chuva vazava, pingando sobre as prateleiras de metal e enchendo o aposento com um cheiro de ferrugem úmida, mas não me importei. Fiquei agradecido pelo barulho constante.
— O que vai acontecer amanhã? — perguntei a T.J. — Digo, exatamente o quê?
T.J. riu.
— Exatamente? Vou lutar com um gigante de seis metros de altura até um de nós morrer ou não poder lutar mais. Enquanto isso, o guerreiro de cerâmica do gigante vai lutar com o guerreiro de cerâmica de Alex até um deles virar pó. Alex, não sei, deve ficar lá torcendo pela criação dela, eu acho. Você me cura se puder.
— Isso é permitido?
T.J. deu de ombros.
— Até onde eu sei, qualquer coisa é permitida a você e Alex desde que não participem da luta.
— Não incomoda você que seu oponente seja pelo menos quatro metros mais alto?
T.J. empertigou as costas.
— Ei, eu não sou tão baixo assim! Tenho quase um metro e oitenta!
— Como você pode estar tão calmo?
Ele inspecionou a lâmina da baioneta, segurando perto do rosto de forma a parecer cortar sua face ao meio como uma máscara dupla.
— Eu já venci as probabilidades tantas vezes, Magnus. Na ilha James, Carolina do Sul, eu estava ao lado de um amigo meu, Joe Wilson, quando um atirador rebelde… — Ele fez uma arma com os dedos e puxou o gatilho. — Podia ter sido eu. Podia ter sido qualquer um de nós. Eu caí no chão, rolei e olhei para o céu, até que uma sensação de calma tomou conta de mim. Eu não senti mais medo.
— É, o nome disso é estado de choque.
Ele balançou a cabeça.
— Não, eu vi as valquírias, Magnus. Mulheres em cavalos alados circulando nosso regimento.
Finalmente acreditei no que minha mãe sempre me contou, sobre meu pai ser Tyr. Aquelas histórias malucas sobre deuses nórdicos em Boston. Naquele momento, eu decidi… que tudo bem. O que quer que acontecesse, tanto faz. Se meu pai é o deus da coragem, seria melhor que eu o deixasse orgulhoso.
Eu não sabia qual seria minha reação. Estava feliz de ter um pai que sentia orgulho de mim por curar pessoas, gostar de estar na natureza e tolerar sua espada falante.
— Você já conheceu seu pai? — perguntei. — Foi ele quem deu essa baioneta pra você, não foi?
T.J. enrolou a lâmina no tecido de camurça como se a estivesse colocando para dormir.
— A baioneta estava me esperando quando cheguei em Valhala. Eu nunca vi Tyr cara a cara. — T.J.
deu de ombros. — Mesmo assim, cada vez que aceito um desafio, eu me sinto mais próximo dele. Quanto mais perigoso, melhor.
— Deve estar se sentindo super próximo dele agora — supus.
T.J. sorriu.
— É. Bons momentos.
Eu me perguntei como um deus podia ficar cento e cinquenta anos sem reconhecer um filho corajoso como T.J., mas meu amigo não era o único. Eu sabia de vários einherjar que não conheciam os pais. Falar com os filhos pelo Facetime não era prioridade para deidades nórdicas, talvez por terem centenas ou milhares de filhos. Ou talvez porque os deuses sejam uns cretinos.
T.J. se deitou no colchão de lona.
— Agora eu tenho que decidir como matar aquele gigante. Acho que um ataque frontal direto não vai dar certo.
Para um soldado da Guerra Civil, até que ele estava pensando fora da caixinha.
— E qual é seu plano? — perguntei.
— Não faço ideia! — Ele puxou o quepe do Exército da União sobre os olhos. — Talvez alguma coisa me ocorra nos sonhos. Boa noite, Magnus.
E então T.J. começou a roncar quase tão alto quanto Alex.
Não havia como escapar.
Fiquei deitado, me perguntando como Sam, Mestiço e Mallory estavam, a bordo do navio. Também questionei por que Blitzen e Hearthstone ainda não tinham voltado e por que estavam demorando cinco dias só para descobrir a localização de uma pedra de amolar. Njord tinha prometido que eu os veria de novo antes de as coisas realmente perigosas acontecerem. Eu deveria tê-lo feito jurar por seus pés imaculadamente cuidados.
Mas minha principal preocupação era com meu duelo iminente com Loki: uma competição de insultos
com a deidade nórdica mais eloquente de todas. O que eu tinha na cabeça? Por mais mágico que fosse o hidromel de Kvásir, como isso poderia me ajudar a vencer Loki em seu próprio jogo?
Sem pressão, claro. Se eu perder serei reduzido a uma sombra de mim mesmo e aprisionado em Helheim enquanto todos os meus amigos morrem e o Ragnarök destrói os nove mundos. Talvez eu pudesse comprar um livro de insultos vikings na loja de souvenirs do Centro Viking.
T.J. seguiu roncando. Eu admirava a coragem e a positividade dele. Questionava se teria um décimo dessa presença de espírito quando tivesse que enfrentar Loki.
Minha consciência respondeu NÃO! e começou a chorar compulsivamente.
Graças ao barulho da chuva, finalmente consegui dormir, mas meus sonhos não foram relaxantes nem tranquilizadores.
Eu me vi novamente em Naglfar, o navio dos mortos. Grupos de draugrs andavam de um lado para outro do convés, trapos e armaduras mofadas pendurados aos corpos, as lanças e espadas corroídas como fósforos queimados. Os espíritos dos guerreiros tremulavam dentro das caixas torácicas como chamas azuis agarrando-se aos restos da lenha.
Milhares e milhares se arrastavam na direção do convés frontal, onde, penduradas nos mastros, faixas pintadas à mão oscilavam ao vento gelado: ANIMAÇÃO, GALERA! VAMOS NESSA, DRAUGR! RAGNARÖK AND
ROLL! e outros slogans tão horrendos que só podiam ter sido escritos pelos mortos desonrados.
Não avistei Loki. Mas, de pé no leme, em uma plataforma feita de unhas de homens mortos, havia um gigante tão velho que eu quase achei que pudesse ser um dos mortos-vivos. Eu nunca o tinha visto, mas ouvira histórias sobre ele: Hrym, o capitão do navio. O nome queria dizer decrépito. Tinha braços nus dolorosamente magros. Fiapos de cabelo branco saíam de sua cabeça áspera como estalactites, me fazendo pensar em imagens de homens pré-históricos encontrados em geleiras derretendo. Pelos brancos e mofados cobriam seu corpo maltratado.
Mas os pálidos olhos azuis estavam muito vivos. Hrym não podia ser tão frágil quanto parecia. Em uma das mãos, segurava um machado maior do que ele. Na outra havia um escudo feito do esterno de algum animal enorme cujo espaço entre as costelas fora preenchido com folhas de ferro.
— Soldados de Helheim! — gritou o gigante. — Vejam!
Ele indicou o outro lado da água cinzenta. No extremo oposto da baía, os penhascos glaciais desmoronavam cada vez mais rápido, o gelo estalando e provocando um som de artilharia distante ao cair no mar.
— Em breve o caminho vai estar livre! — gritou o gigante. — E aí partiremos em batalha! Morte aos deuses!
O grito soou em volta de mim: as vozes vazias e cheias de ódio dos mortos se juntando ao canto.
Misericordiosamente, meu sonho mudou. De repente eu estava em um campo de trigo recém-arado em um dia quente de sol. Ao longe, flores silvestres cobriam as colinas verdejantes. Mais além, cachoeiras brancas e leitosas caíam pelas laterais de montanhas pitorescas.
Parte do meu cérebro pensou: Finalmente um sonho agradável! Estou em um comercial de pão integral orgânico!
Mas um velho de vestes azuis veio andando na minha direção. As roupas estavam rasgadas e manchadas em virtude de uma longa viagem. Um chapéu de aba larga cobria seu rosto, mas eu via a barba grisalha e o sorriso cheio de segredos.
Quando chegou perto de mim, o homem ergueu o rosto e revelou um único olho que brilhava com malícia. A outra órbita era escura e vazia.
— Sou Bolverk — disse ele, embora eu obviamente soubesse que se tratava de Odin. Fora o disfarce nem um pouco criativo, quando se ouvia Odin fazer um discurso sobre as melhores práticas dos berserkir,
era impossível esquecer sua voz. — Vim propor a você o melhor acordo da sua vida.
Então ele tirou de debaixo da capa um objeto do tamanho de um queijo redondo, coberto por um pano.
Eu estava com medo de ser uma das coleções de CDs motivacionais de Odin, mas, aberto o embrulho, revelou-se uma pedra de amolar de quartzo cinza. A visão me fez lembrar o martelo de Hrungnir, só que menor e bem menos pesado.
Odin/Bolverk me ofereceu o objeto.
— Você vai pagar o preço?
De repente, ele tinha sumido. À minha frente estava um rosto tão grande que eu não conseguia identificar tudo à primeira vista: olhos verdes brilhantes com fendas verticais no lugar de pupilas, narinas encouraçadas de onde escorria muco. O fedor de ácido e carne podre fez meus pulmões arderem.
A boca da criatura se abriu e revelou fileiras de dentes triangulares irregulares prontos para me retalhar e… imediatamente me sentei na cama de lona, gritando.
Acima de mim, uma suave luz cinza entrava pela claraboia. A chuva tinha passado. T.J. estava sentado à minha frente, comendo um bagel e usando óculos estranhos. Cada lente tinha um centro claro, envolto em um anel de vidro âmbar, fazendo T.J. parecer que tinha adquirido um segundo par de íris.
— Finalmente acordou! — comentou ele. — Teve pesadelos, é?
Meu corpo todo parecia tremer, como uma máquina de lavar antiga.
— O q-que está acontecendo? — perguntei. — Qual é a dos óculos?
Alex Fierro apareceu na porta.
— Um grito agudo assim só podia ser do Magnus. Ah, que bom que você acordou. — Ela jogou um saco de papel pardo com cheiro de alho na minha direção. — Vamos. O tempo está voando.
Alex nos conduziu ao estúdio, onde o sujeito de cerâmica com duas caras ainda estava em pedaços.
Ela contornou a mesa, conferindo seu trabalho e assentindo com satisfação, apesar de eu não conseguir ver qualquer mudança desde a última vez.
— Ótimo! Ok. Está tudo certo.
Abri o saco de papel e franzi a testa.
— Você deixou um bagel de alho pra mim?
— O último a acordar fica com a sobra — disse Alex.
— Vou ficar com um hálito horroroso.
— Mais horroroso — corrigiu Alex. — Mas tudo bem, não é? Porque eu não vou beijar você. Você vai beijar o Magnus, T.J.?
— Não estava nos meus planos.
T.J. colocou o restante do bagel na boca e sorriu.
— Eu… eu não falei nada sobre… — gaguejei. — Eu não quis dizer… — Meu rosto parecia coberto de formigas. — Deixa pra lá. T.J., por que você está com esses óculos, afinal?
Eu era ótimo em mudar o assunto da conversa quando estava constrangido. Era um dom.
T.J. balançou os óculos novos.
— Você ajudou a ativar minha memória, Magnus, quando falamos do atirador ontem à noite! Depois sonhei com Hrungnir e os olhos âmbar esquisitos dele e me vi rindo e atirando nele. Quando acordei, lembrei que tinha colocado os óculos na minha bolsa. Havia me esquecido completamente deles!
Parecia que T.J. tinha sonhos bem melhores do que eu, o que não era surpresa.
— São óculos de atirador de elite — explicou ele. — Era o que usávamos antes de inventarem as miras. Comprei este par em Valhala uns cem anos atrás, eu acho, então tenho quase certeza de que é mágico. Mal posso esperar para experimentar!
Eu duvidava de que Hrungnir fosse ficar parado enquanto T.J. atirava nele de uma distância segura.
Também duvidava de que qualquer um de nós fosse rir muito hoje. Mas não queria estragar a animação pré-combate de T.J.
Eu me virei para o guerreiro de cerâmica.
— E em que pé estamos com nosso carinha da Pottery Barn? Por que ele ainda está em pedaços?
Alex abriu um sorriso.
— Pottery Barn? Sou contra grandes redes de lojas, mas o nome até que é legal! Só não vamos tirar conclusões sobre o gênero de Pottery Barn, ok?
— Ah. Tudo bem.
— Deseje-me sorte.
Ela respirou fundo e passou os dedos pelos dois rostos do guerreiro de cerâmica.
As peças estalaram e começaram a se unir como se estivessem magnetizadas. Pottery Barn se sentou e olhou para Alex. Ambas as faces ainda eram de argila dura, mas agora as caretas gêmeas pareciam mais irritadas, mais famintas. Os globos oculares da face direita brilhavam com uma luz dourada.
— Isso! — Alex suspirou de alívio. — Certo. Pottery Barn é não binário, como eu desconfiava. Eles preferem que se refiram aos dois no plural. E estão prontos para lutar.
Pottery Barn pularam da mesa. Os membros faziam barulho de pedra em cimento. Eles tinham uns dois metros e meio, o que era bem assustador para mim, mas eu me perguntei se tinham chance contra o guerreiro de cerâmica que Hrungnir criara.
Pottery Barn deviam ter sentido minha hesitação, porque viraram o rosto na minha direção e levantaram o punho direito, um vaso pesado de argila pintado de vermelho-sangue.
— Parem! — ordenou Alex. — Ele não é o inimigo!
Pottery Barn se viraram para Alex como se perguntando: Tem certeza?
— Talvez Pottery Barn não gostem de alho — especulou Alex. — Magnus, termina logo esse bagel e vamos botar o pé na estrada. Não podemos deixar nossos inimigos esperando!
Tveirvigi = Pior vigi
ENQUANTO ANDÁVAMOS PELAS ruas de York na madrugada, comi o bagel de alho e contei aos meus amigos sobre meu último sonho. Nossos novos amigos, Pottery Barn, andavam ao lado, atraindo olhares de reprovação dos moradores cujas expressões pareciam dizer: Ai, ai, esses turistas.
Pelo menos a minha história prendeu a atenção de T.J. e ele não perturbou muitos moradores com agradecimentos e apertos de mão.
— Hum… — disse ele. — Eu só queria entender por que precisamos da pedra de amolar. Acho que Odin falou do incidente de Bolverk em um dos livros dele… O caminho aesir para a vitória? Ou foi em A arte do roubo? Não consigo me lembrar dos detalhes. Você disse que no seu sonho a besta era grande e tinha olhos verdes?
— E muitos dentes. — Tentei afastar a lembrança. — Talvez Odin tenha matado a besta para recuperar a pedra. Ou será que bateu na cara dela com a pedra e foi assim que pegou o hidromel?
T.J. franziu a testa. Os óculos novos estavam apoiados na aba do quepe.
— Nenhuma das duas coisas me parece certa. Não me lembro de nenhum monstro. Tenho quase certeza de que Odin roubou o hidromel dos gigantes.
Eu relembrei meu sonho anterior com o massacre da serra elétrica de Fjalar e Gjalar.
— Mas não foram anões que mataram Kvásir? Como os gigantes pegaram o hidromel?
T.J. deu de ombros.
— Todas as histórias antigas são basicamente sobre um grupo assassinando outro para roubar seus pertences. Deve ter sido assim.
Isso me deixou com orgulho de ser viking.
— Tudo bem, mas não temos muito tempo para descobrir. As geleiras que eu vi estão derretendo rápido. O solstício será daqui a uns doze dias, mas acho que o navio de Loki terá condições de zarpar bem antes disso.
— Rapazes — disse Alex —, que tal isto? Primeiro vencemos o gigante, depois falamos sobre nossa próxima tarefa impossível.
Pareceu sensato, mas desconfiei de que Alex só queria que eu calasse a boca para não ter que lidar com meu bafo de alho.
— Alguém sabe para onde estamos indo? — perguntei. — O que é um Konungsgurtha?
— Significa pátio do rei — disse T.J.
— Isso estava no seu guia de viagem?
— Não. — T.J. riu. — É norueguês antigo básico. Você ainda não fez essa aula?
— Eu já tinha um compromisso — resmunguei.
— Bem, estamos na Inglaterra. Deve ter um rei com um pátio em algum lugar por aqui.
Alex parou no cruzamento seguinte. Apontou para uma das placas.
— Que tal uma Praça do Rei? Serve?
Pottery Barn pareceram achar que sim, já que viraram as duas faces naquela direção e saíram andando. Nós fomos atrás, pois seria irresponsabilidade deixar uma pilha de cerâmica de dois metros e
meio andar desacompanhada pela cidade.
Tínhamos encontrado o local. Uhul.
A Praça do Rei não era uma praça e não era muito majestosa. As ruas formavam um Y em volta de um parque triangular pavimentado com ardósia cinza, com algumas árvores mirradas e dois bancos. Os prédios ao redor estavam escuros, as lojas fechadas. O único ser à vista era o gigante Hrungnir, as botas plantadas com firmeza dos dois lados de uma farmácia chamada, de forma um tanto apropriada, Boots. O
gigante, que usava a mesma armadura de retalhos, tinha uma barba de pedra desgrenhada que parecia ter passado recentemente por uma avalanche, e seus olhos âmbar brilhavam com um toque de “mal posso esperar para matar vocês”. O martelo estava de pé ao lado dele como o maior poste de Festivus do mundo.
Quando Hrungnir nos viu, abriu a boca em um sorriso que faria o coração de pedreiros e calceteiros palpitar.
— Ora, ora, vocês vieram! Eu estava começando a pensar que iriam fugir. — Ele franziu as sobrancelhas de cascalho. — A maioria foge. É muito irritante.
— Não consigo imaginar por quê — falei.
— Hum… — Hrungnir assentiu para Pottery Barn. — Esse é seu guerreiro de cerâmica? Não parece grande coisa.
— Espera só — prometeu Alex.
— Mal posso esperar! — trovejou o gigante. — Eu amo matar pessoas aqui. Sabe, muito tempo atrás
— ele indicou um pub próximo —, o pátio do rei nórdico de Jórvík ficava ali. E onde vocês estão ficava uma igreja cristã. Estão vendo? Vocês estão andando sobre o túmulo de alguém.
E realmente, a placa de ardósia debaixo dos meus pés tinha um nome e datas apagadas demais para ler. A praça toda era pavimentada com lápides, talvez do piso da antiga igreja. A ideia de andar em cima de tantos mortos me deixou enjoado, apesar de, tecnicamente, eu mesmo estar morto.
O gigante riu.
— Parece adequado, não é? Já tem tantos humanos mortos aqui, o que seriam alguns a mais? — Ele se virou para T.J. — Está pronto?
— Eu nasci pronto — disse T.J. — Morri pronto. Ressuscitei pronto. Mas vou dar uma última chance a você, Hrungnir. Não é tarde demais para escolher o bingo.
— Rá! Nada disso, pequeno einherji! Eu trabalhei a noite toda no meu parceiro de luta. Não pretendo desperdiçar ele com um bingo. Mokkerkalfe, venha cá!
O chão tremeu com um TUM TUM úmido. Na esquina, um homem de barro surgiu. Tinha dois metros e oitenta, sua modelagem era rudimentar e ainda brilhava de umidade. Parecia algo que eu faria na aula de cerâmica básica, uma criatura feia e cheia de caroços com braços finos demais e pernas grossas demais, a cabeça uma bola com duas órbitas e feições esculpidas em formato de careta.
Ao meu lado, Pottery Barn começaram a estalar e não achei que fosse de empolgação.
— Maior não quer dizer mais forte — disse para os dois bem baixinho.
Pottery Barn viraram os rostos para mim. Claro que as expressões não mudaram, mas senti que as duas bocas me diziam a mesma coisa: Cala a boca, Magnus.
Alex cruzou os braços. Tinha amarrado a capa de chuva amarela na cintura, revelando um colete xadrez cor-de-rosa e verde que julguei ser seu uniforme de combate.
— Seu trabalho é medíocre, Hrungnir. Você chama isso de homem de barro? E que nome é esse?
Mokkerkalfe?
O gigante ergueu as sobrancelhas.
— Vamos ver qual trabalho é medíocre quando a luta começar. Mokkerkalfe quer dizer Filho da
Neblina! Um nome poético e honrado para um guerreiro!
— Aham — disse Alex. — Bom, conheça Pottery Barn.
Hrungnir coçou a barba.
— Devo admitir que esse também é um nome poético para um guerreiro. Mas ele sabe lutar?
— Eles sabem lutar muito bem — prometeu Alex. — E vão derrubar esse seu monte de escória sem problemas.
Pottery Barn olharam para sua criadora como quem diz: Vamos?
— Chega de conversa! — Hrungnir ergueu o martelo e fez cara feia para T.J. — Vamos começar, homenzinho?
Thomas Jefferson Jr. colocou os óculos de armação cor de âmbar, tirou o rifle do ombro e pegou um pequeno pacote cilíndrico de papel — um cartucho de pólvora — do kit.
— Este rifle também tem um nome poético — disse ele. — É um Springfield 1861. Criado em Massachusetts, como eu. — Ele abriu o cartucho com os dentes e virou o conteúdo na boca do rifle.
Pegou o atacador e enfiou pólvora e balas lá dentro. — Eu conseguia atirar três vezes por minuto com esta belezinha, mas estou praticando há várias centenas de anos. Vamos ver se consigo disparar cinco hoje.
Ele pegou uma pequena cápsula de metal na bolsinha e colocou embaixo do cão. Eu já tinha visto T.J.
fazer isso antes, mas o jeito com que conseguia carregar a arma, falar e andar ao mesmo tempo era tão mágico quanto a habilidade de Alex no torno. Para mim, fazer tudo isso teria sido como tentar amarrar os sapatos e assoviar o hino enquanto corria.
— Muito bem! — gritou Hrungnir. — QUE O TVEIRVIGI COMECE!
• • •
Minha primeira tarefa era a minha favorita: sair da frente.Eu corri na hora que o martelo do gigante bateu em uma árvore, esmagando-a até ficar pequenininha.
Com um CRACK seco, o rifle de T.J. disparou. O gigante rugiu de dor. Ele cambaleou para trás e saía fumaça do seu olho esquerdo, que agora estava preto em vez de âmbar.
— Que grosseria!
Hrungnir ergueu novamente o martelo, mas T.J. foi para o ponto cego dele enquanto recarregava calmamente. Seu segundo tiro acertou o nariz do gigante.
Enquanto isso, Mokkerkalfe andou pesadamente, balançando os bracinhos, mas Pottery Barn foram mais velozes. (Eu queria o crédito pelo ótimo trabalho que tinha feito com as juntas de rolinhos.) Nosso guerreiro de cerâmica desviou para o lado e apareceu atrás de Mokkerkalfe, batendo com os dois punhos de vaso nas costas dele.
Infelizmente, os punhos afundaram na pele macia e gosmenta de Mokkerkalfe, que logo se virou para encarar Pottery Barn. Mokkerkalfe ergueu e arrastou Pottery Barn como se eles fossem um brinquedo.
— Solta! — gritou Alex. — Pottery Barn! Ah, meinfretr.
Ela pegou o garrote, mesmo eu não sabendo bem como poderia ajudar na luta.
CRACK! A bala do mosquete ricocheteou no pescoço do gigante e estilhaçou uma janela de segundo andar. Fiquei impressionado de os moradores ainda não terem saído para investigar o barulho. Talvez houvesse um glamour forte em ação. Ou talvez o bom povo de York estivesse acostumado a brigas de vikings/gigantes na madrugada.
T.J. recarregou enquanto o gigante o fazia recuar.
— Fique parado, pequeno mortal! — rugiu Hrungnir. — Quero esmagar você!
A Praça do Rei era um espaço apertado para um jötunn. T.J. tentou ficar no ponto cego de Hrungnir, mas o gigante só precisava de um passo bem calculado ou de um golpe de sorte para transformá-lo em uma panqueca militar.
Hrungnir golpeou novamente, mas T.J. pulou para o lado na hora que o martelo rachou um monte de lápides, deixando um buraco de três metros no pátio.
Alex aproveitou o momento para atacar com seu garrote. Envolveu as pernas de Pottery Barn e puxou.
Infelizmente, colocou força demais no instante em que Mokkerkalfe golpeou na mesma direção. Com o impulso excessivo, Pottery Barn voaram pela praça e invadiram a vitrine de um estabelecimento que oferecia empréstimos.
Mokkerkalfe se virou para Alex. O homem de argila emitiu um som úmido e gargarejado vindo do peito, como o rosnado de um sapo carnívoro.
— Opa, calma aí, rapaz — disse Alex. — Eu não estava lutando. Não sou sua…
GURG! Mokkerkalfe pulou como um lutador de luta livre, mais rápido do que eu acharia possível, fazendo Alex desaparecer debaixo de cento e quarenta quilos de barro molhado.
— NÃO! — gritei.
Antes que pudesse me mover ou avaliar como ajudar Alex, T.J. soltou um berro do outro lado do pátio.
— RÁ!
Hrungnir levantou o punho. Preso em seus dedos, se debatendo de forma inútil, estava Thomas Jefferson Jr.
— Basta um aperto — gabou-se o gigante — e essa competição acabou!
Fiquei paralisado. Queria me dividir em dois, ser duplo como nosso guerreiro de cerâmica. Mas, mesmo que isso fosse possível, eu não via uma forma de ajudar nenhum dos meus amigos.
O gigante apertou com força e T.J. berrou de dor.
Uma tarde de diversão com corações explosivos
POTTERY BARN SALVARAM nossas vidas.
(E, não. Eu nunca pensei que diria isso um dia.)
Nosso amigo de cerâmica explodiu de uma janela de terceiro andar da loja de empréstimos. O
guerreiro se jogou na cara de Hrungnir, prendendo as pernas no lábio superior do gigante e batendo no nariz com os punhos de vaso.
— AI! SAI DAÍ!
Hrungnir cambaleou e largou T.J., que caiu no chão sem se mexer.
Enquanto isso, Mokkerkalfe se esforçou para levantar, o que devia ser difícil com Alex Fierro grudada em seu peito. Sob o peso dele, Alex gemeu. Fui tomado de alívio. Pelo menos ela estava viva e talvez continuasse assim por mais alguns segundos. Após uma triagem rápida, decidi correr até T.J., cuja condição não me deixou tão otimista.
Eu me ajoelhei ao lado dele e coloquei a mão em seu peito. Quase puxei a mão de volta porque os danos que senti eram muito ruins. Um filete vermelho manchava o canto da boca como se ele tivesse bebido Tizer, mas eu sabia que não era refrigerante de cereja.
— Aguenta aí, amigo — murmurei. — Vou resolver isso.
Eu olhei para Hrungnir, que ainda estava cambaleando e tentando tirar Pottery Barn da cara. Até o momento, tudo bem. Do outro lado da praça, Mokkerkalfe tinha se descolado de Alex e agora estava de pé na frente dela, gorgolejando com raiva e batendo os punhos úmidos um no outro. Não parecia promissor.
Puxei a pedra de runa do cordão e conjurei Sumarbrander.
— Jacques! — gritei.
— Que foi? — gritou ele em resposta.
— Defenda Alex!
— O quê?
— Mas você não pode lutar de verdade!
— O quê?
— Tire aquele gigante de barro de cima dela!
— O quê?
— Crie uma distração. RÁPIDO!
Fiquei feliz de ele não ter dito o quê de novo, senão eu começaria a achar que minha espada tinha ficado surda.
Jacques voou até Mokkerkalfe e se posicionou entre o homem de barro e Alex.
— Oi, amigão! — As runas de Jacques brilharam pela lâmina como luzes de LED. — Quer ouvir uma história? Cantar uma música? Quer dançar?
Enquanto Mokkerkalfe tentava entender a estranha alucinação que estava tendo, voltei minha atenção para T.J.
Coloquei as mãos no peito dele e conjurei o poder de Frey.
Luz do sol se espalhou pelas fibras azuis do casaco de lã. Um calor penetrou seu peito, unindo costelas quebradas, remendando pulmões perfurados, desesmagando vários órgãos internos que não funcionavam muito bem quando esmagados.
Enquanto meu poder de cura fluía para dentro de Thomas Jefferson Jr., suas lembranças penetraram minha mente. Eu vi a mãe dele em um vestido surrado de algodão, o cabelo prematuramente grisalho, o rosto magro de anos de trabalho árduo e preocupação. Ela se ajoelhou na frente de T.J., que parecia ter dez anos, as mãos segurando com força os ombros dele como se tivesse medo de o filho sair voando em uma tempestade.
— Nunca aponte isso para um homem branco — repreendeu ela.
— Mãe, é só um graveto — disse T.J. — Eu estou brincando.
— Você não pode brincar — disparou ela com rispidez. — Se você brincar de atirar em um homem branco com um graveto, ele vai atirar em você de verdade com uma arma. Não vou perder outro filho, Thomas. Está me entendendo?
Ela o sacudiu, tentando fazer a mensagem entrar nele.
Uma imagem diferente: T.J. agora adolescente, lendo um panfleto preso em um muro de tijolos perto do píer.
AOS HOMENS DE COR!
LIBERDADE! PROTEÇÃO, SALÁRIO E UM CHAMADO
AO SERVIÇO MILITAR!
Senti o coração de T.J. disparar. Ele nunca tinha ficado tão empolgado. As mãos formigavam para segurar um rifle. Ele sentiu um chamado… um impulso inegável, como todas as vezes em que foi desafiado para lutar no beco atrás da taverna da mãe. Era um desafio pessoal, e ele não podia recusar.
Eu o vi no porão de um navio da União, os mares agitados enquanto os colegas vomitavam em baldes ao redor dele. Seu amigo, William H. Butler, gemia de infelicidade.
— Eles trazem nosso povo em navios negreiros. Aí nos libertam. Prometem nos pagar para lutar.
Então nos colocam de novo num navio — disse ele.
Mas T.J. segurava o rifle com avidez, o coração latejando de empolgação. Ele sentia orgulho do uniforme. Orgulho das estrelas e listras voando no mastro em algum lugar acima. A União deu a ele uma arma de verdade. Estavam sendo pagos para matar rebeldes, homens brancos que definitivamente os matariam se tivessem chance. Ele sorriu no escuro.
Depois, eu o vi correndo pela terra de ninguém na batalha de Fort Wagner, fumaça de tiros subindo como gás vulcânico em volta dele. O ar estava tomado pelo enxofre e pelos gritos dos feridos, mas T.J.
estava concentrado em seu nêmeses, Jeffrey Toussaint, que ousou desafiá-lo. T.J. apontou com a baioneta e atacou, eufórico com o medo repentino nos olhos de Toussaint.
No presente, T.J. ofegou. Por trás dos óculos âmbar, sua visão ficou clara.
— Esquerda — disse ele, a voz rouca.
Eu mergulhei para o lado. Admito que não tive tempo de distinguir esquerda de direita. Eu rolei e fiquei de costas na hora que T.J. levantou o rifle e disparou.
Hrungnir, agora livre da demonstração de carinho de Pottery Barn, estava erguendo seu martelo, prestes a desferir um golpe mortal. A bala de mosquete de T.J. o acertou no olho direito, deixando-o cego.
— ARGH!
Hrungnir largou a arma e se sentou com tudo no meio da Praça do Rei, esmagando dois bancos do
parque com a bunda ampla. Em uma árvore próxima, Pottery Barn estavam caídos, quebrados e danificados, a perna esquerda pendurada em um galho três metros acima da cabeça, mas quando viram a situação complicada de Hrungnir, eles moveram a cabeça no ombro com um som como gargalhada.
— Vai! — T.J. me tirou do choque. — Ajude a Alex!
Eu me levantei e corri.
Jacques ainda estava tentando distrair Mokkerkalfe, mas a coreografia de música e dança estava perdendo a graça (Isso acontecia rapidamente com Jacques.) Mokkerkalfe tentou dar um tapa nele e jogá-
lo longe. A lâmina ficou grudada nas costas da mão grudenta do homem de barro.
— Eca! — reclamou Jacques. — Me solta!
Jacques era um pouco obsessivo com limpeza. Depois de ficar no fundo do rio Charles por mil anos, ele não era fã de lama.
Enquanto Mokkerkalfe andava de um lado para outro tentando soltar a espada falante da mão, eu me aproximei de Alex. Ela estava caída no chão de pernas e braços abertos, coberta de argila da cabeça aos pés, gemendo e mexendo os dedos.
Eu sabia que Alex não gostava do meu poder de cura. Ela odiava a ideia de eu espiar suas emoções e lembranças, o que fazia parte do processo. Mas decidi que sua sobrevivência era mais importante do que seu direito à privacidade.
Toquei o ombro dela. Uma luz dourada escorreu pelos meus dedos. Um calor se espalhou pelo corpo de Alex.
Eu me preparei para mais imagens dolorosas. Estava pronto para enfrentar seu pai horrível de novo ou ver Alex sofrendo bullying na escola ou vê-la apanhando nos abrigos para sem-teto.
Mas uma única lembrança clara me atingiu: nada de especial, só café da manhã no Café 19 em Valhala, uma imagem rápida minha, o idiota do Magnus Chase, como Alex me via. Eu estava sentado do outro lado da mesa, sorrindo por causa de alguma coisa que ela tinha dito. Um pedacinho de pão estava preso entre meus dentes da frente. Meu cabelo estava todo desgrenhado. Eu parecia relaxado e feliz e totalmente idiota. Encarei Alex por tempo demais, e a situação ficou constrangedora. Eu fiquei vermelho e afastei o olhar.
Essa era a memória dela.
Eu me lembrava daquela manhã. Lembrava que na hora eu pensei: Bom, acabei de fazer papel de idiota, como sempre. Mas não foi um evento tão memorável assim.
Então por que era uma das principais lembranças de Alex? E por que eu senti uma onda de satisfação ao ver meu eu pateta da perspectiva dela?
Alex abriu os olhos abruptamente e tirou minha mão do ombro dela.
— Chega.
— Desculpa, eu…
— Esquerda!
Eu mergulhei para o lado. Alex rolou para o outro. O punho de Mokkerkalfe, agora livre da lâmina de Jacques, bateu no chão de ardósia entre nós. Tive um vislumbre de Jacques, encostado na porta de uma farmácia, coberto de lama e gemendo como um soldado moribundo.
— Fui atingido! Fui atingido!
O homem de barro se levantou, pronto para nos matar. Jacques não podia ajudar. Alex e eu não estávamos em condição de lutar. Mas uma pilha de cerâmica surgiu do nada e caiu nas costas de Mokkerkalfe. De alguma forma, Pottery Barn tinham se soltado da árvore. Apesar da perna cortada, apesar de a mão de vaso do lado direito estar estilhaçada, Pottery Barn entraram em modo berserker de cerâmica. Os dois pularam nas costas de Mokkerkalfe, arrancando pedaços de argila molhada como se
Mokkerkalfe cambaleou. Ele tentou agarrar Pottery Barn, mas os braços eram curtos demais. Com um POP alto, Pottery Barn tiraram algo do peito de Mokkerkalfe, e os dois guerreiros foram ao chão.
Mokkerkalfe soltou fumaça e começou a derreter. Pottery Barn rolaram para longe da carcaça do inimigo, os rostos duplos se virando para Alex. Com fraqueza, eles levantaram a coisa que estavam segurando. Quando percebi o que era, o bagel de alho que comi no café da manhã ameaçou voltar.
Pottery Barn estavam oferecendo a Alex o coração do inimigo: um coração de verdade, porém grande demais para ser humano. Talvez de um cavalo ou de uma vaca? Concluí que preferia continuar na ignorância.
Alex se ajoelhou ao lado de Pottery Barn. Colocou a mão em sua testa dupla.
— Você agiu bem — disse ela, a voz trêmula. — Meus ancestrais de Tlatilco ficariam orgulhosos.
Meu avô ficaria orgulhoso. Mais do que tudo, eu estou orgulhosa.
A luz dourada piscou nos globos oculares no rosto de caveira e se apagou. Os braços de Pottery Barn despencaram. As peças perderam a coesão mágica e se soltaram.
Alex se permitiu o espaço de três batimentos para sofrer. Consegui contar porque aquele coração nojento nas mãos de Pottery Barn ainda estava batendo. Em seguida, ela se levantou, os punhos cerrados, e se virou para Hrungnir.
O gigante não parecia muito bem. Estava deitado de lado, encolhido, cego e gemendo de dor. T.J.
andou em volta dele, usando a baioneta de aço de osso para cortar os tendões do gigante. Os tendões de aquiles de Hrungnir já estavam cortados, tornando suas pernas inúteis. T.J. trabalhou com eficiência fria e cruel para dar aos braços do jötunn o mesmo tratamento.
— Pelo traseiro de Tyr — disse Alex, a raiva sumindo do rosto. — Quero que você me lembre de nunca duelar com Jefferson.
Nós fomos nos juntar a ele.
T.J. encostou a ponta da baioneta no peito do gigante.
— Nós vencemos, Hrungnir. Nos dê a localização do hidromel de Kvásir e não vou precisar matar você.
Hrungnir riu com fraqueza. Os dentes estavam sujos de um líquido cinza, como os baldes de argila no estúdio de cerâmica.
— Ah, mas você tem que me matar, pequeno einherji — grunhiu ele. — Faz parte do duelo! É melhor do que me deixar aqui, inválido e sofrendo!
— Eu posso curar você — ofereci.
Hrungnir abriu um sorriso de desdém.
— Típico de um filho de Frey patético e fraco. Eu recebo a morte de braços abertos! Vou me refazer no abismo gelado de Ginnungagap! E, no dia do Ragnarök, vou encontrar vocês no campo de Vigrid e rachar seus crânios com os dentes!
— Tá bom, então — disse T.J. — Uma morte saindo no capricho. Mas, primeiro, a localização do hidromel de Kvásir.
— Ah. — Hrungnir gorgolejou mais gosma cinza. — Muito bem. Não vai ter importância. Vocês nunca vão passar pelos guardiões. Vão para Fläm, na antiga terra nórdica que vocês chamam de Noruega.
Peguem o trem. Vocês vão ver o que estão procurando bem rápido.
— Fläm?
A imagem de uma sobremesa gostosa de caramelo surgiu na minha mente. Mas aí lembrei que o nome dela era flan.
— Isso mesmo — respondeu Hrungnir. — Agora me mate, filho de Tyr! Rápido. Bem no coração, a
não ser que você seja fraco como seu amigo!
Alex começou a dizer:
— T.J.…
— Espere — murmurei.
Tinha alguma coisa errada. O tom de Hrungnir era debochado demais, ansioso demais. Mas demorei a perceber o problema. Antes que pudesse sugerir de matarmos o gigante de outro jeito, T.J. aceitou o desafio final de Hrungnir.
Ele enfiou a baioneta no peito do jötunn. A ponta acertou alguma coisa lá dentro com um clink seco.
— Ahhh… — O suspiro de morte de Hrungnir pareceu quase arrogante.
— Ei, pessoal? — A voz fraca de Jacques chamou da farmácia. — Não perfurem o coração dele, tá?
Os corações dos gigantes da pedra explodem.
Alex arregalou os olhos.
— Para o chão!
BUM!
Estilhaços de Hrungnir jorraram pela praça, estilhaçando janelas, destruindo placas e salpicando paredes de pedra.
Meus ouvidos zumbiam. Havia cheiro de fagulhas no ar. Não restava nada além de uma fileira fumegante de cascalho onde antes estivera o corpo de Hrungnir.
Eu não parecia ter nenhum ferimento. Alex também parecia bem. Mas T.J. estava ajoelhado no chão gemendo, a mão na testa sangrando.
— Vou resolver!
Eu corri até ele, mas o ferimento não tinha sido tão ruim quanto eu temia. Um estilhaço entrara acima do olho direito, uma lasca cinzenta triangular como um ponto de exclamação de pedra.
— Tira! — gritou ele.
Eu tentei, mas assim que puxei, T.J. berrou de dor. Eu franzi a testa. Não fazia sentido. O estilhaço não podia estar tão fundo. Nem tinha tanto sangue assim.
— Pessoal — disse Alex. — Temos companhia.
Os moradores estavam finalmente começando a sair para ver a confusão, provavelmente porque o coração explosivo de Hrungnir tinha quebrado todas as janelas do quarteirão.
— Você consegue andar? — perguntei a T.J.
— Consigo. É, acho que consigo.
— Então vamos voltar para o navio. Vamos curar você lá.
Eu o ajudei a ficar de pé e fui buscar Jacques, que ainda estava reclamando por estar coberto de lama.
Eu o fiz voltar à forma de pedra de runa, o que não ajudou meu nível de exaustão. Alex se ajoelhou ao lado dos restos de Pottery Barn. Pegou a cabeça e a aninhou como um bebê abandonado.
Em seguida, nós três cambaleamos por York para voltar ao Bananão. Eu só esperava que os cavalos d’água não o tivessem afundado junto com nossos amigos.
Tenho péssimas notícias, mas… Não, na verdade só tenho péssimas
notícias mesmo
O NAVIO AINDA estava intacto. Mestiço, Mallory e Samirah aparentemente pagaram um preço alto para que permanecesse assim.
O braço esquerdo de Mestiço estava em uma tipoia. O volumoso cabelo ruivo de Mallory tinha sido cortado na altura do queixo. Na amurada, uma Sam encharcada torcia seu hijab mágico.
— Cavalos d’água? — perguntei.
Mestiço deu de ombros.
— Nada que a gente não pudesse resolver. Meia dúzia de ataques desde ontem à tarde. Nada fora do comum.
— Um me puxou para o rio pelo cabelo — reclamou Mallory.
Mestiço sorriu.
— Até que o corte ficou bem legal, considerando que tudo que eu tinha naquele momento era um machado. Tenho que confessar, Magnus, que com a lâmina tão perto do pescoço dela eu fiquei tentado…
— Cala a boca, pateta — rosnou Mallory.
— É disso que estou falando — disse Mestiço. — Mas a Samirah, olha… você tinha que ter visto. Ela foi impressionante.
— Não foi nada de mais — murmurou Samirah.
Mallory riu.
— Não foi nada de mais? Você foi arrastada para o rio e voltou montada em um cavalo d’água.
Domou a fera. Eu nunca vi ninguém capaz de fazer isso.
Samirah fez uma careta e então deu outra torcida no hijab, como se quisesse espremer as últimas gotas da experiência.
— Valquírias se dão bem com cavalos. Deve ter sido só isso.
— Hum. — Mestiço apontou para mim. — E vocês? Estou vendo que estão vivos.
Contamos a história da nossa noite no estúdio de cerâmica e da nossa manhã destruindo a Praça do Rei.
Mallory franziu a testa para Alex, ainda coberta de argila.
— Isso explicaria a nova camada de tinta de Fierro.
— E a pedra na cabeça do T.J.
Mestiço se inclinou para mais perto para inspecionar o estilhaço. A testa de T.J. tinha parado de sangrar e o inchaço havia diminuído, mas, por motivos desconhecidos, a lasca de pedra ainda se recusava a sair. Sempre que eu tentava puxá-la, T.J. gritava de dor. Localizado acima da sobrancelha, o pequeno estilhaço dava a ele uma expressão de surpresa permanente.
— Dói? — perguntou Mestiço.
— Não muito — disse T.J., encabulado. — A não ser que tentem tirar.
— Espere aí, então.
Com a mão boa, Mestiço remexeu na bolsa pendurada em seu cinto. Tirou dali uma caixa de fósforos, soltou um e passou na pedra de T.J. O fósforo se acendeu na mesma hora.
— Ei! — reclamou T.J.
— Você tem um novo superpoder, meu amigo! — Mestiço sorriu. — Isso pode ser útil!
— Tá, chega disso — disse Mallory. — Fico feliz por vocês terem sobrevivido, mas conseguiram alguma informação com o gigante?
— Conseguimos — respondeu Alex, aninhando a cabeça de Pottery Barn. — O hidromel de Kvásir está na Noruega. Em um lugar chamado Fläm.
O fósforo aceso caiu dos dedos de Mestiço e pousou no convés.
T.J. pisou na chama.
— Você está bem, amigo? Parece que viu um draugr.
Um terremoto parecia acontecer sob o bigode de Mestiço.
— Jórvík já foi ruim — disse ele. — Agora Fläm? Quais são as chances?
— Você conhece esse lugar — concluí.
— Vou lá pra baixo — murmurou ele.
— Quer que eu cure seu braço primeiro?
Ele balançou a cabeça com infelicidade, como se estivesse acostumado a viver sentindo dor. Em seguida, desapareceu escada abaixo.
T.J. se virou para Mallory.
— O que foi isso?
— Nem olhem pra mim — disse ela com rispidez. — Eu não sou a babá dele.
Mas havia um toque de preocupação na voz dela.
— Vamos zarpar — sugeriu Samirah. — Não quero ficar neste rio um segundo a mais do que o necessário.
Quanto a isso, todos concordávamos. York era uma cidade bonita. Tinha um bom fish and chips e ao menos um estúdio de cerâmica decente, mas eu estava pronto para ir embora.
Alex e T.J. desceram para trocar de roupa e descansar da manhã de combate. Isso deixou Mallory, Sam e eu para cuidar do navio. Levamos o resto do dia para navegar pelo rio Ouse até o mar, mas a viagem foi misericordiosamente tranquila. Nenhum cavalo d’água nos atacou. Nenhum gigante nos desafiou para um combate nem para jogar bingo. A pior coisa que encontramos foi uma ponte baixa demais, o que nos obrigou a dobrar o mastro, que pode ou não ter caído em cima de mim.
No pôr do sol, quando deixamos a costa da Inglaterra para trás, Sam fez sua lavagem ritual. Fez as preces voltada para o sudoeste e depois, com um suspiro de satisfação, sentou-se ao meu lado e desembrulhou uma porção de tâmaras.
Ela me passou uma e mordeu a dela. Fechou os olhos enquanto mastigava, o rosto transformado por puro êxtase, como se a fruta fosse uma experiência religiosa. E acho que era mesmo.
— A cada pôr do sol — disse ela —, o gosto da tâmara é como vivenciar a alegria da comida pela primeira vez. O sabor simplesmente explode na boca.
Mastiguei a minha. Estava boa, mas não explodiu nem me encheu de êxtase. Por outro lado, eu não tinha passado o dia inteiro de jejum.
— Por que tâmaras? — perguntei. — Por que não, sei lá, Twizzlers?
— É uma tradição. — Ela mordeu outro pedaço e fez um hmmm satisfeito. — O Profeta Maomé sempre encerrava o jejum comendo tâmaras.
— Mas você pode comer outras coisas depois, certo?
— Ah, sim — disse ela com seriedade. — Eu pretendo comer de tudo. Soube que Alex trouxe um
refrigerante de cereja, não é? Também quero experimentar.
Estremeci. Eu podia fugir de gigantes, de países e até de mundos inteiros, mas parecia que nunca ia conseguir fugir do tal Tizer. Eu tinha pesadelos nos quais todos os meus amigos sorriam para mim com lábios vermelhos e dentes manchados de cereja.
Enquanto Sam descia para comer de tudo um pouco, Mallory relaxava ao leme, mantendo o olhar no horizonte, embora o navio parecesse saber para onde íamos. De tempos em tempos, ela tocava nos ombros como se procurando o resto do cabelo e suspirava, infeliz.
Eu entendia. Não muito tempo antes, Blitz cortou meu cabelo para fazer fios mágicos e bordar uma bolsa de boliche. Eu ainda tinha lembranças traumáticas.
— Navegar até a Noruega vai levar alguns dias — disse Mallory. — O mar do Norte às vezes é agitado. A não ser que alguém tenha um amigo deus do mar para pedir ajuda.
Eu me concentrei na minha tâmara. Não queria pedir a ajuda de Njord de novo. Já tinha visto os belos pés do meu avô o suficiente por uma eternidade inteira. Por outro lado, me lembrei do que ele me disse: depois de Jórvík, estávamos por nossa conta. Nada de proteção divina. Se Aegir ou Ran ou as filhas nos encontrassem…
— Talvez a gente tenha sorte — disse sem entusiasmo.
Mallory riu com ironia.
— É. Isso é algo que acontece muito. Mesmo se chegarmos a Fläm em segurança, que coisa é essa de o hidromel ter guardiões invencíveis?
Eu gostaria de ter uma resposta para dar a ela. Guardiões do hidromel parecia outro livro que eu nunca iria querer ler.
Eu me lembrei do sonho em que Odin me oferecia a pedra de amolar e de como o rosto dele se transformava em outra coisa: uma cara encouraçada com olhos verdes e fileiras de dentes afiados. Eu nunca tinha enfrentado uma criatura assim na vida real, mas a fúria fria em seu olhar me deixou nervoso, além de ser assustadoramente familiar. Pensei em Hearthstone e Blitzen e no lugar para onde Njord poderia tê-los mandado em busca da tal pedra. Uma ideia começou a surgir, assumindo a simetria de um pedaço de argila no torno de Alex, embora eu não gostasse nem um pouco do formato.
— Vamos precisar da pedra de amolar para derrotar os guardiões — falei. — Não tenho ideia do motivo. Nós vamos ter que confiar…
Mallory riu.
— Confiar? Certo. Gosto tanto de confiar quanto gosto de acreditar na sorte.
Ela pegou uma das facas. Casualmente, segurando a lâmina pela ponta, jogou a arma aos meus pés. Ela perfurou a madeira amarela e balançou como a agulha de um metrônomo.
— Dê uma olhada — ofereceu ela. — Veja por que não confio em “armas secretas”.
Puxei a faca do convés. Eu nunca tinha segurado uma das armas de Mallory. A lâmina era surpreendentemente leve, tanto que poderia causar problemas a quem a manipulasse. Manuseada como uma adaga normal, segurada com mais força do que o necessário, era o tipo de faca que podia pular da sua mão e cortar sua própria cara.
A lâmina era um triângulo isósceles comprido e escuro, cheio de runas e desenhos de nós celtas, e couro macio e gasto enrolava-se ao cabo.
Eu não sabia o que Mallory queria que eu visse, então só disse o óbvio:
— Faca legal.
— Ah. — Mallory tirou a faca gêmea do cinto. — Não são tão afiadas quanto Jacques. Não têm nenhuma propriedade mágica até onde sei. Supostamente salvariam minha vida, mas, como pode ver —
ela abriu os braços —, estou morta.
— Então… você já tinha as facas quando estava viva.
— Pelos últimos cinco ou seis minutos de vida, sim. — Ela girou a faca entre os dedos. — Primeiro meus amigos… me incitaram a armar a bomba.
— Espera. Você armou a…
Ela me interrompeu com um olhar severo, como quem diz: Nunca interrompa uma garota com uma faca.
— Foi Loki que me instigou — disse ela. — Foi a voz dele infiltrada no meu grupo, aquele trapaceiro disfarçado como um de nós. Na época eu não percebi, é claro. Mas, depois que tinha feito aquilo, minha consciência falou mais alto. Foi nessa hora que a bruxa velha apareceu.
Eu esperei. Admito que não estava acompanhando a história de Mallory muito bem. Eu sabia que ela tinha morrido desarmando um carro-bomba, mas era um carro-bomba que ela mesma tinha armado? Vê-la como alguém que faria isso era ainda mais difícil do que vê-la de cabelo curto. Não fazia ideia de quem era aquela garota.
Ela enxugou uma lágrima como se fosse um inseto irritante.
— A bruxa disse: “Ah, garota. Siga seu coração.” Blá-blá-blá. Uma besteirada dessas. E aí me deu essas facas. Disse que são indestrutíveis. Que não ficam cegas. Que não quebram. E estava mesmo certa quanto a isso, até onde eu sei. Mas ela também disse: “Você vai precisar delas. Use-as bem.” E aí eu voltei para… para desfazer o que fiz. Perdi um tempo enorme tentando descobrir como essas malditas facas iriam resolver meu problema. Mas elas não resolveram. E…
Ela abre os dedos em uma explosão silenciosa.
Minha cabeça zumbia. Eu tinha muitas perguntas que estava com medo de fazer. Por que ela armou a bomba? Quem ela havia tentado explodir? Ela estava completamente louca?
Ela guardou a faca e fez sinal para que eu jogasse a outra. Fiquei com medo de lançá-la ao mar por acidente ou matá-la, mas Mallory pegou com facilidade.
— A bruxa também era Loki — disse ela. — Tinha que ser. Não foi suficiente para ele me enganar uma vez. Teve que me enganar duas e ainda me fazer morrer.
— Por que ficou com as facas então, se elas são de Loki?
Os olhos dela brilharam.
— Porque, meu amigo, quando eu vir ele de novo, vou enfiar as duas no pescoço dele.
Ela guardou a segunda faca, e pela primeira vez em vários minutos eu soltei o ar que estava prendendo.
— A questão, Magnus, é que eu não botaria fé em arma, faca ou qualquer outro objeto mágico para resolver todos os nossos problemas, seja esse objeto o hidromel de Kvásir ou essa pedra de amolar que teoricamente vai nos levar até o hidromel. No fim das contas, só podemos contar com nós mesmos, com nossos amigos. Seja lá o que for isso que Blitzen e Hearthstone estão procurando…
Como se os nomes fossem um feitiço, uma onda surgiu do nada e caiu na proa do navio. Do jorro de água duas pessoas saíram cambaleantes. Nosso elfo e nosso anão tinham voltado.
— Ora, ora. — Mallory se levantou e enxugou outra lágrima, ao mesmo tempo forçando certa alegria na voz. — Legal vocês aparecerem, garotos.
Blitzen estava coberto da cabeça aos pés de equipamentos de proteção solar. Sal cintilava em seu sobretudo preto e nas luvas. Uma rede preta envolvia a aba do chapéu de safári, escondendo a expressão em seu rosto até ele levantar o véu. Os músculos faciais tremeram. Ele piscou várias vezes, como alguém que tinha acabado de sair de um acidente de carro.
Hearthstone se sentou no chão com um baque. Colocou as mãos nos joelhos e balançou a cabeça, Não, não, não. Sabe-se lá como, ele tinha perdido o cachecol e agora, todo de preto, parecia o estofamento de
— Vocês estão vivos — falei, tonto de alívio.
Fazia dias que eu estava com um nó na barriga de tanta preocupação. Mas agora, ao olhar para as expressões de choque, não consegui desfrutar do retorno dos meus amigos.
— Vocês encontraram o que estavam procurando — concluí.
Blitzen engoliu em seco.
— É… infelizmente, garoto. Njord estava certo. Nós vamos precisar da sua ajuda para a parte difícil.
— Álfaheim.
Eu queria dizer antes dele, só para tirar o ardor causado pela palavra. Eu esperava estar errado.
Preferiria uma viagem ao canto mais selvagem de Jötunheim, aos fogos de Muspellheim ou até a um banheiro público na South Station de Boston.
— Sim — concordou Blitzen. Ele olhou para Mallory Keen. — Querida, você pode avisar seus amigos? Precisamos pegar Magnus emprestado. Hearthstone precisa enfrentar o pai uma última vez.
Siga o cheiro de sapos mortos (ao som de “Siga a Estrada dos Tijolos Amarelos”)
QUAL ERA O problema dos pais?
Quase todo mundo que eu conhecia tinha um pai horrível, como se todos estivessem competindo pelo prêmio de Pior Pai do Universo.
Eu tive sorte. Só conheci meu pai no último inverno. Mesmo assim, só conversei com ele por alguns minutos. Mas pelo menos Frey parecia legal. Ele me abraçou. Também me deixou ficar com sua espada falante que curte músicas da era disco e me mandou um barco amarelo em um momento de necessidade.
Sam tinha Loki, que era a maldade encarnada. O pai de Alex era um idiota abusivo e raivoso com sonhos de dominação de louça global. E Hearthstone… o pai dele era ainda pior do que o de todos nós juntos. O sr. Alderman fez da infância de Hearthstone um Helheim. Eu não queria passar perto da casa daquele homem, e só tinha ido lá uma vez. Não conseguia imaginar como Hearthstone aguentou morar ali.
Nós caímos pelo céu dourado do jeito como se cai no mundo aerado dos elfos. Pousamos delicadamente na rua em frente à mansão Alderman. Como antes, a rua ampla do subúrbio se prolongava nas duas direções, com muros de pedra e árvores bem cuidadas, escondendo as propriedades de muitos hectares dos milionários elfos umas das outras. A gravidade fraca fazia o chão parecer mole sob meus pés, como se eu pudesse quicar de volta para o céu. (Fiquei com vontade de tentar.) A luz do sol continuava tão intensa quanto eu lembrava, deixando-me grato pelos óculos escuros que Alex me emprestou, mesmo tendo uma armação grossa e cor-de-rosa no estilo Buddy Holly. (Riram muito disso no Bananão. )
Por que deixamos Midgard ao pôr do sol e chegamos a Álfaheim no meio do que parecia a tarde, eu não fazia ideia. Talvez os elfos tivessem um horário de verão perpétuo.
Os portões elaborados de Alderman ainda brilhavam com o monograma de A dourado. Dos dois lados, os muros altos ainda tinham arame farpado no topo para afastar invasores. Mas agora as câmeras de segurança estavam escuras e paradas, e os portões, fechados com uma corrente e um cadeado. Dos dois lados do portão, presas a colunas de pedra, havia placas amarelas idênticas com letras vermelhas gritantes.
PROPRIEDADE INTERDITADA
POR ORDEM DO DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DE ÁLFAHEIM
INVASORES VÃO MORRER
Não “serão julgados”. Não “serão presos” ou “levarão tiros”. O aviso simples — se você entrar, vai morrer — era bem mais sinistro.
Meu olhar percorreu o terreno, que era mais ou menos do tamanho do Public Garden de Boston. Desde nossa última visita, a grama tinha crescido bastante na luz intensa de Álfaheim e estava bem alta. Grandes bolas de musgo cobriam as árvores. O odor pungente da sujeira no lago dos cisnes chegou a nós pelos portões.
O caminho de oitocentos metros que levava até a casa estava coberto de penas brancas, possivelmente dos tais cisnes; de ossos e tufos de pelos que podiam ter sido esquilos e guaxinins; e de um único sapato social preto que parecia ter sido mastigado e cuspido.
No alto da colina, a antes imponente mansão Alderman estava em ruínas. O lado esquerdo havia desabado em uma pilha de destroços, vigas e paredes queimadas. Trepadeiras tinham coberto completamente o lado direito, tão densas que o teto afundou. Apenas dois dos janelões permaneciam intactos, as vidraças marrons nas beiradas por causa do fogo. Cintilando no sol, elas me lembraram os malfadados óculos de T.J.
Eu me virei para os meus amigos.
— Nós fizemos isso?
Eu estava mais impressionado, em vez de me sentir culpado. Na última vez que fugimos de Álfaheim, estávamos sendo perseguidos por espíritos da água do mal e pela polícia élfica armada, sem mencionar o pai louco de Hearth. Podemos ter quebrado algumas janelas no processo. Era possível que tivéssemos provocado um incêndio também. Se isso tivesse mesmo acontecido, não poderia ter sido em uma mansão mais cruel.
Mesmo assim… eu não entendia como o lugar podia ter ficado tão destruído, nem como um paraíso daqueles podia ter virado esse local sinistro tão rápido.
— Nós só começamos. — O rosto de Blitzen estava coberto pela rede, tornando impossível que eu visse sua expressão. — Essa destruição é culpa do anel.
Na luz quente e forte, não devia ser possível sentir um arrepio. Ainda assim, uma sensação gelada desceu pelas minhas costas. Na nossa última visita, Hearth e eu roubamos um monte de ouro de um anão velho e desonesto, Andvari, inclusive o anel amaldiçoado do sujeito. Ele tentou nos avisar que o anel só traria infelicidade, mas nós ouvimos? Nãããão. Na época, estávamos mais concentrados em coisas como, ah, salvar a vida de Blitzen. A única coisa que faria isso era a pedra Skofnung, que estava com o sr.
Alderman. O preço dele? Um montão de ouro, porque pais malvados não aceitam cartão de crédito.
Em resumo: Alderman ficou com o anel amaldiçoado. Colocou no dedo e ficou ainda mais maluco e malvado, o que eu não achava possível.
Pessoalmente, eu gostava que meus anéis amaldiçoados pelo menos fizessem alguma coisa legal, como deixá-lo invisível ou espiar o Olho de Sauron. O anel de Andvari não tinha nada de bom. Despertava o pior nas pessoas: ganância, ódio, inveja. De acordo com Hearth, até as transformava em um monstro de verdade, para que seu lado exterior pudesse ser tão repulsivo quanto o interior.
Se o anel ainda estivesse exercendo sua magia sobre o sr. Alderman e o tivesse dominado com a mesma rapidez com que a natureza tomou conta da propriedade dele… Pois é, isso não era um bom sinal.
Eu me virei para Hearth.
— Seu pai… ele ainda está aí dentro?
A expressão de Hearthstone estava triste e resignada, como a de um homem que finalmente aceitou um diagnóstico terminal. Por perto, sinalizou ele. Mas não é mais ele mesmo.
— Você não quer dizer…
Eu olhei para o sapato mastigado. Questionei o que tinha acontecido com seu dono. Eu me lembrei do meu sonho com olhos verdes enormes e fileiras de dentes afiados. Não, não podia ser isso o que Hearth queria dizer. Nenhum anel amaldiçoado podia agir tão rápido, podia?
— Vocês… vocês olharam lá dentro? — perguntei.
— Infelizmente. — Blitz sinalizou enquanto falava, porque Hearth não tinha como ler seus lábios. —
A coleção inteira de pedras e artefatos raros de Alderman… sumiu. Junto com todo o ouro. Então, se a pedra de amolar que estamos procurando estivesse em algum lugar da casa…
Foi levada para outro lugar, sinalizou Hearthstone. Parte do tesouro dele.
O sinal que Hearth usou para tesouro foi um punho fechado na frente do queixo, como se ele estivesse segurando uma coisa valiosa: Fortuna. Meu. Não toque nele senão vai morrer.
Engoli um bolo de areia.
— E… vocês encontraram o tesouro dele?
Eu sabia que os meus amigos eram corajosos, mas pensar neles xeretando dentro daquela propriedade me apavorava. Com certeza não tinha sido bom para a população local de esquilos.
— Nós achamos que encontramos o covil dele — disse Blitz.
— Ah, que ótimo. — Minha voz soou mais aguda do que o habitual. — Alderman tem um covil agora.
E, hã, vocês viram ele?
Hearthstone balançou a cabeça. Só sentimos o cheiro.
— Certo — falei. — Isso nem é sinistro.
— Você vai ver — disse Blitz. — É mais fácil mostrar do que explicar.
Era uma proposta que eu preferia recusar, mas de jeito nenhum eu ia deixar Hearth e Blitz passarem por aqueles portões de novo sem mim.
— P-por que os elfos daqui não fizeram nada em relação à propriedade? — perguntei. — Na última vez que estivemos aqui, queriam nos prender por vadiagem. Os vizinhos não reclamaram?
Eu indiquei as ruínas. Uma visão horrível daquelas, principalmente se matava cisnes, roedores e um ocasional carteiro élfico, tinha que ser contra as regras da associação de moradores do bairro.
— Nós conversamos com as autoridades — disse Blitz. — Na metade do tempo que ficamos fora, tivemos que lidar com burocracia élfica. — Ele estremeceu dentro do casaco pesado. — Você ficaria surpreso de saber que a polícia não queria nos ouvir? Não conseguimos provar que Alderman está morto ou desaparecido. Hearthstone não tem direitos legais ao terreno. Quanto a limpar a propriedade, o melhor que a polícia fez foi colocar esses avisos idiotas. Eles não querem arriscar o pescoço, por mais que os vizinhos reclamem. Os elfos fingem ser sofisticados, mas são tão supersticiosos quanto arrogantes. Nem todos os elfos, claro. Desculpe, Hearth.
Hearthstone deu de ombros. Não podemos culpar a polícia, sinalizou ele. Você ia querer entrar lá se não precisássemos muito?
Ele tinha razão. Só a ideia de entrar na propriedade, sem poder ver o que se escondia na grama alta, fazia vários nós se formarem no meu estômago. A polícia de Álfaheim era ótima em intimidar transeuntes para que saíssem do bairro. Enfrentar uma ameaça verdadeira nas ruínas da mansão de um louco… nem tanto.
Blitzen suspirou.
— Bom, não faz sentido ficarmos aqui parados. Vamos procurar o querido papai.
• • •
Eu teria preferido outro jantar com as filhas assassinas de Aegir ou uma batalha até a morte com uma pilha de cerâmica. Caramba, até teria dividido suco de goiaba com uma matilha de lobos no terraço do tio Randolph.Nós pulamos o portão e seguimos pela grama alta. Mosquitos e moscas atacaram nosso rosto. A luz do sol fazia minha pele pinicar e meus poros estalarem com suor. Decidi que Álfaheim era um mundo bonito quando estava bem cuidado, aparado e mantido pelos funcionários. Quando deixado à natureza, ficava selvagem de forma exagerada. Eu me perguntei se os elfos eram parecidos. Calmos, delicados e formais
por fora, mas, se deixados soltos… Eu realmente não queria conhecer o novo e aprimorado sr. Alderman.
Nós contornamos as ruínas da casa, o que achei ótimo. Eu me lembrava muito bem do tapete azul peludo no antigo quarto de Hearthstone, que fomos obrigados a cobrir com ouro para pagar o wergild pela morte do irmão dele. Eu me lembrava do quadro de infrações na parede de Hearthstone, contabilizando a dívida infinita dele com o pai. Eu não queria chegar perto daquele lugar de novo, mesmo que em ruínas.
Conforme seguíamos pelo jardim, alguma coisa estalou embaixo do meu pé. Eu olhei para baixo. Meu sapato entrou direto na caixa torácica do esqueleto de um pequeno cervo.
— Eca.
Hearthstone franziu a testa para os restos ressecados. Nada além de algumas tiras de carne e pelo se prendiam aos ossos.
Comido, sinalizou ele, levando as pontas dos dedos unidas até a boca. O sinal era bem parecido com tesouro/fortuna. Às vezes, a linguagem de sinais era precisa demais para o meu gosto.
Com um pedido de desculpas silencioso ao pobre cervo, eu puxei o pé. Não sabia dizer o que podia ter devorado aquele animal, mas esperava que a presa não tivesse sofrido muito. Fiquei surpreso de animais selvagens terem permissão de existir nos bairros elegantes de Álfaheim. Eu me perguntei se a polícia tentava prender os cervos por vadiagem, talvez algemando as perninhas e os enfiando na traseira das viaturas.
Nós seguimos para o bosque nos fundos da propriedade. A grama estava tão alta que não dava para saber onde acabava o gramado e começava a vegetação da floresta. Aos poucos, a quantidade de árvores foi aumentando até a luz do sol ficar reduzida a pontinhos amarelados no chão da floresta.
Eu achava que não estávamos longe do velho poço onde o irmão de Hearthstone tinha morrido —
outro lugar em posição de destaque na minha lista de “lugares para não visitar nunca mais”. Então, claro que demos de cara com ele.
Um amontoado de pedras cobria a área onde o poço tinha sido preenchido. Não havia mato nem grama crescendo na terra, como se as plantas não quisessem invadir uma clareira envenenada daquele jeito.
Mesmo assim, não tive dificuldade de imaginar Hearthstone e Andiron brincando ali quando crianças, Hearth de costas enquanto empilhava pedras com alegria, incapaz de ouvir o grito do irmão quando o brunnmigi, o monstro que morava no poço, surgiu da escuridão.
Eu comecei a dizer:
— Nós não precisamos ficar aqui…
Hearth andou até o monte de pedras como se em transe. No alto da pilha, no mesmo lugar em que Hearthstone a deixou na nossa última visita, estava uma runa:
Othala, a runa que simbolizava herança familiar. Hearthstone decidiu que nunca usaria aquela runa novamente. O significado dela tinha morrido para ele naquele lugar. Nem o conjunto novo de runas de sorveira, que ele ganhou de presente da deusa Sif, continha othala. Sif avisou a ele que isso lhe causaria problemas. Ela disse que Hearth acabaria tendo que voltar para buscar a peça que faltava.
Eu odiava quando as deusas estavam certas.
Você vai pegar? , sinalizei.
Em um lugar assim, conversas silenciosas pareciam melhor do que em voz alta.
Hearthstone franziu a testa, o olhar decidido. Ele fez um gesto rápido de cortar, na diagonal e depois para baixo, como se estivesse fazendo um ponto de interrogação ao contrário. Nunca.
Blitzen farejou o ar.
Estamos perto agora. Estão sentindo o cheiro?
Eu só sentia o odor suave de plantas podres.
Que cheiro?
— Credo — disse Blitzen em voz alta. Os narizes humanos são patéticos, sinalizou .
Inúteis, concordou Hearthstone, e adentrou ainda mais a floresta.
Nós não seguimos na direção do rio, como na última vez, quando estávamos atrás do ouro de Andvari.
Dessa vez, fomos andando pela margem, abrindo caminho entre arbustos e raízes retorcidas de carvalhos enormes.
Depois de um tempo, comecei a sentir o cheiro que Hearth e Blitzen tinham mencionado. Tive um flashback de uma aula de biologia do oitavo ano, quando Joey Kelso escondeu o hábitat dos sapos do nosso professor no forro da sala de aula. Só descobriram um mês depois, quando o terrário de vidro caiu do teto e se quebrou na mesa do professor, espirrando vidro, mofo, gosma e corpos rançosos de anfíbios na primeira fileira.
O cheiro que senti na floresta era parecido com isso, só que muito pior.
Hearthstone parou na beira de uma nova clareira. Ele se agachou atrás de uma árvore caída e fez sinal para nos juntarmos a ele.
Ali, sinalizou ele. O único lugar para onde ele poderia ter ido.
Espiei em meio às sombras. As árvores em volta da clareira tinham sido reduzidas a palitos carbonizados. O chão estava coberto de gosma podre e ossos de animais. Uns quinze metros à frente havia um rochedo, com duas grandes pedras inclinadas uma sobre a outra formando o que parecia ser a entrada de uma caverna.
— Agora — sussurrou Blitz enquanto sinalizava —, a gente espera pelo que quer que os elfos chamem de noite neste lugar esquecido pelos anões.
Hearth assentiu. Ele vai sair à noite. Aí vamos ver.
Eu estava tendo dificuldade de respirar, e mais ainda de pensar em meio ao fedor de sapos mortos.
Ficar ali parecia uma péssima ideia.
Quem vai sair? , sinalizei. Seu pai? Dali? Por quê?