— Quando se está dentro da noz — disse Mallory —, não dá para sair até que alguém permita que você saia. Sam demorou uns vinte minutos para lembrar que eu estava lá dentro…
— Ah, para com isso — disse Sam. — Foram só uns cinco.
— Pareceu mais tempo.
— Aham. — Mestiço assentiu. — Imagino que o tempo passe mais devagar quando se está dentro de uma noz.
— Cala a boca, pateta — resmungou Mallory.
Mestiço sorriu.
— Então vamos zarpar ou o quê? O tempo urge!
• • •
A temperatura caiu quando estávamos velejando em direção ao pôr do sol. No meio do navio, Sam fez sua oração da noite. Hearthstone e Blitzen estavam na proa, olhando com admiração para os fiordes.Mallory desceu para o convés para ver como T.J. estava e preparar o jantar.
Eu estava no leme ao lado de Mestiço Gunderson, ouvindo a vela ondular ao vento e os remos mágicos cortarem a água em sincronia perfeita.
— Eu estou bem — disse Mestiço.
— Hã?
Eu olhei para ele. Seu rosto estava azul nas sombras da noite, como se ele o tivesse pintado para a batalha (como às vezes fazia).
— Você ia perguntar se eu estava bem — disse ele. — É por isso que está aqui, não é? Eu estou bem.
— Ah. Que bom.
— Admito que foi estranho andar pelas ruas de Fläm pensando que cresci ali em uma casinha com a minha mãe. O lugar é mais bonito do que eu me lembrava. E eu talvez tenha imaginado como teria sido minha vida se eu tivesse ficado, me casado e tal.
— Certo.
— Quando Baugi insultou a cidade, perdi a cabeça. Eu não estava esperando ficar… sabe como é, sentimental por estar aqui.
— Claro.
— Não que eu espere que alguém escreva uma balada por eu ter salvado minha cidade nem nada. —
Ele inclinou a cabeça como se quase conseguisse ouvir a melodia. — Estou feliz de ter ido embora de novo. Não me arrependo das escolhas que fiz quando eu estava vivo, nem mesmo da de ter deixado minha mãe para trás e nunca mais tê-la visto.
— Certo.
— E Mallory ter conhecido a mãe dela… isso não importa para mim. Mas fiquei feliz de Mac ter descoberto a verdade, mesmo ela pegando um trem sem nos contar, mesmo correndo risco de vida, isso tudo sem que eu tenha ficado sabendo de nada. Ah, isso vale para você e Sam também, claro.
— Claro.
Mestiço bateu no leme.
— Maldita megera! O que ela estava pensando?
— Hã…
— Filha de Frigga? — A gargalhada de Mestiço soou meio histérica. — Não é à toa ela ser tão… —
Ele balançou a mão, fazendo sinais que podiam significar quase qualquer coisa: Exasperante?
Fantástica? Raivosa? Processador de alimentos?
— Hum…
Mestiço deu um tapinha no meu ombro.
— Obrigado, Magnus. Fico feliz de termos tido essa conversa. Você até que é legal para um curandeiro.
— Valeu.
— Você pode ficar responsável pelo leme? É só se manter no meio do fiorde e tomar cuidado com krakens.
— Krakens? — protestei.
Mestiço assentiu, distraído, e desceu para o convés inferior, talvez para dar uma olhada no jantar, ou em Mallory e T.J., ou talvez só porque eu estava fedendo.
Quando o céu escureceu por completo, já tínhamos chegado a mar aberto. Não colidi com o navio nem libertei nenhum kraken, o que foi bom. Eu não queria ter que lidar com isso.
Samirah terminou de rezar e assumiu o leme. Ela estava comendo tâmaras com a expressão habitual de êxtase pós-jejum.
— Como você está?
Eu dei de ombros.
— Considerando o dia que tivemos? Bem, eu acho.
Ela levantou o cantil e balançou o hidromel de Kvásir.
— Quer resolver isso agora? Cheirar ou provar, só para testar?
A ideia me encheu de náuseas.
— Guarde por enquanto, por favor. Vou esperar até a hora de realmente ter que beber.
— Sensato. O efeito pode não ser permanente.
— Não é isso. Eu estou com medo de beber e… e não ser suficiente. De mesmo assim eu não conseguir vencer Loki.
Sam parecia querer me dar um abraço, apesar de abraçar um garoto não ser algo que uma boa muçulmana faria.
— Eu penso a mesma coisa, Magnus. Não sobre você, mas sobre mim. Será que vou ter forças para enfrentar meu pai de novo? Será que algum de nós vai?
— Isso foi uma tentativa de elevar o moral?
Sam riu.
— Só podemos tentar, Magnus. Eu prefiro acreditar que nossas adversidades nos deixam mais fortes.
Tudo pelo que passamos nesta viagem… conta. Aumenta nossas chances de vitória.
Eu olhei para a proa. Blitzen e Hearthstone tinham adormecido lado a lado nos sacos de dormir na base da figura de proa de dragão. Parecia um lugar estranho para dormir, considerando nossa aventura em Álfaheim, mas os dois pareciam em paz.
— Espero que você esteja certa, Sam. Porque uma boa parte foi bem difícil.
Sam suspirou como se libertasse toda a fome, a sede e os palavrões que guardou dentro de si durante o jejum.
— Eu sei. Acho que uma das coisas mais difíceis de fazer é ver as pessoas como elas realmente são.
Nossos pais. Nossos amigos. Nós mesmos.
Eu me perguntei se ela estava pensando em Loki ou em si mesma. Ela poderia estar falando sobre qualquer um do navio. Nenhum de nós estava livre do passado. Durante a viagem, vimos alguns espelhos bem reveladores.
Meu momento no espelho ainda estava por vir. Quando enfrentasse Loki, eu tinha certeza de que ele teria prazer em aumentar cada defeito meu, em desvelar cada medo e fraqueza. Se conseguisse, ele me reduziria a uma pocinha chorona no chão.
Nós tínhamos até o dia seguinte para chegar a Naglfar, Frigga dissera… ou depois de amanhã, no máximo. Eu me vi hesitando, quase desejando perdermos o prazo só para eu não ter que enfrentar Loki cara a cara. Mas não. Meus amigos estavam contando comigo. Pelo futuro de todo mundo que eu conhecia, de todo mundo que não conhecia… eu precisava adiar o Ragnarök pelo máximo de tempo possível. Eu tinha que dar a Sam e Amir uma chance de terem uma vida normal, e a Annabeth e Percy, e à irmãzinha de Percy, Estelle. Todos mereciam um futuro melhor do que a destruição planetária.
Eu me despedi de Sam e abri meu saco de dormir no convés.
Tive um sono agitado. Sonhei com dragões e escravos. Sonhei que caía de montanhas e batalhava com gigantes de barro. A gargalhada de Loki ecoava nos meus ouvidos. O convés virava uma colcha de retalhos horrenda de unhas de homens mortos, me envolvendo em um casulo nojento de queratina.
— Bom dia! — disse Blitzen, me despertando com um susto.
A manhã estava congelante e cinzenta. Eu me sentei e quebrei a camada de gelo que havia se formado no saco de dormir. À nossa direita, erguiam-se montanhas com cumes nevados mais altas do que os fiordes da Noruega. Ao nosso redor, o mar parecia um quebra-cabeça de blocos de gelo. O convés estava coberto de geada, deixando nosso navio de guerra no tom amarelo-pálido de limonada aguada.
Blitzen era a única pessoa no convés. Ele havia se agasalhado, mas não estava mais usando nenhuma proteção solar, apesar de ser dia. Isso só podia querer dizer uma coisa.
— Nós não estamos mais em Midgard.
Blitzen abriu um sorriso fraco, sem humor.
— Nós já estamos em Jötunheim há algumas horas, garoto. Os outros estão lá embaixo, tentando se
aquecer. Você… bom, por ser filho do deus do verão, é mais resistente ao frio, mas até você vai começar a ter problemas logo. A julgar pela velocidade com que a temperatura está despencando, estamos chegando perto da fronteira de Niflheim.
Eu estremeci instintivamente. Niflheim, o reino primordial do gelo: um dos poucos mundos que eu ainda não tinha visitado e nem fazia muita questão de visitar.
— Como nós vamos saber que chegamos? — perguntei.
O navio balançou com um barulho alto que afrouxou minhas juntas. Eu fiquei de pé, cambaleando. O
Bananão estava parado na água. A superfície do mar tinha virado gelo sólido para todos os lados.
— Eu diria que chegamos. — Blitz suspirou. — Vamos torcer para Hearthstone conseguir conjurar algum fogo mágico. Senão, vamos morrer congelados em poucas horas.
Trinta e sete
Alex morde a minha cara
JÁ TIVE MUITAS mortes sofridas. Já fui empalado, decapitado, queimado, afogado, esmagado e jogado do terraço do centésimo terceiro andar.
Prefiro tudo isso a hipotermia.
Depois de apenas alguns minutos, meus pulmões pareciam respirar pó de gelo. A tripulação inteira teve que subir ao convés para resolver o problema do gelo, mas não tivemos muito sucesso. Mandei Jacques quebrar a camada que se formou à nossa frente enquanto Mestiço e T.J. usavam alabardas para cortar o gelo de bombordo e estibordo. Sam voou à frente com uma corda e tentou rebocar o Bananão.
Alex se transformou em morsa e empurrou por trás. Eu estava com muito frio para fazer piadas sobre como ela ficava bonita com presas, bigodes e barbatanas.
Hearthstone invocou uma nova runa:
Ele explicou que aquela era kenaz: a tocha, o fogo da vida. Em vez de desaparecer logo depois, como a maioria das runas, kenaz continuou ardendo acima da proa, um arco flutuante de fogo a um metro e meio de altura, derretendo o gelo no convés e nos cordames. Kenaz nos manteve aquecidos para evitar a morte instantânea, mas Blitz ficou reclamando que sustentar a runa por muito tempo deixaria Hearth esgotado.
Alguns meses antes, um esforço como esse o teria matado. Agora, ele estava mais poderoso, mas ainda assim fiquei preocupado.
Encontrei um binóculo no meio das nossas coisas e olhei ao redor em busca de alguma promessa de abrigo nas montanhas. Porém não vi nada além de pedras.
Só percebi que meus dedos estavam ficando azuis quando Blitz chamou minha atenção. Conjurei um pouco de calor de Frey para as mãos, mas o esforço me deixou tonto. Usar o poder do verão ali era como tentar lembrar tudo que aconteceu no meu primeiro dia de aula quando ainda era um bebê. Eu sabia que o verão existia em algum lugar, mas era algo tão distante, tão vago, que eu mal conseguia conjurar uma lembrança.
— B-blitz, v-você não parece sentir tanto frio — comentei.
Ele coçou a barba cheia de gelo.
— Anões lidam bem com o frio. Você e eu seremos os últimos a morrer congelados. Mas isso não é consolo.
Mallory, Blitz e eu usamos os remos para empurrar o gelo enquanto Mestiço e T.J. tentavam quebrá-lo.
Nós alternávamos tarefas, indo para o convés inferior em duplas e trios para nos aquecer, apesar de lá embaixo não estar muito mais quente. Teríamos ido mais rápido se descêssemos do navio e andássemos, mas a morsa Alex relatou que havia uns pontos traiçoeiros e bem finos no gelo. Além do mais, não
tínhamos onde nos abrigar. O navio ao menos fornecia suprimentos e proteção contra o vento.
Meus braços começaram a ficar dormentes. O tremor se tornou tão constante que eu não conseguia saber se tinha começado a nevar ou se minha visão estava embaçada. A runa ardente era a única coisa que nos mantinha vivos, mas sua luz e seu calor diminuíam aos poucos. Hearthstone estava sentado de pernas cruzadas embaixo de kenaz, os olhos fechados em plena concentração. Gotículas de suor pingavam da testa e congelavam assim que batiam no convés.
Depois de um tempo, até Jacques começou a agir com desânimo. Não parecia mais interessado em fazer serenata e nem em contar piadas sobre atividades para quebrar o gelo.
— E essa é a melhor parte de Niflheim — resmungou Jacques. — Vocês deviam ver as partes mais frias!
Não sei bem quanto tempo ficamos ali. Parecia impossível ter havido outro modo de viver antes daquele: quebrar gelo, empurrar gelo, tremer, morrer.
De repente, na proa, Mallory grunhiu:
— Ei! Olhem!
A neve começou a se dissipar à nossa frente. A poucos metros, se projetando em meio aos penhascos, havia uma península irregular como a lâmina de um machado corroído. Uma faixa estreita de praia de cascalho preto envolvia a base. E, perto do alto do penhasco… seriam chamas tremeluzindo?
Viramos o navio naquela direção, mas não fomos longe. O gelo ficou mais espesso e interrompeu nosso avanço. Acima da cabeça de Hearth, kenaz gotejava fracamente. Nós nos reunimos no convés, solenes e silenciosos. Havíamos nos enrolado com todos os cobertores do barco.
— V-vamos andando — sugeriu Blitz. Até ele estava começando a gaguejar. — Vamos em duplas para ajudar a manter o calor. A-atravessamos o gelo até a margem. Talvez a gente encontre abrigo.
Não era exatamente um “plano de sobrevivência” — estava mais para um plano para morrer em um lugar diferente —, mas começamos a nos mover com ar sombrio. Pegamos os suprimentos vitais, como comida, água, o cantil com o hidromel de Kvásir, nossas armas. Em seguida, descemos para o gelo e eu fiz o Bananão voltar ao seu formato de lenço, porque arrastá-lo seria um saco.
Jacques se ofereceu para ir flutuando na frente e testar o gelo com a lâmina. Eu não sabia se isso tornaria as coisas mais ou menos perigosas para nós, mas ele se recusou a voltar à forma de pingente porque os efeitos desse esforço teriam me matado. (Ele é mesmo muito atencioso.) Quando nos juntamos em pares, o braço de uma pessoa envolveu minha cintura. Alex Fierro se acomodou ao meu lado, envolvendo nossas cabeças e ombros com um cobertor. Olhei para ela, impressionado. Um lenço rosa de lã cobria sua cabeça e sua boca, e eu só conseguia ver os olhos de tons diferentes e alguns fios de cabelo verde.
— C-cala a boca — gaguejou ela. — Você é q-quente e cheio de v-verão.
Jacques conduziu o grupo pelo gelo. Atrás dele, Blitzen fez o melhor para apoiar Hearthstone, que cambaleava com kenaz acima da cabeça, embora seu calor agora fosse mais o de uma vela do que o de uma fogueira.
Sam e Mallory vinham atrás, depois T.J. e Mestiço, e finalmente Alex e eu. Andamos pelo mar congelado, seguindo para as rochas, mas nosso destino parecia ficar mais distante a cada passo. Será que o penhasco era uma miragem? Talvez a distância fosse fluida na fronteira entre Niflheim e Jötunheim.
Uma vez, no salão de Utgard-Loki, Alex e eu rolamos uma bola de boliche até as Montanhas Brancas em New Hampshire, então eu achava que tudo era possível.
Não sentia mais meu rosto. Meus pés tinham virado potes de sorvete molenga. Pensei em como seria triste chegar até aquele ponto, depois de enfrentar tantos deuses, gigantes e monstros, só para congelar até morrer no meio do nada.
Eu me agarrei a Alex. Ela fez o mesmo comigo. Sua respiração falhava e desejei que ela ainda tivesse a gordura da morsa, porque sua versão original era só pele e osso, fina como o garrote. Eu queria brigar com ela: Você precisa comer! Está definhando.
Mas gostei da sensação do calor que vinha dela. Em qualquer outra circunstância, ela teria me matado por chegar tão perto. Além disso, eu teria surtado com tanto contato físico. Eu considerava um triunfo pessoal ter aprendido a abraçar meus amigos de vez em quando, mas não costumava lidar bem com tanta proximidade. A necessidade de me manter aquecido e talvez o fato de ser Alex tornaram tudo mais fácil.
Eu me concentrei no cheiro dela, uma espécie de fragrância cítrica que me fez pensar em laranjais em um vale ensolarado no México. Não que eu já tivesse ido a um lugar assim, mas era um cheiro bom.
— Suco de goiaba — balbuciou Alex.
— O q-quê? — perguntei.
— T-terraço. B-back B-bay. Foi legal.
Ela está se agarrando a boas lembranças, percebi. Para tentar ficar viva.
— F-foi — concordei.
— York — disse ela. — Mr. Chippy. Você n-não sabia o q-que era levar pra viagem.
— Eu te odeio. Continue f-falando.
A gargalhada dela soou mais como uma tosse de fumante.
— Q-quando você voltou de Álfaheim. A sua… a sua c-cara quando eu p-peguei m-meus óculos r-rosa de volta.
— M-mas você ficou feliz de me ver?
— Ah. V-você até que é d-divertido.
Ali, lutando para andar no gelo, com nossas cabeças muito próximas, eu quase conseguia imaginar que Alex e eu éramos um guerreiro de argila com duas faces, um ser gêmeo. O pensamento foi reconfortante.
A uns cinquenta metros do penhasco, talvez, a runa se apagou. Hearth cambaleou para cima de Blitz. A temperatura despencou ainda mais, o que eu não achava possível. Meus pulmões expeliram o restinho de calor que continham. E reclamaram quando tentei inspirar.
— Continuem! — gritou Blitz com a voz rouca. — Eu não vou morrer vestido assim!
Nós obedecemos e seguimos passo a passo para a praia estreita de cascalho, onde pelo menos poderíamos morrer em terra firme.
Blitz e Hearth estavam quase na margem quando Alex parou abruptamente.
Eu também não tinha mais nenhuma energia, mas achei que devia tentar parecer encorajador.
— Nós… nós temos que s-seguir em frente.
Eu olhei para ela. Nossos narizes se encostavam debaixo dos cobertores. Os olhos dela cintilavam, mel e castanho. O lenço tinha escorregado para baixo do queixo. Seu hálito parecia de limão.
De repente, antes que eu entendesse o que estava acontecendo, ela me beijou. Se tivesse me mordido eu teria ficado menos surpreso. Os lábios de Alex estavam rachados e ásperos por causa do frio. O nariz se encaixou perfeitamente ao lado do meu. Nossos rostos se alinharam, nosso hálito se misturou. E então ela se afastou.
— Eu não ia morrer sem fazer isso — disse ela.
O mundo de gelo primordial não devia ter me congelado completamente, porque meu peito ardia como uma fornalha.
— E aí? — Ela franziu a testa. — Fecha a boca e vamos logo.
Andamos até a margem. Minha mente não estava funcionando direito. Eu me perguntei se Alex tinha me beijado só para me inspirar a seguir em frente ou para me distrair de nossas mortes iminentes. Não parecia possível que ela realmente quisesse me beijar. Fosse qual fosse o caso, aquele beijo foi o único
motivo de eu ter conseguido chegar à margem.
Nossos amigos já estavam lá, encolhidos perto das pedras. Não pareciam ter reparado no que se passou entre mim e Alex. Por que reparariam? Todo mundo estava ocupado demais tentando não morrer congelado.
— Eu… eu tenho p-pólvora — gaguejou T.J. — P-posso fazer uma f-fogueira?
Infelizmente, não tínhamos nada para queimar além das nossas roupas, e precisávamos delas.
Blitz olhou com infelicidade para o penhasco, íngreme e implacável.
— V-vou tentar dar forma à pedra — disse ele. — Talvez eu consiga cavar um túnel.
Eu já tinha visto Blitz modelar pedra sólida, mas era uma tarefa que exigia muita energia e concentração. E mesmo assim, na outra ocasião, ele fez simples apoios para as mãos. Achava difícil que ele tivesse forças para cavar uma caverna inteira. E duvidava de que isso pudesse nos salvar. Mas apreciei o otimismo teimoso dele.
Blitz acabara de enfiar os dedos na pedra quando o penhasco todo ribombou. Uma linha de luz intensa formou o contorno de uma porta enorme que se abriu para dentro com um ruído alto.
Na abertura, surgiu uma giganta tão terrível e linda quanto a paisagem de Niflheim. Tinha três metros de altura, usava roupas de peles brancas e cinzentas, os olhos castanhos eram frios e furiosos e o cabelo escuro tinha várias tranças, como um chicote.
— Quem ousa mexer na minha porta da frente? — perguntou ela.
Blitz engoliu em seco.
— Hã, eu…
— Por que não deveria matar todos vocês? — perguntou a giganta. — Ou, como já parecem meio mortos, talvez seja melhor eu só fechar a porta e deixar vocês congelarem!
— E-espera! — falei, grunhindo. — Sk-Skadi… Você é Skadi, não é?
Deuses de Asgard, pensei, que essa seja mesmo Skadi e não uma giganta qualquer chamada Gertrude, a Antipática.
— E-eu sou M-Magnus Chase. Neto de Njord. E-ele me mandou f-falar com você.
Uma variedade de emoções passou pelo rosto de Skadi: irritação, ressentimento e talvez só um toque de curiosidade.
— Tudo bem, garoto congelado — resmungou ela. — Isso fez vocês ganharem direito a passar pela porta. Quando todos estiverem descongelados e se explicarem, vou decidir se uso vocês ou não como alvos de arco e flecha.
Skadi sabe de tudo, flecha tudo
EU NÃO QUERIA soltar Alex. Ou talvez não fosse fisicamente capaz de fazer isso.
Dois servos jötunn de Skadi tiveram que nos separar à força. Um deles me carregou por uma escada sinuosa para dentro da fortaleza, meu corpo ainda todo encolhido de frio.
Em comparação com o exterior, o salão de Skadi parecia uma sauna, apesar de o termostato provavelmente estar configurado para temperaturas quase congelantes. Fui carregado por corredores altos de pedra com tetos abobadados que me lembravam as igrejas grandes e velhas de Back Bay (ótimos lugares para se aquecer no inverno quando se é sem-teto). De tempos em tempos, um estrondo ecoava pela fortaleza, como se alguém estivesse disparando ao longe com canhões. Skadi gritou ordens para os servos, e nós fomos levados para aposentos separados para nos banhar.
Um jötunn me colocou em um banho tão quente que alcancei uma nota aguda que não alcançava desde o quarto ano da escola. Ainda na água, ele me deu uma coisa para beber, uma mistura com gosto de mato horrível que queimou minha garganta e fez meus dedos das mãos e dos pés se retorcerem em espasmos.
Ele me tirou da banheira, e quando me vestiu com uma túnica e uma calça branca de lã, eu tive que admitir que estava quase me sentindo bem de novo, mesmo com Jacques agora pendurado no meu pescoço como pedra de runa. A cor dos meus dedos voltara ao normal. Eu conseguia sentir meu rosto.
Meu nariz não tinha necrosado e caído, e meus lábios estavam exatamente onde Alex os deixou.
— Você vai viver — resmungou o gigante, como se esse fato fosse um fracasso pessoal da parte dele.
Ele me deu sapatos confortáveis de pele e uma capa grossa e quente, depois me levou para o salão principal, onde meus amigos já estavam esperando.
O salão era em boa parte o padrão viking: um piso de pedra rudimentar coberto de palha, um teto feito de lanças e escudos e três mesas com formato de U em volta de uma fogueira, embora as chamas de Skadi fossem brancas e azuis e não parecessem emitir calor.
Em uma das paredes, uma fileira de janelas do tamanho das de catedrais se abria para uma vista obscurecida por uma nevasca. Não vi vidro nas janelas, mas o vento e a neve não invadiam o aposento.
À mesa central, Skadi estava sentada em um trono feito de teixo coberto de peles. Os servos andavam de um lado para outro, levando pratos de pão fresco e carne assada, junto com canecas fumegantes que tinham cheiro de… chocolate quente? De repente, passei a gostar bem mais de Skadi.
Meus amigos estavam todos vestidos como eu, de lã branca, então parecíamos uma sociedade secreta de monges muito limpos: a Sociedade da Água Sanitária. Admito que procurei Alex primeiro, torcendo para me sentar ao seu lado, mas ela estava no banco mais distante, entre Mallory e Mestiço, com T.J. na ponta.
Alex me viu. Fez sinal para meu rosto espantado, como quem diz: Está olhando o quê?
Então tudo tinha voltado ao normal. Um beijo à beira da morte e voltamos para nosso sarcasmo de sempre. Que maravilha.
Eu me sentei ao lado de Blitzen, Hearthstone e Sam, o que achei ótimo.
Nós todos começamos a jantar, exceto Sam. Ela não havia tomado banho, pois também era contra as regras do ramadã, mas tinha mudado de roupa. O hijab mudara de cor para combinar com a roupa branca.
De alguma forma, ela conseguiu não olhar com desejo para a comida de todo mundo, o que me convenceu sem dúvida alguma de que ela tinha resistência sobre-humana.
Skadi parecia relaxada no trono, as tranças caindo pelos ombros, a capa de pelo fazendo-a parecer ainda maior do que já era. Ela girava uma flecha em cima do joelho. Atrás dela, a parede estava coberta de estantes com equipamentos: esquis, arcos, aljavas de flechas. Ela só podia ser fã de arquearia cross-country.
— Bem-vindos, viajantes, a Thrymheimr — disse nossa anfitriã. — Em nossa língua, Lar do Trovão.
Como se planejado, um estrondo sacudiu a sala, o mesmo bum que ouvi quando estava nos corredores da fortaleza. Agora, eu sabia o que era: trovão de neve. Dava para ouvir em Boston às vezes, quando uma tempestade de neve se misturava com uma tempestade normal. Parecia o ruído de bombinhas estourando dentro de um travesseiro de algodão, só que ampliado um milhão de vezes.
— Lar do Trovão. — Mestiço assentiu seriamente. — Um bom nome, considerando, sabe, o constante…
Um trovão soou de novo, sacudindo os pratos na mesa.
Mallory se inclinou na direção de Alex.
— Não consigo alcançar Gunderson. Você pode bater nele por mim?
Apesar do tamanho enorme do salão, a acústica era perfeita. Eu conseguia ouvir cada sussurro.
Perguntei-me se Skadi tinha planejado o local com isso em mente.
A giganta não comia nada do prato à sua frente. Melhor cenário: ela estava em jejum pelo ramadã.
Pior cenário: ela estava esperando até termos engordado o suficiente para nos apreciar como prato principal.
Ela bateu com a flecha no joelho enquanto me observava atentamente.
— Então você é parente de Njord, é? — perguntou ela. — Filho de Frey, imagino.
— Sim, hã, senhora.
Eu não sabia se moça ou senhorita ou pessoa enorme e assustadora eram títulos apropriados, mas Skadi não me matou, então achei que não a tinha ofendido. Ainda.
— Consigo ver a semelhança. — Ela franziu o nariz, como se a semelhança não fosse um ponto a meu favor. — Njord não foi um marido tão ruim. Ele era gentil. Tinha pés lindos.
— Pés incríveis — concordou Blitz, balançando uma costela de porco para enfatizar.
— Mas nós não conseguíamos nos entender — continuou Skadi. — Diferenças irreconciliáveis. Ele não gostava do meu salão. Dá pra acreditar?
Hearthstone sinalizou: Você tem um salão lindo.
O gesto para lindo era fazer um círculo com a mão na frente do rosto e abrir os dedos como quem faz puf! Nas primeiras vezes que vi, achei que Hearth estava dizendo Isso faz meu rosto explodir.
— Obrigada, elfo — agradeceu Skadi (porque os melhores gigantes entendiam linguagem de sinais).
— Sem dúvida, Lar do Trovão é melhor do que a casa de praia de Njord. Aquelas gaivotas gritando sem parar… eu não suportava o barulho!
Um trovão sacudiu a sala de novo.
— Sim — disse Alex —, não tem paz e tranquilidade, como aqui.
— Exatamente — concordou Skadi. — Meu pai construiu esta fortaleza, que sua alma descanse com Ymir, o primeiro gigante. Agora Thrymheimr é minha e não pretendo abrir mão dela. Já estou de saco cheio dos aesires! — Ela se inclinou para a frente, ainda segurando a flecha do mal cheia de espetos. —
Agora me diga, Magnus Chase, por que Njord mandou você até aqui? Não me diga que ele ainda tem ilusões sobre ficarmos juntos de novo, por favor.
Por que eu? , pensei.
Skadi parecia legal. Eu já tinha conhecido gigantes suficientes para saber que nem todos eram maus, assim como nem todos os deuses eram bons. Mas se Skadi não queria mais saber dos aesires, eu não sabia se ela acharia bom irmos atrás de Loki, que, claro, era o maior inimigo dos aesires. Eu definitivamente não queria contar que meu avô, o deus da pedicure, ainda sentia falta dela.
Por outro lado, meus instintos me diziam que Skadi enxergaria qualquer mentira ou omissão com a mesma facilidade com que ouvia cada sussurro naquele salão. Thrymheimr não era um lugar para segredos.
— Njord queria que eu perguntasse o que você sente por ele — admiti.
Ela suspirou.
— Não acredito. Ele não mandou flores dessa vez, né? Eu falei para ele parar com os buquês.
— Nada de flores — prometi, me solidarizando de repente com todos os entregadores inocentes de Niflheim que ela devia ter matado. — E os sentimentos de Njord não são o motivo principal para estarmos aqui. Nós viemos impedir Loki.
Todos os servos pararam o que estavam fazendo. Olharam para mim e para a patroa, como se pensando: Ora, isso vai ser interessante. Meus amigos me encararam com expressões que variavam de Você vai tirar isso de letra! (Blitzen) a Não estrague tudo como costuma fazer (Alex).
Os olhos castanhos de Skadi cintilaram.
— Continue.
— Loki está preparando o navio Naglfar para zarpar. Viemos impedir, recapturar ele e levar de volta para os aesires, para não termos que lutar no Ragnarök, tipo, amanhã.
Outro trovão sacudiu a montanha.
O rosto da giganta estava ilegível. Eu a imaginei disparando a flecha pelo salão e empalando meu peito como um dardo de visgo.
Mas ela só jogou a cabeça para trás e riu.
— É por isso que vocês estão carregando o hidromel de Kvásir? Você pretende desafiar Loki a um vitupério?
Engoli em seco.
— Hã… é. Como você sabe que nós estamos com o hidromel de Kvásir?
Minha segunda pergunta, subentendida, foi: E você vai tirá-lo de nós?
A giganta se inclinou para a frente.
— Estou ciente de tudo que acontece no meu salão, Magnus Chase, e de todo mundo que passa por ele.
Já fiz o inventário de suas armas, seus suprimentos, seus poderes, suas cicatrizes. — Ela observou a sala, pousando o olhar em cada um de nós… não com solidariedade, mais como quem estava escolhendo alvos. —Eu também saberia se um de vocês mentisse para mim. Para sua sorte, você não mentiu. Agora, me diga: por que eu deveria deixar vocês irem em frente com essa missão? Quero que me convença a não matar todo mundo aqui.
Mestiço Gunderson limpou a barba.
— Bom, primeiro, lady Skadi, nos matar daria muito trabalho. Se você conhece nossas habilidades, sabe que somos excelentes lutadores. Nós daríamos um trabalho danado…
Uma flecha atingiu a mesa a dois centímetros da mão de Mestiço. Eu nem vi como aconteceu. Olhei para Skadi… De repente, ela estava segurando um arco e uma segunda flecha já preparada para disparar.
Mestiço nem se mexeu. Colocou o chocolate quente na mesa e arrotou.
— Foi sorte.
— Rá! — Skadi baixou o arco, e meu coração voltou a bombear sangue. —Então vocês são corajosos.
Ou tolos, pelo menos. O que mais podem me dizer?
— Que não somos amigos de Loki — ofereceu Samirah. — E nem você.
Skadi ergueu a sobrancelha.
— O que faz você dizer isso?
— Se você fosse amiga de Loki, nós já estaríamos mortos. — Sam indicou as janelas. — O porto de Naglfar fica aqui perto, não fica? Consigo sentir que meu pai está próximo. Você não gosta de Loki estar reunindo seu exército no quintal da sua casa. Se nos deixar seguir com nossa missão, vamos tirar meu pai da jogada.
Alex assentiu.
— Ah, vamos mesmo.
— Interessante — refletiu Skadi. — Duas filhas de Loki sentadas à minha mesa, e as duas parecem odiá-lo ainda mais do que eu. O Ragnarök gera aliados estranhos.
T.J. bateu palmas uma vez, tão alto que todos nos encolhemos (menos Hearth).
— Eu sabia! — Ele sorriu e apontou para Skadi. — Eu sabia que essa moça tinha bom gosto. Um chocolate quente gostoso assim? Um salão lindo desses? E servos em vez de escravos!
Skadi curvou o lábio.
— Sim, einherji. Eu detesto a escravidão.
— Estão vendo?
T.J. olhou para Mestiço com cara de Eu te disse. Mais trovões sacudiram os pratos e os copos, como se concordando com T.J. O berserker só revirou os olhos.
— Eu sabia que essa moça odiava Loki — resumiu T.J. — Ela é praticamente uma apoiadora da União!
A giganta franziu a testa.
— Não sei bem o que isso quer dizer, entusiasmado convidado, mas você está certo: eu não sou amiga de Loki. Houve uma época em que ele não pareceu ser tão ruim. Ele conseguia me fazer rir. Era encantador. Mas, durante o vitupério no salão de Aegir… Loki insinuou que… que tinha compartilhado a cama comigo.
Skadi estremeceu com a lembrança.
— Ele manchou minha honra na frente de todos os deuses. Disse coisas horríveis. E assim, quando os aesires o prenderam naquela caverna, fui eu que consegui a víbora e coloquei acima da cabeça de Loki.
— Ela deu um sorriso frio. — Os aesires e vanires estavam satisfeitos só de deixar Loki preso por toda a eternidade, mas isso não era suficiente para mim. Eu queria que ele sentisse o gotejar do veneno na cara pelo resto da vida, assim como as palavras dele me fizeram sentir.
Eu decidi que não mancharia a honra de Skadi tão cedo.
— Bom, senhora… — Blitz puxou a túnica de lã. Ele era o único de nós que não parecia à vontade com a roupa nova, provavelmente porque o traje não permitia que ele usasse gravata. — Parece que deu ao vilão o que ele merecia. Você vai nos ajudar, então?
Skadi colocou o arco na mesa.
— Me ajudem a entender: você, Magnus Chase, planeja derrotar Loki, o mestre dos insultos, em um vitupério.
— Isso.
Ela parecia estar esperando que eu falasse poeticamente sobre minha perícia com verbos e adjetivos e tudo mais. Sinceramente, aquela resposta de uma palavra só foi a única coisa que consegui dizer.
— Muito bem, então — disse Skadi. — Que bom que vocês têm o hidromel de Kvásir.
Todos os meus amigos assentiram. Muito obrigado, queridos amigos.
— Você também foi sábio de ainda não ter bebido — continuou Skadi. —Não sobrou muito, e não dá
para saber quanto tempo o efeito vai durar. Você devia beber pela manhã, pouco antes de partir. Isso deve dar tempo de o hidromel surtir efeito antes de você enfrentar Loki.
— Então você sabe onde ele está? — perguntei. — Ele está perto assim?
Eu não sabia se ficava aliviado ou petrificado.
Skadi assentiu.
— Depois da minha fortaleza há uma baía congelada onde Naglfar está ancorado. Em termos gigantes, fica a poucos passos daqui.
— E o que isso quer dizer em termos humanos? — perguntou Mallory.
— Não importa — garantiu Skadi. — Vou dar esquis para acelerar sua jornada.
Hearth sinalizou: Esquis?
— Não sou muito bom com esquis — murmurou Blitz.
Skadi sorriu.
— Não tema, Blitzen, filho de Freya. Meus esquis vão ficar bons em você. Vocês têm que chegar ao navio antes do meio-dia de amanhã. Até lá, o gelo bloqueando a baía vai ter derretido o suficiente para Loki partir para mar aberto. Se isso acontecer, nada vai poder impedir o Ragnarök.
Troquei um olhar com Mallory acima do fogo da fogueira. A mãe dela, Frigga, estava certa. Quando botarmos os pés em Naglfar, se chegarmos lá, quarenta e oito horas terão se passado desde Fläm.
— Se vocês conseguirem subir a bordo do navio — disse Skadi — vão ter que abrir caminho por legiões de gigantes e de mortos-vivos. É claro que eles vão tentar matar vocês. Mas, se conseguirem ficar cara a cara com Loki e fazer seu desafio, ele vai ter que aceitar por uma questão de honra. A luta vai parar por tempo suficiente para o vitupério.
— Então vai ser moleza — disse Alex.
As trancinhas de Skadi deslizaram pelos ombros quando ela se virou para encarar Alex.
— Você tem uma definição interessante de moleza. Supondo que Magnus consiga derrotar Loki em um vitupério e o enfraqueça o bastante para capturar Loki… como vocês vão aprisioná-lo?
— Hum… — disse Mallory. — Nós temos uma noz.
Skadi assentiu.
— Isso é bom. A noz deve servir.
— Então, se eu derrotar Loki no vitupério — falei — e nós fizermos a coisa toda com a noz e tal…
vamos apertar as mãos da tripulação de Loki, todo mundo vai dizer “mandaram bem” e vão nos deixar ir embora, certo?
Skadi riu.
— Acho difícil. O cessar-fogo vai acabar assim que a competição terminar. E aí, de uma forma ou de outra, a tripulação vai matar vocês.
— Entendi — disse Mestiço. — Por que você não vem conosco, Skadi? Uma arqueira seria útil para o grupo.
Skadi gargalhou.
— Esse aí é muito engraçado.
— É, mas a graça passa rápido — murmurou Mallory.
A giganta se levantou.
— Esta noite, vocês são meus convidados, pequenos mortais. Podem dormir tranquilamente sabendo que não há nada a temer no Lar do Trovão. Mas, de manhã… — ela apontou para o abismo branco além das janelas — … vocês vão embora. A última coisa que quero é que Njord fique cheio de esperanças se eu mimar o neto dele.
Eu fico poético tipo, sei lá… um poeta
APESAR DA PROMESSA de Skadi, eu não dormi muito bem.
O frio do quarto e os trovões constantes não ajudaram. Nem mesmo saber que pela manhã Skadi nos daria esquis e nos jogaria pela janela.
Além disso, não parei de pensar em Alex Fierro. Sabe como é, só um pouco. Alex era uma força da natureza, como os trovões. Ela atacava quando sentia vontade, de acordo com variações de temperatura e padrões de neve que eu não tinha como prever. Ela abalava minhas estruturas de uma forma poderosa, mas ao mesmo tempo estranhamente suave e contida, escondida por uma nevasca. Eu não conseguia distinguir quais eram suas motivações. Alex fazia o que queria. Pelo menos, era o que parecia para mim.
Fiquei um bom tempo olhando para o teto. Quando finalmente saí da cama, usei a bacia para lavar o rosto e botei roupas novas de lã, brancas e cinzentas, as cores de neve e gelo. Meu pingente de runa pendia frio e pesado, como se Jacques estivesse dando uma cochilada. Peguei meus poucos pertences e fui para os corredores de Lar do Trovão, torcendo para não ser morto por um servo assustadiço ou por uma flecha perdida.
No salão, encontrei Sam fazendo sua oração. Jacques zumbiu no meu peito, me informando em tom sonolento e irritado que eram quatro da manhã no horário de Niflheim.
Sam tinha virado o tapete de oração para as enormes janelas abertas. Achei que a mancha branca lá fora era um belo quadro a admirar enquanto se meditava sobre Deus ou sabe-se lá o quê. Esperei que ela terminasse. A essa altura eu já reconhecia o padrão. Um instante de silêncio no final, uma espécie de momento de paz que nem um trovão seria capaz de incomodar, e ela se virou e sorriu.
— Bom dia.
— Oi. Você acordou cedo.
Percebi que era uma coisa idiota para se dizer para uma muçulmana. Nenhum praticante dormia tarde porque era preciso estar acordado para as orações aos primeiros sinais de luz. Por estar viajando com Sam, passei a prestar mais atenção ao horário do amanhecer e do entardecer, mesmo quando estávamos em outros mundos.
— Eu não dormi muito — disse ela. — Achei que podia fazer uma ou duas refeições caprichadas.
Ela deu tapinhas na barriga.
— Como você sabe os horários de oração em Jötunheim? — perguntei. — E também onde fica Meca?
— Ah. Eu faço uma aproximação. Isso é permitido, porque o que vale é a intenção.
Eu me perguntei se o mesmo seria verdade no meu desafio iminente. Talvez Loki dissesse: Bem, Magnus, você foi péssimo no vitupério, mas fez seu melhor e, como o que vale é a intenção, você venceu!
— Ei. — A voz de Sam me arrancou dos meus pensamentos. — Você vai se sair bem.
— Você está incrivelmente calma. Considerando… você sabe, que hoje é o dia.
Sam ajeitou o hijab, que ainda estava branco para combinar com a roupa.
— A noite de ontem foi a vigésima sétima do ramadã. Tradicionalmente, é a Noite do Poder.
Eu esperei.
— É quando você fica superenergizada?
Ela riu.
— Mais ou menos. Essa noite celebra o momento em que Maomé recebeu sua primeira revelação do anjo Gabriel. Ninguém sabe exatamente que noite é, mas é a mais sagrada do ano…
— Espera, é a noite mais sagrada da religião, mas vocês não sabem quando é?
Sam deu de ombros.
— A maioria das pessoas escolhe a vigésima sétima, mas, sim, é incerto. Sabemos que é uma das dez últimas noites do mês do ramadã. Não saber deixa todo mundo alerta. De qualquer modo, a noite de ontem me pareceu certa. Eu fiquei acordada orando e pensando e me senti… confirmada. Senti que há uma coisa maior do que isso tudo: Loki, o Ragnarök, o navio dos mortos. Meu pai pode ter poder sobre mim porque é meu pai. Mas não é o único poder. Allahu akbar.
Eu conhecia a expressão, mas nunca tinha ouvido Sam usá-la. Admito que instintivamente senti um nó no estômago. Os jornais adoravam falar que os terroristas diziam isso logo antes de fazerem uma coisa horrível e explodir gente.
Eu não ia comentar isso com Sam. Imaginei que estivesse bem ciente disso. Era comum que, andando de hijab pelas ruas de Boston, alguém gritasse para ela voltar para seu país, ao que (se estivesse de mau humor) Sam respondia: “Eu sou de Dorchester!”
— É — falei. — Isso quer dizer deus é grande, não é?
Sam balançou a cabeça.
— É uma tradução um tanto imprecisa. Quer dizer Deus é maior.
— Maior do que o quê?
— Do que tudo. O motivo de dizer isso é para lembrar a si mesmo que Deus é maior do que tudo que você está enfrentando: seus medos, seus problemas, sua sede, sua fome, sua raiva. Até seus problemas com um pai como Loki. — Ela balançou a cabeça. — Desculpa, isso deve ter soado meio sentimentaloide para um ateu.
Dei de ombros, me sentindo constrangido. Queria ter a fé de Sam. Eu não tinha, mas isso funcionava para ela, e eu precisava que ela tivesse confiança, principalmente hoje.
— Bom, você parece superenergizada. É isso que importa. Pronta para arrebentar uns mortos-vivos?
— Estou. — Ela deu um sorrisinho. — E você? Está pronto para enfrentar Alex?
Eu me perguntei se Deus era maior do que o soco na barriga que Sam tinha acabado de acertar em mim.
— Hã, como assim?
— Ah, Magnus. Você é tão emocionalmente cego que é quase fofo.
Antes que eu pudesse pensar em um jeito inteligente de responder a isso, talvez gritando Nossa, o que é aquilo! e saindo correndo, a voz de Skadi explodiu no salão.
— Aí estão meus madrugadores!
A giganta usava peles brancas suficientes para vestir uma família de ursos-polares. Atrás dela, uma fila de servos se aproximava, carregando uma variedade de esquis de madeira.
— Vamos despertar seus amigos e botar vocês na estrada!
• • •
Nossos amigos não ficaram animados de acordar.Eu tive que jogar água gelada na cabeça de Mestiço Gunderson duas vezes. Blitz resmungou alguma
coisa sobre patos e me mandou ir embora. Quando tentei despertar Hearth, ele esticou uma das mãos para fora da coberta e sinalizou: Eu não estou aqui. T.J. pulou da cama gritando “ATACAR!” Felizmente, não estava armado, senão a essa altura haveria um furo no meu corpo.
Por fim, todos se reuniram no salão principal, onde os servos de Skadi tinham servido nossa última refeição, desculpem, nosso café da manhã, composto de pão, queijo e sidra.
— Essa sidra foi feita com as maçãs da imortalidade — disse Skadi. — Séculos atrás, quando meu pai sequestrou a deusa Idun, fermentamos algumas das maçãs dela para fazer a sidra. Já está bem diluída.
Não vai tornar vocês imortais, mas vai melhorar a resistência, pelo menos o suficiente para que atravessem os ventos de Niflheim.
Bebi tudo. A sidra não me deixou particularmente energizado, mas senti, sim, um formigamento. E
sossegou as reviravoltas no meu estômago.
Depois de comer, experimentamos nossos esquis com graus variados de sucesso. Hearthstone se balançou graciosamente nos dele (quem sabia que ele era capaz de se balançar graciosamente?) enquanto Blitz tentava, em vão, encontrar um par que combinasse com seus sapatos.
— Tem alguma coisa menor? — perguntou ele. — E talvez marrom-escuro? Tipo de mogno?
Skadi deu um tapinha na cabeça dele, gesto que os anões não apreciavam.
Mallory e Mestiço se moviam com facilidade, mas os dois tiveram que ajudar T.J. a ficar de pé.
— Jefferson, eu achei que você tivesse crescido na Nova Inglaterra — disse Mestiço. — Você nunca andou de esqui?
— Eu morava na cidade — resmungou T.J. — Além disso, sou negro. Não havia muitos negros esquiando em Boston, em 1861.
Sam parecia meio desajeitada com os esquis, mas como ela sabia voar, não me preocupei muito.
Alex, por sua vez, estava sentada junto a uma janela calçando um par de botas de esquiar cor-de-rosa.
Tinha trazido isso com ela? Oferecido uma gorjeta de algumas coroas para um gigante arrumar um par assim no armário de Skadi? Eu não fazia ideia, mas ela não ia esquiar para a morte usando roupas brancas e cinza sem graça. Ela estava usando uma capa de pelo verde (Skadi devia ter esfolado alguns Grinches para fazê-la) por cima da calça jeans malva e de um colete verde e cor-de-rosa. Para completar o visual, um chapéu de aviador no estilo Amelia Earhart e óculos também cor-de-rosa. Quando eu achava já ter visto todo tipo de roupa que só Alex conseguiria usar, ela aparecia com algo diferente.
Manteve-se alheia a todo o grupo enquanto ajustava os esquis. (Quando digo todo o grupo, estou falando de mim.) Parecia perdida em pensamentos, talvez considerando o que diria para a mãe, Loki, antes de tentar decapitar o deus com o garrote.
Em pouco tempo estávamos todos vestidos, de pé e em pares junto às janelas abertas, parecendo um grupo de saltadores das olimpíadas de inverno.
— Bem, Magnus Chase — disse Skadi —, a única coisa que falta é beber o hidromel.
Sam, de pé à minha esquerda, me ofereceu o cantil.
— Ah. — Eu me perguntei se era seguro beber hidromel antes de andar de esqui. Talvez as leis fossem menos severas em Jötunheim. — Você quer dizer agora?
— É — disse Skadi. — Agora.
Abri o cantil. Era o momento da verdade. Tínhamos nos aventurado pelos mundos e quase morrido várias vezes. Jantamos com Aegir, colocamos guerreiros de cerâmica para batalhar, matamos um dragão e pegamos hidromel usando uma mangueira de borracha velha só para que eu pudesse tomar a tal bebida feita de sangue e mel, que com sorte me deixaria poético o suficiente para humilhar Loki.
Não vi sentido em apreciar o sabor. Virei todo o hidromel em três goles grandes. Eu estava esperando sentir gosto de sangue, mas o hidromel de Kvásir tinha gosto de… bem, hidromel. Não queimava como o
sangue de dragão e nem formigava como a sidra de quase imortalidade de Skadi.
— Como você está se sentindo? — perguntou Blitz, esperançoso. — Poético?
Eu arrotei.
— Estou me sentindo bem.
— Só isso? — perguntou Alex. — Diga alguma coisa impressionante. Descreva a tempestade.
Eu olhei para a nevasca pela janela.
— A tempestade parece… branca. E fria.
Mestiço suspirou.
— Vamos todos morrer.
— Boa sorte, heróis! — gritou Skadi.
E os servos dela nos empurraram pela janela em direção ao abismo.
Recebo uma ligação a cobrar de Hel
DISPARAMOS PELO CÉU como coisas que disparam pelo céu.
O vento açoitou meu rosto. A neve me cegou. O frio era tão intenso que achei que fosse congelar.
Pois é, o hidromel da poesia não estava funcionando mesmo.
De repente, a gravidade agiu. Eu odeio a gravidade.
Meus esquis rasparam e chiaram na neve compactada. Eu não esquiava havia muito tempo. Também nunca tinha feito isso despencando em uma ladeira de quarenta e cinco graus de inclinação em temperaturas abaixo de zero e no meio de uma nevasca.
Meus olhos congelaram. O frio queimou minhas bochechas. De alguma forma, consegui não sair rolando. Toda vez que me desequilibrava um pouco, meus esquis se corrigiam sozinhos e eu me mantinha de pé.
De relance, vi Sam voando à minha direita, seus esquis quase dois metros acima do chão. Trapaceira.
Hearthstone passou disparado à minha esquerda, sinalizando Seguindo pela esquerda, o que não ajudou muito.
Na minha frente, Blitzen caiu do céu, gritando a plenos pulmões. Ele bateu na neve e imediatamente executou uma série impressionante de slaloms, movimentos em oito e saltos triplos. Ou ele esquiava bem melhor do que dissera ou seus esquis mágicos tinham um senso de humor cruel.
Meus joelhos e tornozelos ardiam pelo esforço. O vento penetrava nas minhas roupas superpesadas feitas por gigantes. Na minha cabeça, a qualquer minuto eu tropeçaria de uma forma que minhas habilidades mágicas não conseguiriam compensar. Eu bateria numa pedra, quebraria o pescoço e acabaria esparramado na neve como um… Deixem pra lá. Não vou nem tentar terminar essa.
De repente, a ladeira ficou plana. A nevasca passou. Nossa velocidade diminuiu e nós oito paramos suavemente, como se tivéssemos acabado de percorrer um circuito para crianças em um parque de diversões.
(Opa, fiz uma analogia! Talvez fosse minha habilidade mediana com descrições voltando!) Os esquis saíram dos nossos pés por vontade própria. Alex foi a primeira a se mover. Ela correu e se escondeu atrás de uma formação rochosa baixa no meio da neve. Achei que fazia sentido, já que ela era o alvo mais colorido em dez quilômetros quadrados. O restante de nós se juntou a ela. Nossos esquis sem esquiadores deram meia-volta e dispararam montanha acima.
— Nossa rota de fuga já era. — Alex olhou para mim pela primeira vez desde a noite anterior. — É
melhor você começar a se sentir poético logo, Chase. Porque seu tempo está se esgotando.
Espiei por cima das pedras e entendi o que ela queria dizer. A algumas centenas de metros, por um véu fino de neve, a água em tom cinza-alumínio se estendia até o horizonte. Na margem próxima, erguendo-se da baía gelada, via-se a forma escura de Naglfar, o navio dos mortos. Era tão grande que, se eu não soubesse que era uma embarcação, talvez tivesse pensado se tratar de outra montanha, como a fortaleza de Skadi. A vela principal levaria vários dias para ser escalada. O casco enorme devia ter deslocado água suficiente para encher o Grand Canyon. O convés e as pranchas estavam infestados do que pareciam ser formigas furiosas, mas eu tinha a sensação de que, chegando mais perto, as formas revelariam ser
gigantes e zumbis, milhares e milhares deles.
Antes, eu só tinha visto o navio em sonhos. Agora, percebia como nossa situação era desesperadora: oito pessoas enfrentando um exército criado para destruir mundos inteiros, e nossa única esperança repousava em eu encontrar Loki e começar a xingá-lo pra valer.
O absurdo da situação poderia ter me deixado sem esperança. Mas só me deixou com raiva.
Eu não me sentia exatamente poético, mas sentia uma ardência na garganta, o desejo de dizer a Loki exatamente o que eu pensava dele. Algumas metáforas criativas surgiram na minha mente.
— Estou pronto — respondi, torcendo para estar certo. — Como vamos encontrar Loki sem morrer?
— Ataque direto? — sugeriu T.J.
— Hã…
— Estou brincando — disse T.J. — Obviamente, uma situação dessas pede uma distração. A maior parte do grupo devia encontrar um jeito de chegar à proa e atacar. Provocamos uma confusão, atraímos o máximo de malvados que pudermos para longe das pranchas, damos uma chance de Magnus subir a bordo e desafiar Loki.
— Espere um segundo…
— Concordo com o garoto da União — disse Mallory.
— Isso mesmo. — Mestiço brandiu seu machado. — Machado está com sede de sangue jötunn!
— Esperem! Isso é suicídio.
— Que nada — retrucou Blitz. — Garoto, nós já conversamos sobre isso e temos um plano. Eu trouxe algumas cordas de anão. Mallory tem ganchos. Hearth tem as runas. Com sorte, vamos conseguir escalar a proa daquele navio e começar o caos.
Ele deu um tapinha em uma das bolsas de suprimentos que tinha trazido do Bananão.
— Não se preocupe, tenho algumas surpresas guardadas para os guerreiros mortos-vivos. Você sobe pela prancha traseira, encontra Loki e exige um duelo. Nessa hora, a luta deve parar. Nós vamos ficar bem.
— É — disse Mestiço. — Aí vamos lá olhar você vencer aquele meinfretr nos insultos.
— E eu vou jogar uma noz nele — concluiu Mallory. — Nos dê uns trinta minutos para nos prepararmos. Sam, Alex… cuidem bem do nosso garoto.
— Cuidaremos — disse Sam.
Nem Alex reclamou. Percebi que não conseguiria convencer meus amigos a desistir daquele plano.
Eles se uniram para maximizar minhas chances, independentemente de quão perigoso a situação pudesse se mostrar para eles.
— Pessoal…
Hearth sinalizou: O tempo está se esgotando. Aqui. Para você.
Da bolsinha, ele tirou a runa othala, a mesma pedra que removeremos do monte de pedras do poço de Andiron. Quando colocada na palma da minha mão, trouxe de volta o cheiro de carne podre de réptil e de brownies queimados.
— Obrigado — falei —, mas… por que essa runa em particular?
Não quer dizer só herança, sinalizou Hearth. Othala simboliza ajuda em uma jornada. Use quando estivermos longe. Deve proteger você.
— Como?
Ele deu de ombros. Não me pergunte. Sou apenas o mago.
— Muito bem, então — disse T.J. — Alex, Sam, Magnus… vemos vocês no navio.
Antes que eu pudesse protestar ou mesmo agradecer, o restante do grupo se afastou pela neve.
Desapareceram rapidamente na paisagem com suas vestes brancas de jötunn.
— Há quanto tempo vocês estavam planejando isso?
Apesar dos lábios rachados e sangrando, Alex sorriu.
— Pelo mesmo tempo que você não tinha a menor noção. Portanto, tem um tempo.
— É melhor a gente ir — disse Sam. — Vamos experimentar sua runa?
Olhei para othala. Conjecturei se havia ligação entre herança e ajuda em uma jornada. Não consegui pensar em nenhuma. Eu não gostava de onde aquela runa tinha vindo e nem o que representava, mas achava que fazia sentido eu ter que usá-la. Nós a conquistamos com muita dor e sofrimento, da mesma forma que conquistamos o hidromel.
— É só jogar para o alto? — perguntei.
— Imagino que Hearth diria… — Alex continuou em linguagem de sinais: É, seu idiota.
Eu tinha quase certeza de que não era isso que Hearth diria.
Joguei a runa. Othala se dissolveu em um sopro de neve. Torci para que reaparecesse no saco de runas de Hearth em um ou dois dias, como acontecia depois que ele usava uma. Eu realmente não queria ter que comprar uma peça de reposição para ele.
— Não aconteceu nada — comentei. Em seguida, olhei para os lados. Alex e Sam tinham desaparecido. — Ah, deuses, eu vaporizei vocês!
Tentei me levantar de detrás das pedras, mas mãos invisíveis me seguraram dos dois lados e me puxaram para baixo.
— Eu estou bem aqui — disse Alex. — Sam?
— Aqui — confirmou Sam. — Parece que a runa nos deixou invisíveis. Consigo me ver, mas não vejo vocês.
Olhei para baixo. Sam estava certa. Eu conseguia enxergar a mim mesmo direitinho, mas o único sinal das minhas duas amigas eram as marcas dos pés na neve.
Fiquei pensando o motivo pelo qual othala tinha escolhido a invisibilidade. Estaria usando minha experiência pessoal, já que invisível era como eu me sentia quando era sem-teto? Ou talvez a magia fosse definida pela experiência familiar de Hearthstone. Imaginei que ele devia ter desejado ser invisível para o pai durante boa parte da infância. Fosse qual fosse o caso, eu não pretendia desperdiçar a oportunidade.
— Vamos logo.
— Deem as mãos — ordenou Alex.
Ela segurou minha mão esquerda sem nenhuma afeição em particular, como se eu fosse um cajado.
Sam não segurou minha outra mão, mas desconfiei de que não tivesse nada a ver com motivos religiosos.
Ela simplesmente gostava da ideia de Alex e eu estarmos de mãos dadas. Eu quase conseguia ouvir Sam sorrindo.
— Tudo bem — disse ela. — Vamos.
Nós seguimos pela formação rochosa, na direção da margem. Fiquei preocupado em deixar pegadas, mas a neve e o vento logo apagaram os rastros da nossa passagem.
A temperatura e o vento estavam tão cortantes quanto no dia anterior, mas a sidra de Skadi devia estar funcionando. Respirar não dava a sensação de estar inalando vidro, e não precisei ficar checando o rosto a todo segundo para ter certeza de que meu nariz não tinha caído.
Em meio ao uivo do vento e ao estrondo das geleiras despencando na baía, outros sons chegaram a nós vindos do convés de Naglfar: correntes retinindo, vigas estalando, gigantes berrando ordens e as botas dos atrasados batendo apressadas no convés feito de unhas. O navio devia estar bem próximo de zarpar.
Estávamos a uns cem metros do porto quando Alex puxou minha mão.
Eu me abaixei, apesar de não entender como poderíamos nos esconder mais do que estando invisíveis.
Saindo do vento e da neve, passando a três metros de nós, uma tropa de soldados zumbis marchava na direção de Naglfar. Eu não os vi chegando, e Alex estava certa: era melhor não confiar na invisibilidade se a ideia era se manter escondido daqueles caras.
Suas armaduras de couro esfarrapado estavam cobertas de gelo. Os corpos não passavam de pedaços de carne agarrados aos ossos. Uma luz azul espectral tremeluzia dentro das caixas torácicas e dos crânios, me fazendo pensar em velas de aniversário em cima do pior bolo do mundo.
Quando os mortos-vivos passaram, reparei que as solas das botas tinham pregos cravados, como travas de chuteira. Lembrei-me de uma coisa que Mestiço Gunderson tinha me dito uma vez: como o trajeto até Helheim era feito de gelo, os mortos desonrados eram enterrados com pregos nos sapatos para que não escorregassem ao longo do caminho. Agora, aquelas botas estavam levando seus donos de volta ao mundo dos vivos.
A mão de Alex tremeu na minha. Ou talvez quem estivesse tremendo fosse eu. Finalmente o grupo de soldados passou por nós, indo na direção do porto e do navio dos mortos.
Eu me levantei com inquietação.
— Que Alá nos defenda — murmurou Sam.
Torci desesperadamente para que, se o Todo-Poderoso existisse, Sam tivesse alguma influência sobre ele. Precisaríamos mesmo de alguém que nos defendesse.
— Nossos amigos vão enfrentar isso — disse Alex. — Temos que ir logo.
Ela estava certa de novo. A única coisa que me faria querer voltar a bordo de um navio com milhares de zumbis era saber que, se eu não fizesse isso, nossos amigos lutariam com eles sozinhos. E isso não ia rolar.
Pisei nos rastros deixados pelo exército morto e vozes sussurrantes imediatamente ecoaram na minha cabeça: Magnus. Magnus.
Uma dor perfurou meus olhos. Meus joelhos falharam. Eu conhecia aquelas vozes. Algumas eram duras e furiosas, outras gentis e delicadas. Todas ecoavam na minha mente, exigindo atenção. Uma delas era… uma delas era da minha mãe.
Eu tropecei.
— Ei — sussurrou Alex. — O que você…? Espera aí, o que é isso?
Ela também estava ouvindo as vozes? Eu me virei, tentando identificar de onde vinham. Não tinha visto antes, mas a uns quinze metros na direção da qual os zumbis tinham vindo, um buraco escuro e quadrado aparecera na neve: uma rampa que descia em direção ao nada.
Magnus, sussurrou a voz do tio Randolph. Sinto tanto, meu garoto. Você pode me perdoar? Venha.
Quero ver você uma última vez.
Magnus, chamou uma voz que eu só tinha ouvido em sonhos: Caroline, esposa de Randolph. Por favor, perdoe seu tio. As intenções dele eram as melhores. Venha, querido. Quero conhecer você.
Você é nosso primo? , disse a voz de uma garotinha; Emma, a filha mais velha do tio Randolph. Meu pai também me deu uma runa othala . Quer ver?
O mais doloroso foi quando minha mãe disse Venha, Magnus! com o tom alegre que usava quando estava me encorajando a percorrer mais rápido a trilha para que compartilhássemos uma vista incrível.
Só que agora havia uma frieza na voz dela, como se os pulmões estivessem cheios de fréon. Depressa!
As vozes me dilaceraram, arrancaram pedacinhos da minha mente. Eu tinha dezesseis anos? Tinha doze ou dez? Estava em Niflheim ou em Blue Hills ou no barco do tio Randolph?
Alex soltou minha mão. Mal notei.
Eu segui na direção da caverna.
De algum lugar atrás de mim, Sam disse:
— Pessoal?
Ela parecia preocupada, à beira do pânico, mas a voz não soou mais real para mim do que os espíritos sussurrantes. Sam não podia me impedir. Não conseguia ver minhas pegadas no caminho pisoteado pelos soldados zumbis. Se eu corresse, poderia percorrer a trilha gelada e mergulhar em Helheim antes que meus amigos soubessem o que tinha acontecido. O pensamento me encheu de empolgação.
Minha família estava lá embaixo. Hel, a deusa dos mortos desonrados, me disse isso quando a encontrei em Bunker Hill. Ela prometeu que eu podia me juntar a eles. Talvez precisassem da minha ajuda.
Jacques pulsou e emitiu calor em meu pescoço. Por que ele estava fazendo isso?
À minha esquerda, Alex murmurou:
— Não. Não, eu não vou ouvir.
— Alex! — exclamou Sam. — Graças a Deus. Cadê o Magnus?
Por que Sam parecia tão preocupada? Eu tinha uma vaga lembrança de que estávamos em Niflheim por um motivo. Eu… eu não devia estar indo para Helheim agora. Isso provavelmente me mataria.
As vozes sussurrantes foram ficando mais altas, mais insistentes.
Minha consciência lutou contra elas. Resisti à vontade de correr na direção da rampa escura.
Eu estava invisível por causa de othala, a runa da herança. Mas e se esse fosse o lado ruim da magia dela? Othala me permitia ouvir as vozes dos meus entes queridos mortos, me puxando para os seus domínios.
Alex encontrou minha mão de novo.
— Achei ele.
Lutei contra uma onda de irritação.
— Por quê?
— Eu sei — disse Alex num tom de voz surpreendentemente gentil. — Eu também estou ouvindo, mas você não pode segui-los.
Lentamente, a rampa escura se fechou e as vozes se silenciaram. O vento e a neve começaram a apagar os rastros dos zumbis.
— Vocês estão bem? — perguntou Sam, a voz um oitavo mais aguda do que o normal.
— Estou — respondi, me sentindo meio mal. — Sinto muito por isso.
— Não precisa pedir desculpa. — Alex apertou meus dedos. — Eu ouvi meu avô. Quase tinha esquecido como era a voz dele. E outras vozes. Adrian…
Ela engasgou com o nome.
Quase não ousei perguntar.
— Quem?
— Um amigo — disse ela, a palavra carregada com todos os tipos de significados possíveis. — Ele cometeu suicídio.
A mão dela ficou frouxa na minha, mas eu não a soltei. Fiquei tentado a projetar meu poder, a tentar curá-la, a compartilhar a onda de dor e lembranças que encheria minha cabeça com o passado de Alex.
Mas não fiz isso. Não tinha sido convidado a entrar em sua mente.
Sam ficou silenciosa por uns dez segundos.
— Alex, sinto muito. Eu… eu não ouvi nada.
— Agradeça por isso — falei.
— É — concordou Alex.
Parte de mim ainda resistia à vontade de correr pela neve, me jogar e cravar as unhas no chão até que a rampa reabrisse. Eu tinha ouvido minha mãe. Mesmo que tivesse sido apenas um eco frio. Ou um truque. Uma piada cruel de Hel.
Eu me virei para o mar. De repente, senti mais medo de ficar em terra firme do que de subir a bordo do navio dos mortos.
— Vamos. Nossos amigos estão contando com a gente.
Eu peço um tempo
A PRANCHA ERA feita de unhas do pé.
Se isso não for suficiente para deixar vocês com nojo, nenhuma quantidade de hidromel de Kvásir vai me ajudar a fornecer uma descrição suficientemente nojenta. Apesar de a rampa ter quinze metros de largura, a quantidade de indivíduos andando nela era tanta que tivemos dificuldade de achar uma brecha.
Calculamos nossa subida atrás de uma tropa de zumbis, mas quase fui pisoteado por um gigante carregando um feixe de lanças.
Uma vez alcançado o topo, desviamos para o lado, seguindo rente à amurada.
Ao vivo, o navio era ainda mais horrível do que nos meus sonhos. O convés parecia se estender ao infinito, uma colcha de retalhos cintilante de placas de unhas amarelas, pretas e cinzentas, como a carapaça de alguma criatura pré-histórica. Centenas de gigantes iam de um lado para outro, parecendo quase de tamanho humano se comparados à embarcação: gigantes da pedra, gigantes das montanhas, gigantes do gelo, gigantes das colinas e alguns sujeitos vestidos com tanto bom gosto que só podiam ser gigantes das metrópoles, todos enrolando cordas, empilhando armas e gritando uns com os outros em uma variedade de dialetos jötunn.
Os mortos-vivos não eram tão diligentes. Ocupando boa parte do amplo convés, estavam em posição de sentido em fileiras brancas e azuis, dezenas de milhares deles, como se à espera de uma inspeção.
Alguns estavam montados em cavalos zumbis. Outros tinham cachorros ou lobos zumbis. Alguns até tinham aves de rapina zumbis empoleiradas nos braços de esqueleto. Todos pareciam perfeitamente satisfeitos de permanecer em silêncio até receberem ordens. Muitos esperaram séculos pela batalha final.
Eu achava que, na opinião deles, aguardar um pouco mais não faria mal.
Os gigantes se esforçavam para evitar contato com os mortos-vivos. Contornavam as legiões com cuidado, xingando-os por estarem no caminho, mas sem tocar neles e nem os ameaçar diretamente.
Imaginei que me sentiria da mesma forma se estivesse dividindo um navio com uma horda de roedores estranhamente bem-comportados e carregando armamento pesado.
Procurei Loki no convés. Não vi ninguém com uniforme branco de almirante, mas isso não queria dizer nada. No meio de tanta gente, ele podia estar em qualquer lugar, disfarçado de qualquer um. Ou no convés inferior, se refastelando com um tranquilo café da manhã pré-Ragnarök. Meu plano de andar diretamente até ele sem obstáculos e dizer Oi, cabeça de mamão. Eu te desafio a um duelo de xingamentos estava indo por água abaixo.
Na coberta de proa, a uns oitocentos metros, talvez, um gigante andava de um lado para outro, balançando um machado e gritando ordens. Ele estava muito longe para eu conseguir entender as palavras, mas reconheci do meu sonho a forma corcunda e magra e o elaborado escudo de ossos de costela. Era Hrym, o capitão do navio. A voz dele se espalhava pela agitação de ondas se quebrando e gigantes resmungando.
— PREPAREM TUDO, SEUS COVARDES MOLENGAS! A PASSAGEM ESTÁ ABERTA! SE NÃO
ANDAREM MAIS RÁPIDO, VOU DAR VOCÊS PARA GARM COMER!
Então, em algum lugar atrás do capitão, perto da proa, uma explosão sacudiu o navio. Gritando,
gigantes soltando fumaça voaram pelo ar como acrobatas disparados por canhões.
— ESTAMOS SENDO ATACADOS! — gritou alguém. — PEGUEM ELES!
Nossos amigos tinham chegado.
Eu não conseguia vê-los, mas, no meio da confusão, ouvi os sons metálicos de uma corneta. Só pude concluir que T.J. tinha encontrado o instrumento embaixo da munição, dos óculos de atirador de elite e dos biscoitos duros.
Acima do capitão Hrym, uma runa dourada ardia no céu:
Thurisaz, sinal da destruição, mas também símbolo do deus Thor. Hearthstone não podia ter escolhido uma runa melhor para disseminar medo e confusão em um bando de gigantes. Raios explodiram da runa em todas as direções, fritando gigantes e mortos-vivos.
Mais gigantes ocuparam o convés superior. Não que eles tivessem muita escolha. O navio estava tão lotado de tropas que as multidões forçaram as linhas para a frente, quisessem eles avançar ou não. Uma avalanche de corpos bloqueou rampas e escadas. Um grupo empurrou o capitão Hrym e o carregou enquanto ele balançava o machado acima da cabeça e gritava, em vão.
A maior parte da legião de mortos-vivos permaneceu em posição, mas até eles viraram a cabeça na direção do caos, como se ligeiramente curiosos.
Ao meu lado, Sam murmurou:
— É agora ou nunca.
Alex soltou minha mão. Ouvi o som do garrote dela sendo puxado pelos passadores da calça jeans.
Nós seguimos em frente, tocando ocasionalmente nos ombros uns dos outros para nos orientar. Eu me abaixei quando um gigante passou voando por cima de mim. Seguimos no meio de uma legião de cavalaria zumbi, as lanças brilhando com luz gelada, os olhos brancos e mortos dos cavalos encarando o nada.
Ouvi um grito de guerra que parecia ter vindo de Mestiço Gunderson. Eu esperava que ele não tivesse tirado a camisa, como costumava fazer em combate. Senão ele podia pegar uma gripe enquanto lutávamos até a morte.
Outra runa explodiu sobre a proa:
Isa, gelo, que devia ter sido fácil de usar em Niflheim. Uma onda de gelo bateu no lado esquerdo de Naglfar, transformando um monte de gigantes em esculturas congeladas.
Na luz cinzenta da manhã, percebi o brilho de um pequeno objeto de bronze voando na direção do capitão Hrym e achei que um dos meus amigos tinha jogado uma granada nele. Mas, em vez de explodir, a
“granada” foi aumentando à medida que caía, se expandindo a um tamanho impossivelmente grande, até que o capitão e mais de dez amigos gigantes próximos desapareceram debaixo de um pato do tamanho de
Perto da amurada a estibordo, outro pato de bronze cresceu no ar, empurrando um batalhão de zumbis em direção ao mar. Gigantes gritaram e deram início ao caos, como acontecia quando gigantescos patos metálicos choviam do céu.
— Expande-Patos — comentei. — Blitz se superou.
— Continue — disse Alex. — Estamos perto agora.
Talvez não devêssemos ter falado. Na fila mais próxima de guerreiros zumbis, um lorde com braçadeiras douradas virou o elmo de lobo na nossa direção. Um rosnado percorreu sua caixa torácica.
Ele disse alguma coisa em uma língua que eu não conhecia, sua voz úmida e oca como água pingando em um caixão. Seus homens puxaram espadas enferrujadas das bainhas mofadas e se viraram para nós.
Lancei um olhar para Sam e Alex. As duas estavam visíveis, então concluí que eu também devia estar.
Como uma piada de mau gosto — o tipo de proteção mágica que se esperaria do sr. Alderman —, nosso disfarce othala acabou no centro do convés principal do navio, na frente de uma legião de mortos-vivos.
Fomos cercados por zumbis. A maioria dos gigantes ainda corria para lidar com nossos amigos, mas alguns repararam em nós e, gritando de fúria, juntaram-se ao exército assassino.
— Bom, Sam — disse Alex. — Foi bom conhecer você.
— E eu? — perguntei.
— O júri ainda está deliberando.
Ela virou uma onça-parda e pulou no lorde draugr, arrancando a cabeça dele. Então foi se deslocando entre os soldados, mudando de forma sem esforço, passando de lobo para humana para águia, cada forma mais mortal do que a anterior.
Sam empunhou sua lança de valquíria. Emitindo uma luz ardente, ela explodiu os mortos-vivos, queimando dezenas de uma vez só. Porém, centenas de outros se aproximaram, espadas e lanças em riste.
Eu puxei Jacques e gritei:
— Lute!
— TÁ BOM! — gritou ele em resposta, parecendo tão assustado quanto eu.
Jacques passou ao meu redor, fazendo o melhor possível para me proteger, mas me vi com o problema recorrente de todos os filhos de Frey.
Os einherjar têm um lema: Matem o curandeiro primeiro.
Essa filosofia militar foi aperfeiçoada por guerreiros vikings experientes que, quando em Valhala, aprenderam a jogar videogames. A ideia era simples: mirava-se em qualquer cara nas linhas inimigas que pudesse curar os ferimentos dos seus oponentes e fazer com que voltassem ao combate. Se matasse o curandeiro, o resto morria mais rápido. Além do mais, o curandeiro devia ser frágil e medroso e fácil de eliminar.
Evidentemente, gigantes e zumbis também conheciam essa dica de expert. Talvez jogassem os mesmos videogames que os einherjar enquanto esperavam o Juízo Final. Sabe-se lá como, fui identificado como curandeiro; portanto, eles ignoraram Alex e Sam e vieram na minha direção. Flechas passaram voando pelos meus ouvidos. Lanças cutucaram minha barriga. Machados foram arremessados entre as minhas pernas. O espaço era pequeno demais para tantos combatentes. A maioria das armas dos draugrs encontravam alvos draugrs, mas eu achava que aquele pessoal não estava muito preocupado com o alvo naquele fogo cruzado.
Fiz o que pude para parecer destemido. Com minha força einherji, dei um soco na cavidade peitoral do zumbi mais próximo, o que foi como dar um soco através de uma bacia de gelo-seco. Quando ele caiu, peguei a espada que ele empunhava e empalei o colega zumbi mais próximo.
— Quem precisa de curandeiro agora? — gritei.
Por uns dez segundos, pareceu que estávamos nos saindo bem. Outra runa explodiu. Outro Expande-Pato deflagrou a destruição nas linhas inimigas. Da proa veio o ruído alto da Springfield 1861 de T.J.
Ouvi Mallory xingando em gaélico.
Mestiço Gunderson gritou:
— SOU MESTIÇO, DE FLÄM!
A que um gigante meio burro respondeu:
— Fläm? Aquele lugar é um buraco!
— ARRRRGGGHH! — O uivo de fúria de Mestiço sacudiu o barco, seguido do som do machado dele cortando fileiras de corpos.
Alex e Sam lutaram como demônios gêmeos; a lança ardente de Sam e o garrote afiado de Alex cortavam os mortos-vivos com a mesma velocidade.
Mas com tantos inimigos nos cercando, era só questão de tempo até que um golpe nos acertasse. O
cabo de uma lança atingiu a lateral da minha cabeça e eu caí de joelhos.
— Magnus! — gritou Jacques.
Vi o machado de um zumbi se aproximar do meu rosto e vi que Jacques não teria tempo para impedir.
Com toda a destreza poética de um bebedor de hidromel de Kvásir, eu pensei: Mas que droga.
Só que uma coisa aconteceu e essa coisa não foi a minha morte.
Uma pressão furiosa cresceu dentro do meu estômago, uma certeza de que toda aquela luta deveria parar, de que precisava parar, se pretendíamos completar nossa missão. Rugi ainda mais alto do que Mestiço Gunderson.
Uma luz dourada explodiu de dentro para fora em todas as direções, se espalhando pelo convés do navio, arrancando espadas das mãos de seus donos, mudando a direção de projéteis em rota e os enviando para o mar, arrancando as lanças e os escudos e machados de batalhões inteiros.
Eu cambaleei.
A luta tinha parado. Todas as armas ao alcance da minha voz tinham sido arrancadas violentamente de deus donos. Até Jacques havia voado para algum lugar a estibordo, e achei que ouviria bastante a respeito disso, caso eu sobrevivesse. Todo mundo no navio, fosse amigo ou inimigo, tinha sido desarmado pela Paz de Frey, um poder que eu só conseguira invocar uma vez.
Gigantes desconfiados e zumbis confusos se afastaram de mim. Alex e Sam vieram correndo na minha direção.
Minha cabeça latejava. Minha visão oscilava. Eu tinha perdido um dos molares e minha boca estava cheia de sangue.
A Paz de Frey era um truque bem legal. Chamava mesmo a atenção da galera. Mas não era uma solução permanente. Nada impediria nossos inimigos de simplesmente recuperaram suas armas e voltarem ao projeto de matança do curandeiro.
Mas antes do momento de surpresa pelas mãos vazias passar, uma voz familiar falou em algum lugar à minha esquerda.
— Ora, ora, Magnus. Isso foi bem dramático!
Os draugrs se afastaram e revelaram Loki, em seu impecável uniforme branco de almirante, o cabelo da cor das folhas de outono, os lábios cheios de cicatrizes retorcidos em um sorriso, os olhos brilhando com humor malicioso.
Atrás dele estava Sigyn, sua fiel esposa sofredora, que passara séculos recolhendo veneno de serpente em uma tigela para impedir que ele pingasse no rosto de Loki, um dever que não era assegurado pelos tradicionais votos de casamento. A expressão em seu rosto pálido e magro era impossível de interpretar, embora lágrimas vermelho-sangue ainda escorressem de seus olhos. Pensei ter notado uma leve tensão
nos lábios, como se Sigyn estivesse decepcionada por me ver outra vez.
— Loki… — Eu cuspi sangue. Mal conseguia fazer minha boca trabalhar. — Eu te desafio a um vitupério.
Ele ficou me encarando como se estivesse esperando que eu completasse a frase. Talvez que eu acrescentasse: Um vitupério… com outro cara que é bom de insultos e bem mais intimidador do que eu.
Ao nosso redor, as fileiras infinitas de guerreiros pareciam prender a respiração, apesar de zumbis não respirarem.
Njord, Frigga, Skadi… todos me garantiram que Loki teria que aceitar meu desafio. Era a tradição. A honra exigia isso. Eu podia ter machucado a boca, estar com a cabeça zumbindo e não ter garantia nenhuma de que o hidromel de Kvásir elaboraria poesia com minhas cordas vocais, mas agora eu ao menos teria minha chance de derrotar o trapaceiro em uma batalha de palavras.
Loki ergueu o rosto para o céu frio e cinzento e riu.
— Agradeço o convite, Magnus Chase — disse ele. — Mas acho que vou só matar você mesmo.
Eu começo por baixo
SAM ATACOU. ACHO que foi quem ficou menos surpresa de Loki ter sido canalha a ponto de recusar meu desafio.
Porém, antes que a lança pudesse acertar o peito do pai dela, uma voz alta rugiu:
— PARE!
Sam parou.
Minha mente ainda estava confusa. Por um segundo, achei que Loki tinha gritado a ordem e que Sam havia sido obrigada a obedecer. Que todo o treinamento de Sam, o jejum e a confiança, tinham sido por nada.
Mas percebi que Loki não deu ordem nenhuma. Na verdade, parecia bem irritado. Sam parara por vontade própria. Multidões de draugrs e gigantes abriram caminho enquanto o capitão Hrym mancava na nossa direção. Ele não carregava o machado. O escudo intrincado feito de ossos de costela estava amassado como se tivesse sido bicado por um pato muito grande.
O rosto envelhecido não era mais bonito de perto. Fios de uma barba branca como gelo estavam pendurados no queixo. Os olhos azuis e pálidos cintilavam no fundo das órbitas como se estivessem derretendo até o cérebro. A boca coriácea dificultava saber se ele estava fazendo careta para nós ou prestes a cuspir uma semente de melancia.
E o cheiro: eeeeeca. As peles brancas mofadas de Hrym me deixaram nostálgico pelo armário com cheio de “velho” do tio Randolph.
— Quem propôs um desafio? — perguntou Hrym.
— Fui eu — respondi. — Um vitupério contra Loki, a não ser que ele esteja com medo de me enfrentar.
A plateia murmurou:
— Ooooohhhhh…
Loki rosnou.
— Ah, por favor. Você não vai conseguir me fazer morder a isca, Magnus Chase. Hrym, nós não temos tempo para isso. O gelo derreteu. O caminho está livre. Vamos esmagar esses invasores e zarpar!
— Espere um minutinho! — interveio Hrym. — Este navio é meu! Eu sou o capitão!
Loki suspirou. Tirou o quepe de almirante e deu um soco na parte de dentro, em uma tentativa óbvia de tentar controlar a raiva.
— Meu querido amigo. — Ele sorriu para o capitão. — Nós já discutimos por isso. Nós dividimos o comando de Naglfar.
— Suas tropas — explicou Hrym. — Meu navio. E quando discordamos, toda desavença precisa ser resolvida por Surt.
— Surt? — Engoli mais sangue. Não fiquei animado de ouvir o nome do gigante do fogo de que eu menos gostava, o sujeito que abriu um buraco no meu peito e derrubou meu cadáver em chamas da ponte Longfellow. — Surt também está aqui?
Loki riu com deboche.
— Um gigante do fogo em Niflheim? Nada provável. Sabe, meu jovem e burro einherji, tecnicamente Surt é dono deste navio, mas só porque Naglfar está registrado em Muspellheim. Mais incentivos fiscais por lá.
— Essa não é a questão! — gritou Hrym. — Como Surt não está aqui, o comando é meu!
— Não — retrucou Loki chegando ao limite da paciência. — O comando é nosso. E eu digo que nossas tropas têm que partir!
— E eu digo que um desafio proferido da maneira apropriada tem que ser aceito! São as regras. A não ser que você seja covarde, como o garoto alega.
Loki riu.
— Covarde? Acha que estou com medo de enfrentar uma criança? Ah, faça-me o favor! Ele não é ninguém.
— Então tá — falei. — Mostre para nós como anda a sua lábia… a não ser que tenha sido corroída junto com o resto da sua cara.
— Ooooohhhhh! — exclamou a plateia.
Alex ergueu a sobrancelha para mim. A expressão dela parecia dizer: Até que não foi tão ruim quanto eu esperava.
Loki olhou para o céu.
— Pai Fárbauti, mãe Laufey, por que eu? Meus talentos serão desperdiçados com essa plateia!
Hrym se virou para mim.
— Você e seus aliados aceitam um cessar-fogo até o vitupério acabar?
Alex respondeu:
— Magnus é nosso competidor, não nosso líder. Mas, sim, nós vamos interromper o ataque.
— Até os patos? — perguntou Hrym seriamente.
Alex franziu a testa como se fosse realmente um pedido muito sério.
— Muito bem. Até os patos.
— Então está acertado! — gritou Hrym. — Loki, você foi desafiado! Pelos antigos costumes, deve aceitar!
Loki engoliu o insulto que ia lançar ao capitão, provavelmente porque Hrym tinha o dobro do tamanho dele.
— Certo. Vou insultar Magnus Chase até não restar mais nada dele além de uma pocinha sob meu sapato. Aí vamos zarpar! Samirah, querida, segure meu chapéu.
Ele jogou o quepe de almirante. Samirah deixou que caísse aos seus pés.
Ela sorriu para ele friamente.
— Segure o próprio chapéu, pai.
— Ooooohhhhh! — disse a plateia.
A raiva ficou evidente no rosto de Loki. Eu quase conseguia ver as ideias fervendo na cabeça dele, todos os jeitos maravilhosos com os quais poderia nos torturar até a morte, mas ele não disse nada.
— UM VITUPÉRIO! — anunciou Hrym. — Até que acabe, que nenhum golpe seja dado! Que nenhum pato seja lançado! Permitam que os guerreiros inimigos se aproximem para assistir à competição!
Com alguns empurrões e xingamentos, nossos amigos atravessaram a multidão. Considerando tudo pelo que tinham passado, eles pareciam bem. Mestiço tirara mesmo a camisa. No peito, escrita com o que parecia ser sangue de gigante, estava a palavra FLÄM com um coração em volta.
O cano do rifle de T.J. soltava fumaça no frio, depois de tantos disparos. A baioneta pingava gosma de zumbi, e a corneta tinha sido retorcida em formato de pretzel de latão. (Eu não podia culpar nossos inimigos por fazerem isso.)
Hearthstone parecia ileso mas cansado, o que era compreensível depois de destruir tantos inimigos com gelo e raios. Ao lado dele estava Blitzen, e gigantes com dez vezes o tamanho do anão correram para longe dele. Alguns murmuraram, cheios de medo, o título mestre dos patos. Outros enfiaram as unhas no pescoço, que Blitzen tinha envolvido com gravatas apertadas de cota de malha. Gigantes morriam de medo de gravatas.
Mallory Keen estava pulando em uma perna só — aparentemente havia quebrado o mesmo pé que machucara na Noruega —, mas pulava com ferocidade, como uma verdadeira guerreira filha de Frigga.
Ela embainhou as facas e sinalizou para mim: Estou com a noz.
Se fôssemos espiões, esse seria um ótimo código para uma arma nuclear ou algo assim. Infelizmente, ela só queria dizer que estava com a noz. Era minha responsabilidade colocar Loki lá dentro. Eu me perguntei se Mallory conseguiria abri-la e sugá-lo lá para dentro sem que eu precisasse vencê-lo em uma batalha de insultos. Provavelmente não. Nada até o momento tinha sido fácil. E eu duvidava de que fosse começar agora.
Por fim, Jacques voltou flutuando até mim, resmungando:
— Paz de Frey, Magnus? Sério? Não foi legal, amigo.
E parou ao lado de Samirah para ver o que ia acontecer.
A plateia formou um círculo de uns dez metros de diâmetro em volta de Loki e de mim. Cercado por gigantes, senti como se estivesse no fundo de um poço. No silêncio repentino, eu conseguia ouvir o ribombar dos trovões ao longe, o estalo de gelo glacial derretendo, o tremor e o chiado dos cabos de aço de Naglfar esticados, o navio pronto para zarpar.
Minha cabeça latejava. Minha boca sangrava. O buraco onde meu dente ficava começou a doer, e eu não estava me sentindo nada poético.
Loki sorriu. Ele abriu os braços como se fosse me dar um abraço de boas-vindas.
— Bem, Magnus, olhe só pra você: participando de vitupérios como um adulto! Ou seja lá como vocês chamam um einherji que não envelhece, mas está aprendendo a não ser um bebê tão chorão. Se você não fosse um serzinho tão inútil, eu talvez ficasse impressionado!
As palavras machucaram. Literalmente. Pareceram explodir nos meus canais auditivos como ácido, gotejando pelos meus ouvidos e escorrendo até minha garganta. Tentei responder, mas Loki enfiou o rosto cheio de cicatrizes na frente do meu.
— Pequeno filho de Frey — continuou ele. — Entrando em uma batalha que não pode vencer, sem ideia, sem plano, só com um pouco de hidromel na barriga! Você achou mesmo que isso compensaria sua total falta de habilidade? Mas até que faz sentido. Você está tão acostumado a contar com seus amigos para lutarem por você. Agora, é sua vez! Que triste! Um otário sem talento! Você sabe o que você é, Magnus Chase? Quer mesmo saber?
A plateia riu e se empurrou. Eu não ousei olhar para os meus amigos. Fui tomado de vergonha.
— O-olha quem fala — consegui dizer. — Você é um gigante se passando por deus ou um deus se passando por gigante? De que lado está, além do seu próprio?
— Não estou do lado de ninguém! — Loki riu. — Nós somos todos agentes independentes neste navio, não somos, pessoal? Cada um cuida de si!
Os gigantes rugiram. Os zumbis se mexeram e sibilaram, as auras azuis geladas crepitando nos crânios.
— Loki cuida de Loki. — Ele bateu com os dedos nas medalhas de almirante. — Não posso confiar em mais ninguém, posso?
A esposa dele, Sigyn, inclinou a cabeça de leve, mas Loki não pareceu reparar.
— Pelo menos sou sincero! — continuou. — E, respondendo sua pergunta, eu sou um gigante! Mas a
questão é a seguinte, Magnus: os aesires são apenas uma geração diferente de gigantes. Então, também são gigantes! Essa coisa de deuses contra gigantes é ridícula. Nós somos uma grande família infeliz. Isso é algo que você devia entender, seu humaninho disfuncional. Você diz que escolheu sua família. Diz que ganhou um novo grupo de irmãos e irmãs em Valhala. Que fofo. Pare de mentir para si mesmo! Ninguém nunca está livre dos laços de sangue. Você é igualzinho à sua família verdadeira. Tão fraco e deslumbrado pelo amor quanto Frey. E tão desesperado e covarde quanto o velho tio Randolph. E tão estupidamente otimista e morto quanto sua mãe. Pobre garoto. Você tem o pior dos dois lados, Frey e Chase. Você é ridículo!
A multidão riu. Eles pareceram crescer, me afundando nas suas sombras.
Loki se aproximou de mim, bem mais alto.
— Pare de mentir para si mesmo, Magnus. Você não é ninguém. É um erro, um dos muitos bastardos de Frey. Ele abandonou sua mãe, fingiu que você não existia até você recuperar a espada dele.
— Isso não é verdade.
— Mas é! Você sabe! Pelo menos eu reconheço meus filhos. Sam e Alex aqui me conhecem desde que eram crianças! Mas você? Você não é merecedor nem de um cartão de aniversário de Frey. E quem cortou seu cabelo?
Loki gargalhou alto.
— Ah, certo. Foi Alex que cortou, não foi? Você não achou que isso significasse alguma coisa, não é?
Ela não liga para Magnus Chase. Só queria usar você. Ela puxou a mãe. Sinto tanto orgulho.
O rosto de Alex estava lívido, mas ela continuou em silêncio. Nenhum dos meus amigos se mexeu ou tentou se pronunciar. A luta era minha. Eles não podiam interferir.
Onde estava a magia do hidromel de Kvásir? Por que eu não conseguia proferir um insulto decente?
Eu realmente achava que o hidromel podia compensar minha total falta de talento?
Espere aí… essas eram as palavras de Loki, enterradas no fundo do meu cérebro. Eu não podia deixar que ele me definisse.
— Você é mau — falei.
Até isso saiu com desânimo.
— Ah, que isso! — Loki sorriu. — Não me venha com esse papo de bom e mau. Esse nem é um conceito nórdico. Você é bom porque mata seus inimigos, mas seus inimigos são maus porque matam você? Que tipo de lógica deturpada é essa?
Ele se inclinou para mais perto. Loki estava definitivamente mais alto que eu agora. Minha cabeça mal chegava aos ombros dele.
— Um segredinho, Magnus: não existe bom e mau. O mundo é dividido entre pessoas capazes e incapazes. Eu sou capaz. E você… não.
Ele não me empurrou, não fisicamente, mas eu cambaleei para trás. Eu estava literalmente murchando sob as gargalhadas da plateia. Até Blitzen estava mais alto que eu agora. Atrás de Loki, Sigyn me observava com interesse, as lágrimas vermelhas cintilando nas bochechas.
— Own… — Loki fez beicinho. — O que você vai fazer agora, Magnus? Reclamar que sou cruel? Me criticar por assassinar e enganar? Vá em frente! Cante minhas maiores vitórias! Bem que você gostaria de ser tão capaz quanto eu. Você não sabe lutar. Não consegue pensar sob pressão. Não consegue nem se expressar na frente dos seus ditos amigos! Que chance tem contra mim?
Continuei a encolher. Mais algumas ofensas e eu ficaria com sessenta centímetros de altura. Em volta das minhas botas, o convés começou a se mover, unhas de mãos e pés se curvando para cima como plantas famintas.
— Vamos! Dê o seu melhor — desafiou Loki. — Não? Ainda sem palavras? Então acho que vou dizer
Olhei para os rostos ávidos dos gigantes, para os rostos sombrios dos meus amigos, todos formando um círculo em volta de mim, e soube que aquele era um poço do qual eu nunca conseguiria sair.
Tenho um grand finale
TENTEI DESESPERADAMENTE PENSAR nos meus melhores insultos: Você é um meinfretr . É burro. É feio.
Pois é… meu melhor não era grande coisa, principalmente vindo de um cara que estava literalmente encolhendo ao ser massacrado por Loki.
Torcendo para conseguir inspiração, olhei para os meus amigos de novo. Sam estava com uma expressão austera e determinada, como se de alguma forma ainda acreditasse em mim. Alex Fierro parecia furiosa e desafiadora, como se de alguma forma acreditasse que, se eu fizesse besteira, ela ainda poderia me matar. Blitz tinha desenvolvido um tique nervoso no olho, como se estivesse me vendo destruir um belo trabalho de costura. Hearthstone estava triste e cansado, observando meu rosto como se procurasse uma runa perdida. T.J., Mallory e Mestiço estavam tensos, observando os gigantes ao nosso redor, provavelmente tentando elaborar um plano B no qual o B significava o Burro do Magnus.
Por fim, meu olhar encontrou o de Sigyn, de pé discretamente atrás do marido, as mãos entrelaçadas, os estranhos olhos vermelhos fixos em mim como se ela estivesse esperando.
Mas o que estava esperando? Sigyn ficou ao lado do marido quando todo mundo o abandonou. Durante séculos, cuidou de Loki, impedindo da melhor maneira possível que o veneno da cobra caísse no rosto dele, apesar de ter sido traída, maltratada e ignorada. Mesmo agora, Loki mal lhe dava atenção.
Sigyn era leal além da conta. Mas, na caverna de Loki, durante a cerimônia de casamento do gigante Thrym, eu tive quase certeza de que ela distraiu o marido em um momento crítico para impedir que ele me matasse e matasse meus amigos.
Por que ela desafiaria o marido assim? O que queria? Era quase como se estivesse trabalhando por debaixo dos panos para miná-lo, como se quisesse atrasar o Ragnarök e ver o marido de volta à caverna, preso às pedras e sofrendo.
Talvez Loki estivesse certo. Talvez ele não pudesse confiar em ninguém, nem mesmo na esposa.
Em seguida, pensei no que Percy Jackson me disse no convés do USS Constitution: que minha maior força não estava em meu treinamento, mas sim na minha equipe.
Um vitupério deveria minar a confiança do adversário, insultá-lo até não sobrar nada. Mas eu era um curandeiro. Não diminuía as pessoas, eu fazia com que elas se sentissem bem. Não podia jogar pelas regras de Loki e esperar vencer. Tinha que jogar pelas minhas regras.
Respirei fundo.
— Quero falar sobre Mallory Keen.
O sorriso de Loki vacilou.
— Quem é essa e por que deveria me importar?
— Que bom que você perguntou. — Eu projetei a voz com o máximo de volume e confiança que meus pulmõezinhos permitiam. — Mallory Keen sacrificou a vida para corrigir o próprio erro e salvou várias criancinhas da morte! Agora, é a lutadora mais corajosa e a melhor xingadora de Valhala. Ela mantém o andar dezenove unido mesmo quando queremos matar uns aos outros! Algum de vocês pode alegar ter o mesmo nível de camaradagem?
Os gigantes se remexeram com inquietação. Os draugrs se olharam como quem diz: Sempre quis
matar esse cara, mas ele já está morto.
— Mallory abriu as portas da caverna de Suttung só com duas facas! — continuei. — Derrotou os nove escravos de Baugi sem nada além da lábia e de uma pedra! E quando descobriu que era filha de Frigga, conseguiu se segurar e não atacou a deusa!
— Ooh… — Os gigantes assentiram com apreciação.
Loki balançou as mãos, descartando minhas palavras.
— Acho que você não entendeu como funciona um vitupério, garotinho. Essas coisas não são nem insultos…
— Vou contar agora sobre Mestiço Gunderson! — gritei mais alto do que ele. — Um grande berserker, a glória de Fläm! Ele conquistou reinos com Ivar, o Sem-Ossos. Matou sozinho o gigante Baugi, salvando sua cidade natal e dando orgulho à sua mãe! Guiou nosso barco com firmeza e precisão pelos nove mundos, o machado provocando mais danos do que a maioria dos batalhões. E fez tudo isso sem camisa!
— E ele fica muito bem assim — murmurou outro gigante, cutucando o abdome do berserker.
Mestiço deu um tapa na mão dele.
— E os feitos de Thomas Jefferson Jr.! — gritei. — São dignos de qualquer salão viking! Ele partiu para cima do inimigo, sob uma chuva de balas, para encontrar sua nêmese, Jeffrey Toussaint, cara a cara.
Morreu enfrentando um desafio impossível, como um valoroso filho de Tyr! Ele é o coração e a alma da nossa equipe, uma força motivadora que nunca falha. Derrotou o gigante Hrungnir com seu Springfield 1861 de confiança e carrega o estilhaço do coração do gigante acima do olho como medalha de honra. E
também pode acender fósforos!
— Hum… — Os gigantes assentiram, sem dúvida pensando em como isso seria útil para acender os cachimbos nos ventos frios de Niflheim.
— E Blitzen, filho de Freya! — Eu sorri para meu amigo anão, cujos olhos estavam ficando úmidos.
— Ele superou Eitri Júnior nas forjas de Nídavellir. É um dos estilistas mais arrojados dos nove mundos.
Ele costurou a bolsa de boliche mágica de Miúdo! Enfrentou o dragão Alderman de mãos vazias e forçou o monstro a recuar. Suas gravatas de aço inoxidável patenteadas e seus Expande-Patos são o pesadelo dos gigantes!
Vários gigantes choramingaram em concordância apavorada.
— Pare com isso! — disparou Loki com rispidez. — Isso é ridículo! O que é toda essa… essa positividade? Magnus Chase, seu cabelo continua horrível e suas roupas…
— Hearthstone! — Era imaginação minha ou eu estava ficando mais alto de novo? Parecia que agora podia encarar os olhos do meu oponente sem inclinar a cabeça. — O maior mago de runas dos nove mundos! Sua bravura é lendária! Ele está disposto a sacrificar qualquer coisa pelos amigos. Superou os mais terríveis desafios: a morte do irmão, o desprezo da família…
Minha voz falhou de emoção, mas Loki não falou no instante de silêncio. A plateia ficou me olhando com expectativa, alguns com lágrimas nos olhos.
— O pai dele virou um dragão — continuei. — Mas Hearthstone o enfrentou, enfrentou seus piores pesadelos e saiu vitorioso, quebrando uma maldição, destruindo o ódio com compaixão. Sem ele, nós não estaríamos aqui. Ele é o mais poderoso e mais amado elfo que conheço. Ele é meu irmão.
Hearthstone colocou a mão sobre o coração. O rosto dele estava tão cor-de-rosa quanto o lenço que Alex lhe dera.
O capitão Hrym fungou. Parecia que ele queria dar um abraço em Hearthstone, mas estava com medo de a atitude não pegar muito bem na frente da tripulação.
— Samirah al-Abbas — falei. — Filha de Loki, mas muito melhor que o pai!
Loki riu.
— Como é que é? Essa garota nem…
— Valquíria escolhida a dedo por Odin para executar as missões mais importantes! — As palavras estavam saindo com facilidade. Eu sentia um ritmo nelas, uma cadência incontrolável, uma certeza.
Talvez fosse por causa do hidromel de Kvásir. Ou talvez fosse porque eu estava falando as coisas mais verdadeiras que conhecia. — Vocês sentiram a lança de luz dela queimar suas tropas no combate! Sua persistência é de aço. Sua fé, resoluta. Ela superou o domínio do pai! Salvou nosso navio dos temíveis vatnavaettir! Voou mais rápido do que o grande Baugi em sua forma de águia, levando o hidromel de Kvásir para nossa tripulação! E fez tudo isso durante o jejum do ramadã!
Vários gigantes arquejaram. Alguns colocaram a mão na garganta ao perceber o quanto estavam com sede.
— Samirah — resmungou Loki —, vire lagarto e vá embora, minha querida.
Sam franziu a testa para ele.
— Não, pai. Não vou fazer isso. Por que não vai você?
— Oooh! — Alguns gigantes até aplaudiram.
Eu com certeza estava mais alto agora. Ou, esperem… Loki estava ficando mais baixo.
Mas ainda não era o suficiente. Eu me virei para Alex.
— Vou contar sobre Alex Fierro!
— Deixando o melhor para o final, é? — perguntou Alex, em tom de desafio.
— Ela é nossa arma secreta! O terror de Jórvík! A criadora de Pottery Barn, o guerreiro de cerâmica!
— Eu comprei uns jogos americanos lindos nessa loja — murmurou um dos gigantes para o colega ao lado.
— Na mansão dos Chase, ele decapitou um lobo com apenas um fio, depois bebeu suco de goiaba no chifre dos meus ancestrais!
— Ele? — perguntou um gigante.
— Deixa pra lá — disse outro.
— Ela uma vez decapitou Grimwolf, o lindwyrm mais velho! — continuei. — Derrotou a bruxaria de Utgard-Loki em um torneio de boliche dos horrores! Ganhou a confiança e a afeição da deusa Sif! Ela me manteve vivo pelo mar congelado de Niflheim, e quando me beijou debaixo daquele cobertor ontem… —
Encarei os olhos bicolores de Alex. — Bom, foi a melhor coisa que já aconteceu comigo.
Eu me virei para encarar Loki. Meu rosto estava quente. Talvez eu tivesse falado um pouco mais do que deveria, mas não podia deixar que isso atrapalhasse meu ânimo.
— Loki, você perguntou quem eu sou. Eu sou parte dessa equipe. Sou Magnus Chase do andar dezenove do Hotel Valhala. Sou filho de Frey, filho de Natalie, amigo de Mallory, de Mestiço, de T.J., de Blitzen, de Hearthstone, de Samirah e de Alex. Essa é minha família! Essa é minha othala. Eu sei que eles sempre vão me apoiar, e é por isso que estou aqui de pé, triunfante, no seu navio, cercado pela minha família, e você… mesmo em meio a milhares, você… ainda… está… sozinho.
Loki sibilou. Recuou de cara feia até um muro feito de draugrs.
— Eu não estou sozinho! Sigyn! Querida esposa!
Sigyn tinha sumido. Em algum momento durante o vitupério, ela devia ter se misturado com a plateia.
Esse ato silencioso falou mais alto do que séculos de abuso.
— Alex! Samirah! — Loki tentou dar um sorriso confiante. — Venham, minhas queridas. Vocês sabem que eu amo vocês! Não sejam difíceis. Matem seus amigos por mim e tudo será perdoado.
Alex ajeitou a capa de pelo verde por cima do colete.
— Foi mal, mãe. Mas não vai rolar.
Loki foi até Samirah, que o fez parar com a ponta da lança. O trapaceiro estava com menos de um
metro de altura agora. Ele tentou mudar de forma. Pelo surgiu na testa dele. Escamas de peixe apareceram nas costas das mãos. Nada pareceu durar.
— Você não pode se esconder de si mesmo, Loki. Independentemente da forma que assumir, ainda é você: sozinho, desprezado, amargo, sem fé. Seus insultos são vazios e desesperados. Você não tem a menor chance contra nós, porque você não tem um nós. Você é Loki e está sempre sozinho.
— Eu odeio vocês! — gritou o deus, com cuspe voando da boca. Escorria ácido de todos os poros, chiando ao bater no convés. — Nenhum é digno da minha companhia e muito menos da minha liderança!
Conforme Loki foi encolhendo, seu rosto repleto de cicatrizes ondulou, se contorcendo de raiva.
Ácido fumegava em poças em volta dele. Eu me perguntei se era todo o veneno que a víbora de Skadi pingou nele ao longo dos séculos ou se era apenas parte da própria essência de Loki. Talvez Sigyn tivesse tentado proteger Loki da cobra porque sabia que o marido já era cheio de veneno. Ele mal conseguia impedir que sua forma humana se liquefizesse na substância.
— Você acha que seu discurso de amigos felizes significa alguma coisa? — rosnou ele. — Está na hora de um abraço de grupo agora? Vocês me deixam com nojo!
— Você vai ter que falar mais alto. É difícil ouvir você aí embaixo.
Loki andou de um lado para outro e resmungou, com poucos centímetros de altura agora, pisando em poças do próprio veneno.
— Eu vou matar você lentamente! Vou mandar Hel torturar o espírito de todo mundo que você ama!
Vou…
— Fugir? — perguntou Samirah, bloqueando Loki com a ponta da lança quando ele correu para a esquerda.
Ele disparou para a direita, mas Alex esticou a bota rosa de esqui para impedi-lo.
— Não mesmo, mãe — disse Alex. — Eu gosto de você aí embaixo. E agora, Mallory Keen tem um lindo presente de despedida para você.
Mallory se aproximou dando pulinhos e pegou a noz.
— Não! — gritou Loki. — Não, vocês não ousariam! Eu nunca…
Mallory jogou a noz para cima do deus em miniatura. A casca se abriu e puxou Loki com um barulho horrível de sucção, depois se fechou de novo. A noz sacudiu e tremeu no convés. Uma vozinha gritava obscenidades lá dentro, mas a casca permaneceu fechada.
Os gigantes franziram a testa para a noz.
O capitão Hrym pigarreou.
— Ora, isso foi interessante. — Ele se virou para mim. — Parabéns, Magnus Chase! Você venceu esse vitupério de forma justa. Estou impressionado! Espero que aceite minhas desculpas, pois vou ter que matar todos vocês agora.
Quarenta e quatro
Por que eles têm canhões? Eu quero canhões
EU NÃO ACEITEI as desculpas dele.
Nem meus amigos, que formaram um anel protetor ao meu redor e começaram a atacar as fileiras inimigas, seguindo lentamente para o lado direito do navio.
Ainda pulando em uma perna, Mallory Keen pegou sua noz do mal e guardou no bolso, depois exibiu sua habilidade com duas facas enfiando as lâminas na virilha do capitão Hrym.
Mestiço e T.J. lutaram como máquinas mortíferas. Eu não queria dar crédito a mim mesmo pela disposição de ambos, mas a forma com que destruíram as tropas foi admirável, quase como se estivessem determinados a serem tão bons quanto eu os descrevi, como se minhas palavras tivessem feito com que ficassem maiores ao mesmo tempo que fizeram Loki ficar menor.
— Venham comigo! — gritou Sam, sua lança de luz abrindo caminho para a direita.
Alex movia o garrote como um chicote, arrancando a cabeça de qualquer gigante que chegasse perto demais.
Fiquei com medo de Blitzen ser pisoteado na confusão, mas Hearthstone se ajoelhou e deixou o anão subir em seus ombros. Ok, isso era novidade. Eu não achava que Hearth tivesse força física para carregar Blitz, que era baixo mas corpulento, nem um pouco parecido com uma criancinha. Mas Hearth conseguiu, e pelo jeito como Blitz aceitou a carona sem questionar, tive a sensação de que eles já tinham feito isso antes.
Blitz jogou gravatas e Expande-Patos como serpentina no carnaval, espalhando terror nas linhas inimigas. Enquanto isso, Hearth arremessou uma runa familiar na direção da proa: Ehwaz, a runa do cavalo, explodiu com luz dourada. De repente, flutuando no ar acima de nós, estava nosso velho amigo Stanley, o cavalo de oito patas.
Stanley observou a confusão, relinchou como quem diz: Aparecer no meio de uma cena de luta?
Tranquilo. Em seguida, pulou na confusão, meio galopando, meio voando nos crânios de gigantes e causando caos generalizado.
Jacques, zumbindo com irritação, voou até mim.
— Eu tenho uma lâmina para cortar com você, Magnus.
— O quê?
Eu me abaixei quando uma lança voou por cima da minha cabeça.
— Você faz esse discurso lindo — disse Jacques. — E quem você deixa de fora? É sério?
Com o cabo, Jacques deu um soco tão forte em um gigante que o pobre coitado voou para trás, derrubando uma pequena cavalaria zumbi.
Engoli minha vergonha. Como pude ter me esquecido da minha espada? Jacques odiava ser esquecido.
— Jacques, você era minha arma secreta!
— Você disse isso sobre Alex!
— Hã, quer dizer, você era meu coringa! Eu estava guardando o melhor para, você sabe, poesia emergencial!
— Sei!
Ele cortou o amontoado mais próximo de draugrs como uma serra elétrica.
— Eu… Eu vou pedir a Bragi, o deus da poesia, para escrever pessoalmente um épico sobre você! —
falei de repente, me arrependendo da promessa assim que a fiz. — Você é a melhor espada do mundo!
Sem dúvida!
— Um épico, é? — Ele brilhou em um tom mais forte de vermelho, ou talvez fosse só sangue escorrendo pela lâmina. — Escrito por Bragi?
— Claro! Agora, vamos sair daqui. Quero que dê o seu melhor! Para descrever para Bragi depois, sabe como é.
— Humf. — Jacques se virou para um gigante da metrópole, transformando-o em pedacinhos. — Acho que posso fazer isso.
Ele começou a trabalhar, cortando nossos inimigos como um consumidor remexendo freneticamente as araras de roupas durante a Black Friday.
— Não, não, não! — gritou Jacques. — Eu não gosto de vocês! Saiam do meu caminho! Vocês são feios!
Em pouco tempo, nosso grupinho de heróis chegou à amurada. Infelizmente, a queda era de pelo menos uns cem metros, indo parar direto em águas geladas e cinzentas. Senti um nó no estômago. A queda tinha pelo menos o dobro da altura da que fracassei ao fazer do mastro principal de Old Ironsides.
— Nós vamos morrer se pularmos — observou Mallory.
A horda inimiga nos pressionou contra a amurada. Por mais que nos empenhássemos na luta, nossos inimigos nem precisariam mais nos acertar para nos matar. Só a multidão deles nos esmagaria ou nos empurraria na água.
Eu puxei o lenço amarelo.
— Posso conjurar Mikillgulr, como fizemos no salão de Aegir.
— Só que agora nós vamos para baixo — disse Alex. — Não vamos subir. E não tem Njord para nos proteger.
— Ela está certa! — gritou Blitz, jogando um punhado generoso de gravatas para seus admiradores.
— Ainda que o navio não rache com o impacto, todos os nossos ossos vão se quebrar.
Sam espiou pela lateral.
— E mesmo que sobrevivêssemos, aquelas armas afundariam nosso navio.
— Armas? Que armas?
Segui o olhar dela. Eu não tinha reparado antes, provavelmente porque as portas estavam fechadas, mas a lateral do casco de Naglfar exibia fileiras de canhões.
— Isso não é justo. Vikings não tinham canhões. Como é que Naglfar tem canhões?
T.J. perfurou um zumbi com a baioneta.
— Vou fazer questão de registrar uma queixa no Comitê de Regras do Ragnarök. Mas agora, seja lá o que vamos fazer, precisa ser logo!
— Concordo! — gritou Mestiço, seu machado cortando um grupo de lobos-esqueleto.
— Eu tenho um plano — anunciou Sam. — Vocês não vão gostar.
— Adorei! — gritou Blitz. — Qual é?
Alex desviou de um dardo.
— Mas e aquela história de quebrar todos os ossos do corpo…?
— Não tenho tempo para explicar — retrucou Sam. — Pulem!
Quando uma valquíria te manda pular, você pula. Fui o primeiro a saltar pela amurada. Tentei me lembrar das lições de Percy — queda livre, braços e pernas abertos, flecha, bunda —, apesar de saber que nada daquilo importaria da altura que pulamos.
Acertei a água com um grande splash. Eu já tinha morrido vezes suficientes para saber o que esperar: uma onda de dor sufocante e repentina seguida de escuridão total. Mas isso não aconteceu. Na verdade, voltei à superfície, ofegante e tremendo, mas totalmente ileso. Percebi que alguma coisa me empurrava para cima.
A água borbulhou e se agitou ao meu redor como se eu tivesse caído em uma banheira de hidromassagem. Entre minhas pernas, a correnteza parecia quase sólida, como se eu estivesse montado em uma criatura esculpida de água do mar. Diretamente à minha frente, uma cabeça surgiu nas ondas: um pescoço forte feito de água cinzenta, uma crina de espuma, um focinho majestoso cuspindo plumas de névoa gelada das narinas. Eu estava montado em um vatnavaettir, um cavalo d’água.
Meus amigos também caíram na água, cada um montado nas costas de um espírito de cavalo que os aguardava. Os vatnavaettir relincharam e pularam quando lanças choveram ao nosso redor.
— Vamos nessa! — Sam desceu com a lança de luz e se posicionou nas costas do cavalo d’água que liderava o bando. — Na direção da boca da baía!
Os cavalos dispararam para longe do navio dos mortos. Gigantes e draugrs gritaram de fúria. Lanças e flechas bateram na água. Canhões ribombaram. Balas explodiram perto o bastante para espirrar água em nós, mas os vatnavaettir eram mais rápidos e mais ágeis do que qualquer navio. Eles ziguezaguearam, disparando pela baía a uma velocidade incrível.
Jacques voou ao meu lado.
— Ei, Magnus, você viu aquela evisceração que eu fiz?
— Vi — respondi. — Foi incrível!
— E o jeito como cortei os membros daquele jötunn?
— Aham!
— Espero que você tenha feito anotações para o épico que Bragi vai escrever.
— Sem dúvida!
Fiz uma nota mental para começar a fazer mais notas mentais.
Uma figura equina diferente passou acima de nós: Stanley, o cavalo de oito patas, conferindo se estávamos todos bem. Ele relinchou como quem diz: Beleza, acho que acabamos por aqui, né? Tenham um ótimo dia!
Em seguida, disparou para as nuvens cinza como aço.
O cavalo d’água era surpreendentemente quente, como o animal vivo, o que impediu que minhas pernas congelassem completamente na água gelada. Ainda assim, eu me lembrava das histórias de Mallory e Mestiço sobre vatnavaettir arrastando suas vítimas para o fundo do mar. Como Samirah os estava controlando? Se o bando decidisse mergulhar, todos morreríamos.
Mas mesmo assim continuamos correndo em direção à abertura nas geleiras que ficavam na entrada da baía. Eu já conseguia ver a água começando a congelar de novo, os blocos de neve ficando mais densos e rígidos. O verão em Niflheim, que durava uns doze minutos, tinha chegado ao fim.
Atrás de nós, o estrondo dos canhões se espalhava sobre a água, mas Naglfar permaneceu no lugar.
Como estávamos com seu almirante preso dentro de uma noz, eu torcia para que o navio fosse obrigado a
Disparamos para fora da baía e entramos no mar gelado, nossas montarias abrindo caminho em meio aos blocos de neve. Em seguida, nós nos direcionamos para o sul em direção à águas bem mais seguras e infestadas de monstros de Jötunheim.
Se vocês entenderem o que acontece neste capítulo, me contem, porque eu não faço a menor ideia
TRÊS DIAS É muito tempo para navegar com uma noz do mal.
Depois que os cavalos d’água nos deixaram (“Eles ficaram entediados”, explicou Sam, o que era bem melhor do que nos afogar), eu ativei o Bananão e todo mundo subiu a bordo. Hearthstone conseguiu conjurar a runa de fogo kenaz, o que nos salvou da morte por congelamento. Seguimos para oeste, confiando que nosso navio mágico nos levaria aonde precisávamos ir.
Nas primeiras doze horas, mais ou menos, funcionamos à base de pura adrenalina e pavor. Colocamos roupas secas. Eu curei o pé de Mallory. Comemos. Não falamos muito. Grunhíamos e apontávamos para as coisas de que precisávamos. Ninguém dormiu. Sam entoou suas orações, o que foi incrível, considerando que o restante de nós provavelmente não seria capaz de formar frases completas.
Finalmente, quando o sol cinzento se pôs e o mundo ainda não tinha terminado, começamos a acreditar que Naglfar de fato não zarparia atrás de nós. Loki não sairia de sua diminuta prisão. O Ragnarök não começaria, ao menos não naquele verão. Havíamos sobrevivido.
Mallory segurava a noz. Recusava-se a soltá-la. Ela se encolheu na proa, examinando o mar com os olhos estreitos, seu cabelo ruivo balançando ao vento. Passada uma hora, Mestiço Gunderson se sentou ao lado dela e Mallory não o matou. Ele murmurou para ela por muito tempo, palavras que não tentei ouvir. Mallory começou a chorar, expelindo alguma coisa de dentro de si que parecia quase tão amarga quanto o veneno de Loki. Mestiço a abraçou, não parecendo exatamente feliz, mas satisfeito.
No dia seguinte, Blitzen e Hearthstone entraram em um modo superprotetor, garantindo que todos estivessem aquecidos, alimentados e que ninguém ficasse sozinho se não quisesse. Hearth passou muito tempo ouvindo T.J. falar sobre guerra e escravidão e o que constituía um desafio honrado. Hearth era ótimo ouvinte.
Blitz ficou com Alex Fierro a tarde toda, mostrando a ela como fazer um colete usando cota de malha.
Eu não sabia se Alex precisava mesmo de um colete de cota de malha, mas o trabalho pareceu acalmar os dois.
Depois das orações noturnas, Samirah se aproximou de mim e me ofereceu uma tâmara. Ficamos mordiscando nossas frutas e observando as estranhas constelações de Jötunheim piscarem acima de nós.
— Você foi incrível — disse Sam.
Absorvi a frase. Samirah não era de fazer elogios, tanto quanto Mallory não era de ficar pedindo desculpas.
— Bom, não foi poesia — falei, por fim. — Estava mais para puro pânico.
— Talvez não faça muita diferença — disse Sam. — Além do mais, aceite o elogio, Chase.
— Tudo bem. Obrigado.
Eu fiquei ao lado dela olhando o horizonte. Foi bom só estar ali, ao lado de uma amiga, apreciando as estrelas sem medo de morrer nos cinco minutos
seguintes.
— Você também foi ótima. Enfrentou e venceu Loki.
Sam sorriu.
— É. Tive muitos agradecimentos a fazer nas orações de hoje.
Assenti. Fiquei me perguntando se também deveria agradecer a alguém, fora meus amigos no barco, claro. A Sigyn, talvez, pelo apoio silencioso, pela resistência passiva contra o marido. Se os deuses colocassem Loki de volta na caverna, fiquei pensando se Sigyn voltaria a ficar com ele.
Talvez o tio Randolph também merecesse um agradecimento por deixar os recados sobre o hidromel de Kvásir. Ele tentou fazer a coisa certa no final, por mais que tivesse me traído de forma monumental.
Pensar em Randolph me fez lembrar as vozes de Helheim, provocando para que eu me juntasse a elas na escuridão. Bloqueei essa lembrança. Ainda não me sentia forte o bastante para enfrentá-la.
Sam apontou para Alex, que experimentava o colete novo.
— Você devia ir falar com ela, Magnus. Aquilo que você soltou durante o vitupério foi meio que uma bomba.
— Você está falando da… Ah.
O constrangimento criou um nó no meu estômago, um nó que parecia tentar se esconder atrás do meu pulmão direito. Eu tinha anunciado, na frente dos meus oito amigos mais próximos e de milhares de inimigos, quanto tinha gostado do beijo de Alex.
Sam riu.
— Ela provavelmente não vai ficar com muita raiva. Anda. Acaba logo com isso.
Para Sam, era fácil falar. Ela sabia exatamente qual era sua posição no relacionamento com Amir.
Estava noiva e feliz e nunca precisou se preocupar com beijos secretos embaixo de cobertores porque era uma boa muçulmana e jamais faria uma coisa dessas. Eu não era uma boa muçulmana.
Fui até Alex. Ao me ver chegando, Blitzen assentiu com nervosismo e fugiu.
— O que você acha, Magnus?
Alex abriu os braços, exibindo a nova peça cintilante.
— Legal — falei. — Quer dizer, não é todo mundo que fica bem de colete xadrez de cota de malha, mas ficou legal.
— Não é xadrez — disse Alex. — Está mais para a cuadros, como diamantes. Quadriculado.
— Certo.
— Então… — Ela cruzou os braços e suspirou, me examinando como quem diz: O que vamos fazer com você? Era um olhar que recebia de professores, treinadores, assistentes sociais, policiais e alguns parentes próximos. — Aquela sua declaração em Naglfar… foi muito repentina, Magnus.
— Eu… hã. É. Eu não estava pensando direito.
— Obviamente. De onde veio aquilo?
— Bom, você me beijou.
— Mas você não pode surpreender uma pessoa assim. De repente, sou a coisa mais incrível que já aconteceu na sua vida?
— Eu… eu não disse exatamente… — Obriguei-me a parar. — Olha, se você quiser que eu volte atrás…
Eu não conseguia formar um pensamento completo. E não via um jeito de sair da conversa com minha dignidade intacta. Eu me perguntei se estava sofrendo de sintomas de abstinência do hidromel de Kvásir, pagando o preço pelo meu ótimo desempenho em Naglfar.
— Vou precisar de um tempo — disse Alex. — Estou lisonjeada, mas isso é tudo muito repentino…
— Hã.
— Não saio com qualquer einherji de rostinho bonito e corte de cabelo legal.
— Não. Claro. Rostinho bonito?
— Agradeço a proposta. De verdade. Mas vamos fazer uma pausa aqui, e eu volto a fazer contato. —
Ela levantou as mãos. — Um pouco de espaço, Chase.
Ela saiu andando e olhou para trás uma vez com um sorrisinho que me fez encolher os dedos dos pés dentro das meias de lã.
Hearthstone surgiu ao meu lado, a expressão inescrutável, como sempre. O lenço dele, por motivos desconhecidos, tinha mudado para a cuadros, quadriculado vermelho e branco. Nós observamos Alex se afastar.
— O que acabou de acontecer? — perguntei a ele.
Não há palavras para isso em linguagem de sinais, disse ele.
• • •
Na nossa terceira manhã no mar, T.J. gritou da adriça:— Ei! Terra!
Eu achava que a expressão era terra à vista. Mas talvez fizessem as coisas de um jeito diferente na Guerra Civil. Todos nós corremos para a proa do Bananão. Uma ampla faixa de terra plana, vermelha e dourada, se estendia no horizonte, como se navegássemos direto para o deserto do Saara.
— Aquilo não é Boston — observei.
— Não é nem Midgard. — Mestiço franziu a testa. — Se nosso navio seguiu as correntes que Naglfar seguiria, isso quer dizer…
— Estamos chegando a Vigrid — anunciou Mallory. — O Último Campo de Batalha. É o lugar onde todos vamos morrer um dia.
Estranhamente, ninguém gritou Façam este navio dar meia-volta!
Hipnotizados, simplesmente assistimos enquanto o Bananão nos levava na direção de uma das zilhões de docas que se projetavam nas ondas. Na extremidade do píer, um grupo de pessoas esperava: homens e mulheres, todos resplandecentes em suas armaduras cintilantes e capas coloridas. Os deuses tinham aparecido para nos receber.
Eu ganho um roupão fofinho
NA MARGEM ABANDONADA, que tinha o calçadão mais longo do universo, havia milhares de quiosques vazios e quilômetros de organizadores de filas, com placas apontando para um lado e para outro: GIGANTES →
← AESIRES
RETIRADA DE BILHETES →
← GRUPOS ESCOLARES
Nossa doca exibia uma placa vermelha grande com uma ave estilizada e um número cinco grande.
Embaixo estava escrito: LEMBRE-SE, VOCÊ ESTACIONOU EM CORVO CINCO! TENHA UM ÓTIMO RAGNARÖK! Eu achava que nossa vaga de estacionamento poderia ter sido pior. Nós poderíamos ter ido parar em Coelhinho Doze ou Furão Um.
Reconheci muitos dos deuses em nosso grupo de boas-vindas. Frigga estava com o vestido branco-nuvem e o elmo brilhante de guerra, a bolsa de tricô embaixo do braço. Ela sorriu com gentileza para Mallory.
— Minha filha, eu sabia que você conseguiria!
Não tive certeza se ela quis dizer isso por ter previsto o futuro ou por ter acreditado, mas achei que foi legal de qualquer modo.
Heimdall, o guardião da ponte arco-íris, sorriu para mim, os olhos brancos como leite congelado.
— Eu vi vocês chegando a quase dez quilômetros de distância, Magnus. Esse barco amarelo. UAU.
Thor parecia ter acabado de acordar. O cabelo ruivo estava grudado em um dos lados da cabeça e o rosto marcado pelo travesseiro. Levava seu martelo, Mjölnir, pendurado no cinto que, por sua vez, estava preso à calça com uma corrente. Ele coçou o abdome peludo embaixo da camisa do Metallica e peidou com simpatia.
— Disseram que você insultou Loki até ele virar um homenzinho de cinco centímetros. Bom trabalho!
A esposa dele, Sif, com seu cabelo dourado esvoaçante, correu para abraçar Alex Fierro.
— Minha querida, você está linda. Esse colete é novo?
Um homenzarrão que eu nunca tinha visto, de pele negra, careca brilhante e armadura preta de couro ofereceu a mão esquerda para Thomas Jefferson Jr. O deus não tinha a mão direita e seu pulso estava protegido por uma cobertura dourada.
— Meu filho. Você se saiu bem.
O queixo de T.J. caiu.
— Pai?
— Segure minha mão.
— Eu…
— Eu desafio você a segurar minha mão — disse o deus Tyr.
— Eu aceito! — exclamou T.J., e se permitiu ser puxado para a doca.
Odin usava um terno de três peças em cota de malha cor de carvão que achei que tinha sido feito sob medida pelo próprio Blitzen. A barba do Pai de Todos estava bem aparada. O tapa-olho brilhava como aço inoxidável. Seus corvos, Pensamento e Memória, estavam empoleirados nos ombros dele, as penas pretas complementando lindamente o paletó.
— Hearthstone — disse ele —, parabéns pelo uso das runas, rapaz. Aqueles truques de visualização que eu ensinei devem ter mesmo valido a pena!
Hearth deu um sorriso sem graça.
Do fundo do grupo, dois outros deuses abriram caminho. Eu nunca os tinha visto juntos antes, mas agora era óbvio como os irmãos gêmeos eram parecidos. Freya, deusa do amor e da riqueza, resplandecia com seu vestido dourado, um aroma de rosas se espalhando em volta dela.
— Ah, Blitzen, meu lindo menino!
Ela chorou lágrimas de ouro vermelho, espalhando pela doca pedras preciosas estimadas em quarenta mil dólares enquanto abraçava o filho.
Ao lado dela estava meu pai, Frey, o deus do verão. Vestindo calça jeans surrada, camisa de flanela e botas e com o cabelo e a barba louros desgrenhados, parecia ter voltado de uma caminhada de três dias.
— Magnus — disse ele, como se tivéssemos nos visto cinco minutos antes.
— Oi, pai.
Ele esticou a mão com hesitação e me deu um tapinha no braço.
— Bom trabalho. De verdade.
Em forma de runa, Jacques vibrou e pulou até eu o tirar do cordão. Assumindo a forma de espada, ele brilhou em roxo de irritação.
— Olá, Jacques — disse ele, imitando a voz grave de Frey. — Como você está, velho amigo?
Frey fez uma careta.
— Olá, Sumarbrander. Não foi minha intenção ignorar você.
— Sei, sei. Bom, o Magnus aqui vai pedir a Bragi para escrever um poema épico sobre mim!
— Vai? — perguntou Frey, erguendo uma das sobrancelhas.
— Hã…
— Isso mesmo! — Jacques bufou. — Frey nunca pediu a Bragi para escrever um poema épico sobre mim! A única coisa que ele me deu foi um cartão idiota desses que já vem com a mensagem pronta no Dia da Espada.
Acrescentar às notas mentais: existia um Dia da Espada. Xinguei silenciosamente a indústria de cartões comemorativos.
Meu pai deu um sorriso um pouco triste.
— Você está certo, Jacques. Uma boa espada merece um bom amigo. — Frey apertou meu ombro. —
E parece que você encontrou um.
Fiquei grato pelo sentimento caloroso. Por outro lado, temi que meu pai tivesse transformado em um decreto divino a minha promessa impensada de encontrar Bragi.
— Amigos! — chamou Odin. — Vamos nos recolher para nossa tenda de banquetes no campo de Vigrid! Reservei a tenda Lindwyrm Sete! Tenda Lindwyrm Sete. Se alguém se perder, é só seguir as setas roxas. Quando chegarmos lá — a expressão dele ficou séria —, vamos discutir o destino de todas as coisas vivas.
• • •
Estão vendo? Não consigo nem fazer uma refeição com esses deuses sem discutir o destino de todas as coisas vivas.O banquete foi montado no meio do campo de Vigrid, bem longe das docas, pois (de acordo com Samirah) Vigrid se estendia por quinhentos quilômetros em todas as direções. Felizmente, Odin tinha preparado uma pequena frota de carrinhos de golfe.
A paisagem era quase toda uma pradaria vermelha e dourada, com um rio, colina ou amontoado de árvores ocasionais, só para variar. O pavilhão em si era feito de couro curtido. As laterais estavam abertas, a lareira principal acesa e as mesas cobertas de comida. Aquilo me fez lembrar as fotos que vi em antigas revistas de viagem, com pessoas em banquetes luxuosos durante safáris na savana africana.
Minha mãe amava revistas de viagem.
Os deuses se sentaram à mesa dos lordes, como era de se esperar. Valquírias iam de um lado para outro servindo todo mundo, mas se distraíram quando Samirah se aproximou para abraçá-las e contar as fofocas.
Quando todos estavam acomodados, e o hidromel, servido, Odin declarou com voz grave:
— Tragam a noz!
Mallory se levantou. Lançando um rápido olhar para Frigga, que assentiu de forma encorajadora, Mallory foi até um pedestal de pedra na frente da lareira. Colocou a noz ali e voltou para seu lugar.
Todos os deuses se inclinaram para a frente. Thor fez cara feia. Tyr entrelaçou os dedos da mão esquerda com os inexistentes da mão direita. Frey coçou a barba loura.
Freya fez beicinho.
— Embora elas sejam de fato uma ótima fonte de ácidos graxos e ômega 3, não gosto de nozes.
— Essa noz não tem valor nutricional, irmã — disse Frey. — Ela é o que está aprisionando Loki.
— Sim, eu sei. — Ela franziu a testa. — Eu só estava falando de um modo geral…
— Loki está bem preso? — perguntou Tyr. — Não vai pular para fora e me desafiar a um combate corpo a corpo?
O deus pareceu melancólico, como se estivesse sonhando com essa possibilidade.
— A noz é suficiente — disse Frigga. — Pelo menos até acorrentarmos Loki novamente.
— Bah! — Thor ergueu o martelo. — Por mim eu esmagava esse cara agora mesmo! Vai nos poupar muitos problemas.
— Querido — disse Sif —, já conversamos sobre isso.
— De fato — afirmou Odin, seus corvos grasnindo no espaldar do trono. — Meu nobre filho Thor, falamos sobre isso aproximadamente oito mil seiscentas e trinta vezes. Acho que você não está usando as estratégias de escuta ativa muito bem. Não podemos mudar nosso destino.
Thor bufou.
— Bom, de que adianta ser deus, então? Eu tenho um martelo perfeitamente bom e essa noz está implorando para ser esmagada! Por que não ESMAGAR ELA?
Pareceu um plano bem razoável para mim, mas não falei nada. Eu não tinha o hábito de discordar de Odin, o Pai de Todos, aquele que controlava minha pós-vida e meus privilégios de frigobar no Hotel Valhala.
— Talvez… — falei, morrendo de vergonha quando todos os olhares se voltaram para mim. — Sei lá… A gente pudesse pensar em um lugar mais seguro onde aprisioná-lo, pelo menos? Tipo, é só uma ideia, uma prisão de segurança máxima com guardas de verdade? E correntes que não sejam feitas dos intestinos dos filhos dele? Ou, sei lá, podemos simplesmente evitar essa coisa toda de intestino…
Odin riu, como se eu fosse um cachorrinho que tinha aprendido um truque novo.
— Magnus Chase, você e seus amigos agiram com bravura e nobreza, mas agora precisam deixar essa
questão com os deuses. Não podemos mudar a punição de Loki de maneira significativa. Só podemos restaurá-la para que a grande sequência de eventos levando ao Ragnarök seja mantida sob controle. Ao menos por enquanto.
— Humf. — Thor bebeu seu hidromel. — Estamos sempre adiando o Ragnarök. Por que não encarar logo de uma vez? Uma boa luta cairia bem!
— Bem, meu filho — disse Frigga —, nós estamos adiando o Ragnarök porque ele vai destruir o cosmos que conhecemos e porque a maioria de nós vai morrer. Inclusive você.
— Além do mais — acrescentou Heimdall —, só agora temos a capacidade de tirar selfies de qualidade com o celular. Dá para imaginar quanto a tecnologia vai melhorar daqui a alguns séculos? Mal posso esperar para fazer streaming do apocalipse em realidade virtual para meus milhões de seguidores na cyber-nuvem!
Com expressão pensativa, Tyr apontou para um bosque próximo de árvores douradas.
— Eu vou ser morto bem ali… por Garm, o cão de guarda de Hel, mas não antes de acertar a cabeça dele. Mal posso esperar por esse dia. Sonho com os dentes do bicho arrebentando minha barriga.
Todos assentiram com solidariedade, como quem diz: Sim, bons momentos!
Fiquei olhando para o horizonte. Eu também estava destinado a morrer ali durante o Ragnarök, supondo que isso não acontecesse em alguma missão perigosa antes do tempo. Eu não sabia o local exato, mas poderíamos muito bem estar almoçando no exato ponto onde eu seria empalado, ou onde Mestiço cairia com uma espada na barriga, ou Alex… Eu não conseguia pensar nisso. De repente, queria estar em qualquer lugar, menos ali.
Samirah tossiu para pedir atenção.
— Lorde Odin — disse ela —, quais são seus planos para Loki, então, considerando que as amarras originais foram cortadas?
Odin sorriu.
— Não se preocupe, minha corajosa valquíria. Loki será levado de volta à caverna da punição.
Colocaremos novos encantamentos por lá para esconder a localização e impedir futuras invasões. Vamos refazer as correntes, cuidando para que fiquem mais fortes do que nunca. Os melhores anões ferreiros aceitaram a tarefa.
— Os melhores anões ferreiros? — perguntou Blitz.
Heimdall assentiu com entusiasmo.
— Fizemos um pacote de todas as quatro amarras com Eitri Júnior!
Blitz começou a xingar, mas Hearthstone colocou a mão sobre a boca do amigo. Achei que Blitzen ia se levantar e começar a lançar Expande-Patos em um surto de raiva.
— Entendi… — disse Samirah, obviamente nem um pouco empolgada com o plano de Odin.
— E Sigyn? — perguntei. — Vocês vão deixar que ela fique ao lado de Loki de novo, se quiser?
Odin franziu a testa.
— Eu não tinha pensado nisso.
— Não faria mal algum — acrescentei rapidamente. — Ela… ela tem boas intenções, eu acho. Tenho quase certeza de que não queria que ele fugisse.
Os deuses cochicharam entre si.
Alex lançou um olhar questionador para mim, sem dúvida querendo saber por que eu me importava tanto com a esposa de Loki. Eu mesmo não tinha certeza de por que achava isso importante. Se Sigyn quisesse ficar ao lado de Loki, fosse por compaixão ou qualquer outro motivo, eu pensava que era o mínimo que os deuses podiam fazer por ela. Principalmente considerando que tinham matado seus filhos e usado os intestinos como correntes para o pai deles.
Eu me lembrei do que Loki me dissera sobre o bem e o mal, deuses e gigantes. Ele tinha razão: eu não estava necessariamente sentado ao lado dos mocinhos. Estava apenas sentado com um dos lados da guerra final.
— Muito bem — decidiu Odin. — Sigyn pode ficar com Loki, se quiser. Alguma outra pergunta sobre a punição de Loki?
Percebi que muitos dos meus amigos queriam ficar de pé e dizer Sim. VOCÊ ESTÁ LOUCO?
Mas ninguém fez isso. Nenhum dos deuses fez objeções ou sacou armas.
— Tenho que dizer — comentou Freya — que esta é a melhor reunião divina que temos em séculos.
— Ela sorriu para mim. — Evitamos reunir muitos de nós em um só lugar porque normalmente isso gera confusão.
— Na última vez foi o vitupério com Loki — resmungou Thor. — No salão de Aegir.
Na verdade, não gostei de ser lembrado de Aegir, mas isso me fez recordar uma promessa.
— Lorde Odin, eu… eu prometi levar a Aegir uma amostra do hidromel de Kvásir, como pagamento por ele não ter nos matado e nos deixado partir, mas…
— Não tema, Magnus Chase. Falarei com Aegir em seu nome. Posso até dar a ele uma pequena amostra do hidromel de Kvásir da minha reserva especial, supondo que ele me coloque na lista para degustar o hidromel de abóbora com especiarias que ele faz.
— A mim também — disse Thor.
— E a nós — disseram os outros deuses, erguendo as mãos.
Eu pisquei.
— Você… tem uma reserva especial do hidromel de Kvásir?
— É claro! — respondeu Odin.
Isso levantava algumas perguntas interessantes, entre elas: por que os deuses nos fizeram dar a volta ao mundo e arriscar a vida para pegar aquele hidromel dos gigantes quando Odin podia ter nos dado um gole? Essa simples solução não devia nem ter passado pela cabeça de Odin. Ele era o líder, não um membro da equipe.
Meu pai chamou minha atenção. Ele balançou a cabeça como quem diz: Não pergunte. Os aesires são estranhos.
— Muito bem! — Odin bateu com o punho na mesa. — Eu concordo com Freya. Essa reunião transcorreu surpreendentemente bem. Ficaremos com a noz. Quanto a vocês, heróis, serão enviados de volta para Valhala para aproveitarem um grande banquete em sua homenagem. Alguma outra questão antes de terminarmos?
— Lorde Odin — disse Frey —, meu filho e os amigos dele fizeram um grande serviço para nós. Não deveríamos… recompensá-los? Não é de praxe?
— Hum… — Odin assentiu. — Acho que você está certo. Eu poderia transformar todos vocês em einherjar em Valhala! Mas, ah, a maioria já é.
— E o restante de nós — acrescentou Sam rapidamente — gostaria de ficar vivo mais um pouco, lorde Odin, se não se importar.
— Então pronto! — concordou Odin. — Como recompensa, nossos heróis vivos vão continuar vivos!
Eu também darei a cada um cinco exemplares autografados do meu novo livro, Heroísmo motivacional.
Quanto aos einherjar, além do banquete comemorativo e dos livros, vou incluir como cortesia um roupão turco do Hotel Valhala para cada um! Que tal?
Odin pareceu tão satisfeito consigo mesmo que nenhum de nós teve coragem de reclamar. Nós só assentimos e sorrimos sem muito ânimo.
— Hum…, roupão turco — disse T.J.
— Hum…, ficar vivo — disse Blitz.
Ninguém mencionou os livros motivacionais autografados.
— Finalmente, Magnus Chase — continuou o Pai de Todos —, eu soube que foi você quem ficou cara a cara com Loki e levou o golpe dos insultos dele. Quer pedir algum favor especial aos deuses?
Engoli em seco. Olhei para os meus amigos, tentando avisar que não achava justo que eu recebesse tratamento especial. Derrotar Loki foi um esforço coletivo. Essa era a questão. Falar bonito sobre nossos méritos enquanto equipe foi o que fez Loki ser preso, não a minha habilidade em si.
Além do mais, eu não tinha uma lista de favores a pedir guardada no bolso de trás da calça. Sou um cara de poucas necessidades. Sou feliz mesmo sem favores divinos.
Mas me lembrei do último ato de expiação do tio Randolph, tentando me avisar sobre o hidromel de Kvásir. Pensei em quanto a casa dele parecia triste e solitária agora e em como me senti feliz e tranquilo naquele terraço com Alex Fierro. Até me lembrei de um conselho que o anel de Andvari sussurrou em minha mente logo antes de eu devolver o tesouro para o peixe.
Othala. Herança. A runa mais difícil de entender.
— Na verdade, lorde Odin — falei —, tem um favor que eu gostaria de pedir.
Muitas surpresas, e algumas até que são boas
FOI UMA TÍPICA viagem de volta para casa.
Passear em carrinhos de golfe, tentar lembrar onde estacionamos nosso navio de guerra, navegar para a foz traiçoeira de um rio desconhecido, ser sugado por corredeiras que nos jogaram nos túneis sob Valhala, pular de um navio em movimento e ver o Bananão desaparecer na escuridão, sem dúvida indo buscar o próximo grupo sortudo de aventureiros a caminho da glória, da morte e de gambiarras para adiar o Ragnarök.
Os outros einherjar nos receberam como heróis e fomos para o salão de banquetes para uma grande comemoração. Lá, descobrimos que Helgi tinha planejado uma surpresa especial para Samirah, graças a uma dica do próprio Odin. Junto à nossa mesa de sempre, parecendo muito confuso, com um crachá proclamando VISITANTE MORTAL! NÃO MATAR!, estava Amir Fadlan.
Ele piscou várias vezes quando viu Sam.
— Eu… eu estou tão confuso. Você é real?
Samirah colocou as mãos no rosto. Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Ah. Eu sou real. Quero tanto abraçar você agora.
Alex indicou a multidão chegando para jantar.
— Melhor não. Como somos todos família estendida aqui, você tem vários milhares de acompanhantes homens armados presentes.
Percebi que Alex estava se incluindo nesse grupo. Em algum ponto da viagem para casa, ele passou a ser um garoto.
— Isso é… — Amir olhou ao redor, impressionado. — Sam, é aqui que você trabalha?
Sam fez um som que ficou entre uma gargalhada e um soluço alegre.
— É, meu amor. É, sim. E hoje é Eid al-Fitr, não é?
Amir assentiu.
— Nossas famílias estão planejando um jantar. Agora. Eu não sabia se você estaria livre para…
— Sim! — Samirah se virou para mim. — Você pode dar minhas desculpas aos lordes?
— Não precisa pedir desculpas — garanti a ela. — Isso quer dizer que o ramadã acabou?
— Sim!
Eu sorri.
— Em algum momento desta semana, vou levar você para almoçar. Vamos comer no sol e rir muito.
— Combinado! — Ela abriu os braços. — Abraço no ar.
— Abraço no ar — concordei.
Alex deu um sorrisinho.
— Parece que os dois pombinhos vão precisar de mim para servir de acompanhante, então, se me derem licença.
Eu não queria que ele fosse embora, mas não tinha muita escolha. Sam, Amir e Alex foram comemorar Eid e comer uma quantidade absurda de comida deliciosa.
Para o restante de nós, a noite se resumiu a beber hidromel, levar tapinhas nas costas alguns milhares
de vezes e ouvir os lordes fazendo discursos sobre como éramos incríveis, mesmo que os heróis fossem bem melhores antigamente. Acima de nós, nos galhos da árvore Laeradr, esquilos e vombates e pequenos cervos corriam de um lado para outro, como sempre. As valquírias voavam para cá e para lá servindo comida e hidromel.
Perto do final do banquete, Thomas Jefferson Jr. tentou nos ensinar algumas das antigas músicas de marcha da Quinquagésima Quarta de Massachusetts. Mestiço Gunderson e Mallory Keen alternadamente jogavam pratos um no outro e percorriam os corredores entre as mesas se beijando, enquanto os outros vikings riam deles. Meu coração ficou feliz de vê-los juntos novamente… apesar de também me sentir um pouco vazio.
Blitzen e Hearthstone se tornaram presenças tão constantes em Valhala que Helgi anunciou que os dois ganharam status de hóspedes de honra, livres para irem e virem quando quisessem, embora tenha feito questão de lembrar que eles não tinham quarto, acesso ao frigobar e nem nenhum tipo de imortalidade, então deveriam tomar cuidado e evitar projéteis. Blitz e Hearth receberam elmos grandes com os dizeres EINHERJI HONORÁRIO, o que não pareceu deixá-los muito felizes.
Quando a festa estava terminando, Blitzen deu um tapinha nas minhas costas, que já estava dolorida de todos os tapas que recebi naquela noite.
— Nós estamos indo, garoto. Precisamos dormir um pouco.
— Vocês têm certeza? — perguntei. — Todo mundo vai para a pós-festa. Vamos fazer um cabo de guerra em cima de um lago de chocolate.
Parece divertido, sinalizou Hearthstone. Mas nos vemos amanhã. Certo?
Eu sabia o que ele estava perguntando: eu estava mesmo falando sério sobre ir em frente com meu plano, o favor que pedi a Odin?
— Certo — prometi. — Amanhã.
Blitz sorriu.
— Você é um bom homem, Magnus. Vai ser incrível!
O cabo de guerra foi divertido, mas nosso lado perdeu. Acho que porque Hunding era nossa âncora e ele queria um banho de chocolate.
No fim da noite, exausto, feliz e encharcado de calda de chocolate, eu cambaleei de volta ao andar dezenove. Quando passei pela porta do quarto de Alex Fierro, parei por um momento e prestei atenção, mas não ouvi nada. Ele ainda devia estar no Eid al-Fitr com Sam e Amir. Eu esperava que a comemoração estivesse ótima. Eles mereciam.
Entrei no meu quarto. Parei no saguão, pingando chocolate no tapete. Por sorte, o hotel tinha um excelente serviço mágico de limpeza. Eu me lembrei da primeira vez em que entrei naquele quarto, o dia em que morri caindo da ponte Longfellow. Tinha ficado maravilhado com todos os serviços: a cozinha, a biblioteca, o sofá e a TV enorme, o saguão amplo com o céu estrelado cintilando por entre os galhos das árvores.
Agora, havia mais fotos sobre a lareira. Uma ou duas apareciam magicamente toda semana. Algumas eram fotos antigas da minha família: minha mãe, Annabeth, até tio Randolph, as filhas e a esposa em épocas mais felizes. Mas também havia fotos novas: eu com meus amigos do andar dezenove, uma foto que tirei com Blitz e Hearth quando ainda éramos sem-teto. Nós pegamos a câmera de alguém emprestada para fazer uma selfie em grupo. Como o Hotel Valhala conseguiu arrumar essa foto do nada, eu não sabia.
Talvez Heimdall guardasse na nuvem todas as selfies já tiradas.
Pela primeira vez, percebi que entrar naquele quarto era como voltar para casa. Eu talvez não fosse viver no hotel para sempre. Na verdade, tinha acabado de almoçar naquela tarde no lugar onde provavelmente morreria de vez um dia. Ainda assim… ali parecia um bom lugar para pendurar minha
Falando nela… tirei o cordão do pescoço, tomando cuidado para não acordar Jacques, e coloquei o pingente de runa na mesa de centro. Ele zumbiu alegremente no sono, provavelmente sonhando com Contracorrente, a espada de Percy, e todas as outras armas que amou. Como eu ia encontrar o deus Bragi e pedir que escrevesse um épico sobre Jacques, eu não tinha ideia, mas isso era problema para outro dia.
Eu havia acabado de tirar a camisa grudenta encharcada de chocolate quando uma voz atrás de mim disse:
— Talvez seja melhor você fechar a porta antes de começar a trocar de roupa.
Eu me virei.
Alex estava encostado na moldura da porta, os braços cruzados sobre o colete de cota de malha, os óculos rosa na ponta do nariz. Ele balançou a cabeça sem acreditar.
— Você perdeu uma competição de luta na lama?
— Hã. — Eu olhei para baixo. — É chocolate.
— Certo. Não vou perguntar.
— Como foi o Eid?
Alex deu de ombros.
— Foi bom, acho. Muita gente feliz comemorando. Muita comida e muita música. Parentes se abraçando. Não é exatamente o meu estilo.
— Certo.
— Deixei Sam e Amir em boa companhia com as famílias. Eles pareciam… Felizes não é suficiente.
Satisfeitos? Eufóricos?
— Apaixonados? — sugeri. — Com a cabeça nas nuvens?
Alex me encarou.
— É. Serve.
Pinga. Pinga. Chocolate escorreu dos meus dedos de um jeito totalmente descolado e atraente.
— Enfim — disse Alex. — Eu estava pensando no que você disse.
Senti um nó na garganta. Eu me perguntei se tinha alergia a chocolate e estava morrendo de um jeito novo e interessante.
— No que eu disse? — balbuciei.
— Sobre a mansão — esclareceu ele. — Do que achou que eu estava falando?
— Não, claro. A mansão. Aham.
— Acho que topo — disse Alex. — Quando começamos?
— Ah, legal! Amanhã podemos fazer a visita inicial. Vou pegar as chaves. Depois, vamos esperar os advogados fazerem o trabalho deles. Talvez demore umas duas semanas…
— Perfeito. Agora, vá tomar um banho. Você está nojento. Vejo você no café da manhã.
— Certo.
Ele se virou para sair, mas hesitou.
— Mais uma coisa.
Alex andou até mim.
— Também andei pensando na sua declaração de amor eterno ou sei lá.
— Eu não… não foi…
Ele colocou as mãos nas laterais do meu rosto cheio de chocolate e me beijou.
Eu tive que me perguntar: era possível se dissolver em chocolate em um nível molecular e virar uma poça no tapete? Porque foi assim que me senti. Tenho quase certeza de que Valhala teve que me ressuscitar várias vezes durante aquele beijo. Senão, não sei como eu ainda estava inteiro quando Alex
Ele me observou de forma crítica, os olhos castanho e mel me avaliando. Alex estava com um bigode e um cavanhaque de chocolate agora, e havia uma mancha marrom na frente do colete.
Vou ser sincero. Uma pequena parte do meu cérebro pensou: Alex é homem agora. Acabei de ser beijado por um cara. O que eu acho disso?
O resto do meu cérebro respondeu: Eu fui beijado por Alex Fierro e isso é incrível.
Na verdade, eu talvez tivesse feito uma coisa tipicamente constrangedora e idiota, como repetir a tal declaração de amor eterno, mas Alex me poupou.
— Ah. — Ele deu de ombros. — Vou continuar pensando nesse assunto. Depois te conto. Enquanto isso, vá mesmo tomar aquele banho.
Ele saiu, assobiando uma melodia que podia ser da música de Frank Sinatra do elevador, “Fly Me to the Moon”.
Sou ótimo em seguir ordens. Fui tomar banho.
O Espaço Chase ganha vida
OS ADVOGADOS DE Odin eram bons.
Em duas semanas, toda a papelada foi resolvida. Odin precisou batalhar com inúmeras comissões distritais de Boston, com a prefeitura e com várias associações de bairro, mas resolveu essas questões em tempo recorde, como só um deus com dinheiro infinito e histórico de palestras motivacionais conseguiria. O testamento do tio Randolph foi totalmente executado. Annabeth abriu mão da herança com alegria.
— Achei a ideia incrível, Magnus — disse ela ao telefone, da Califórnia. — Você é incrível. Eu… eu estava precisando de boas notícias.
Isso me deixou alerta. Por que Annabeth estava com voz de choro?
— Você está bem, prima?
Ela fez uma pausa longa.
— Vou ficar. Nós… nós recebemos uma notícia ruim quando chegamos aqui.
Eu esperei. Ela não contou mais nada. Decidi não forçar. Ela me contaria se e quando quisesse. Ainda assim, eu queria poder puxá-la pelo telefone e dar um abraço nela. Agora que Annabeth estava do outro lado do país, eu me perguntei quando a veria de novo. Os einherjar em algum momento iam para a Costa Oeste? Eu teria que perguntar a Samirah.
— Percy está bem? — perguntei.
— Está bem, sim — disse ela. — Bom… tão bem quanto se pode esperar.
Ouvi a voz abafada dele ao fundo.
— Percy quer saber se algum conselho dele ajudou você na viagem pelo mar — repetiu Annabeth.
— Claro — respondi. — Diga a ele que fiquei com a bunda contraída a viagem inteira, como ele sugeriu.
Isso a fez dar uma breve gargalhada.
— Pode deixar.
— Se cuida.
Ela respirou, trêmula.
— Vou me cuidar. Você também. Vamos conversar mais quando nos encontrarmos novamente.
Isso me deu esperanças. Haveria uma próxima vez. O que quer que estivesse acontecendo na vida da minha prima, qualquer que fosse a notícia ruim que ela teve que enfrentar, pelo menos meus amigos e eu conquistamos para ela e para Percy um adiamento do Ragnarök. Eu esperava que eles tivessem oportunidade de serem felizes.
Eu me despedi e voltei ao trabalho.
• • •
Passadas duas semanas, a mansão Chase estava em funcionamento.Nossos primeiros hóspedes se mudaram no Quatro de Julho, o Dia da Independência. Alex e eu levamos vários dias para convencê-los de que nossa proposta era séria e não algum tipo de golpe.
“Nós conhecemos a situação de vocês”, dissera Alex para aquelas crianças. “Nós também já fomos sem-teto. Vocês podem ficar pelo tempo que quiserem. Sem críticas. Sem expectativas. Só respeito mútuo, certo?”
Elas entraram com os olhos arregalados, tremendo de fome, e ficaram. Nós não anunciamos nossa presença no bairro. Não fizemos estardalhaço. E não esfregamos na cara dos vizinhos. Mas, nos documentos, a mansão se chamava Espaço Chase, residência para jovens sem-teto.
Blitzen e Hearthstone se mudaram para lá. Eles trabalhavam como cozinheiros, alfaiates e conselheiros. Hearth ensinou linguagem de sinais. Blitz deixou os jovens trabalharem na loja dele, O
Melhor de Blitzen, localizada na mesma rua e que tinha reaberto bem a tempo para pegar a alta temporada de compras.
Alex e eu dividíamos nosso tempo entre Valhala e a mansão, ajudando, recrutando novos jovens.
Alguns ficavam muito tempo. Outros não. Alguns só queriam um sanduíche ou uns trocados ou uma cama para passar a noite. Eles desapareciam na manhã seguinte. Tudo bem. Sem críticas.
Às vezes eu passava por algum quarto e via Alex com o braço em volta de alguma criança nova chorando pra caramba pela primeira vez em anos; ela só ficava ali ouvindo, entendendo.
Ela erguia os olhos e fazia sinal com a cabeça para eu ir em frente, como quem diz: Me dá espaço, Chase.
No dia da inauguração, o Quatro de Julho, fizemos uma festa para nossos hóspedes no terraço. Blitzen e Hearthstone grelharam hambúrgueres e cachorros-quentes. As crianças ficaram lá com a gente, vendo os fogos explodirem acima do Hatch Shell no Esplanade, as luzes estalando pelas nuvens baixas e tingindo as casas marrons de Back Bay de vermelho e azul.
Alex e eu nos deitamos nas espreguiçadeiras, as mesmas em que ficamos depois de matar o lobo na biblioteca de Randolph, semanas antes.
Ela esticou a mão e segurou a minha.
Ela não fazia isso desde que andamos invisíveis na direção do navio dos mortos. Eu não questionei o gesto. Não encarei como algo trivial. Decidi só apreciar o momento. Era preciso fazer isso com Alex.
Ela estava sempre mudando. Os momentos não duravam. Eu tinha que curtir cada um pelo que era.
— Isso é bom — disse ela.
Eu não sabia se ela estava falando do que realizamos com o Espaço Chase ou dos fogos de artifício ou das nossas mãos dadas, mas concordei.
— É, sim.
Pensei no que o futuro nos reservava. Nossos trabalhos como einherjar nunca acabavam. Até o Ragnarök, nós sempre teríamos mais missões a cumprir, mais batalhas para lutar. E eu ainda tinha que encontrar o deus Bragi e convencê-lo a escrever o épico de Jacques.
Além do mais, eu aprendera o suficiente sobre othala para saber que a nossa herança nunca nos abandonava. Assim como Hearthstone precisou voltar a Álfaheim, eu ainda tinha coisas difíceis para enfrentar. A maior de todas: a estrada escura para Helheim, as vozes dos meus parentes mortos, minha mãe me chamando. Hel prometera que eu veria minha mãe de novo um dia. Loki disse que os espíritos da minha família sofreriam pelo que eu fiz a ele. Em algum momento, eu teria que procurar a terra gelada dos mortos desonrados e verificar com meus próprios olhos.
Mas, agora, nós tínhamos os fogos de artifício. Tínhamos nossos amigos, novos e velhos. Eu tinha Alex Fierro ao meu lado, segurando minha mão.
Tudo isso poderia acabar a qualquer momento. Nós einherjar sabíamos que estávamos destinados a
morrer. Que o mundo vai acabar. O fim já está predestinado. Mas, até lá, como Loki disse certa vez, nossas escolhas podiam alterar os detalhes. É assim que nos rebelamos contra nosso destino.
Às vezes até Loki podia estar certo.
Ae gir — deus das ondas
ae sir (pl.: ae sire s) — deuses da guerra; semelhantes aos humanos alcorânico — tudo que é relacionado ou pertencente ao Alcorão, o principal texto religioso do Islã Allahu Akbar — Deus é maior
argr — nórdico para não másculo
Árvore de Lae radr — árvore localizada no centro do Salão de Banquete dos Mortos, em Valhala, com animais imortais que têm funções especiais
bala minié — um tipo de bala usada em rifles durante a Guerra Civil Americana Balde r — deus aesir, filho de Odin e Frigga, irmão de muitos, inclusive Thor. Ele era tão lindo, gracioso e alegre que emitia luz bardos — poetas que compunham nas cortes de líderes durante a era viking be rse rke r (pl.: be rse rkir) — guerreiro nórdico considerado invencível em batalha Bifrost — a ponte arco-íris que liga Asgard a Midgard
Bolve rk — um dos pseudônimos de Odin
bosque de Glasir — árvores em Asgard, fora dos portões de Valhala, com folhas avermelhadas. Glasir significa reluzente Bragi — deus da poesia
brunnmigi — um monstro que urina em poços
caille ach — gaélico para bruxa ou megera
draugr — zumbis nórdicos
Eid al-Fitr — uma festividade comemorada pelos muçulmanos para celebrar o fim do ramadã e inhe rjar (sing.: e inhe rji) — grandes heróis que morreram com bravura na Terra; soldados do exército eterno de Odin; treinam em Valhala para o Ragnarök, quando os mais corajosos se juntarão a Odin na batalha contra Loki e os gigantes no fim do mundo e invigi — combate individual viking
e ldhusfifl — nórdico para bobo do vilarejo
Fárbauti — marido jötunn de Laufey e pai de Loki
Fe nrir — lobo invulnerável nascido do caso de Loki com uma giganta; sua força incrível provoca medo até nos deuses, que o mantêm amarrado a uma pedra em uma ilha. Ele está destinado a se soltar no dia do Ragnarök Fre y — deus da primavera e do verão; do sol, da chuva e da colheita; da abundância e da fertilidade, do crescimento e da vitalidade. Frey é irmão gêmeo de Freya e, como a irmã, tem grande beleza. Ele é o lorde de Álfaheim Fre ya — deusa do amor; irmã gêmea de Frey
Frigga — deusa do casamento e da maternidade; esposa de Odin e rainha de Asgard; mãe de Balder e Hod Garm — cão de guarda de Hel
Ginnungagap — o abismo primordial; a névoa que obscurece as aparências Gjallar — trombeta de Heimdall
glamour — magia ilusória
halal — carne preparada da forma exigida pela lei muçulmana He imdall — deus da vigilância e guardião da Bifrost, a entrada para Asgard He l — deusa da morte desonrosa; nascida do caso de Loki com uma giganta He lhe im — o submundo nórdico, governado por Hel e habitado pelos que morreram fazendo maldades, de velhice ou devido a doenças hidrome l de Kvásir — uma bebida que dá a quem bebe o dom da oratória, criado de uma combinação do sangue de Kvásir com mel Hrungnir — brigão
Hugin e Munin — corvos de Odin, cujos nomes significam pensamento e memória, respectivamente huldra — espírito da floresta domesticado
Idun — bela deusa da juventude que distribui as maçãs da imortalidade para os outros deuses Inshallah — se Deus quiser
Jörmungand — a Serpente do Mundo, monstro nascido do caso de Loki com uma giganta; o corpo dele é tão grande que envolve a Terra jötunn — gigante
ke naz — a tocha, o fogo da vida
konungsgurtha — praça do rei
Kvásir — um homem criado do cuspe dos deuses aesires e vanires, para representar o tratado de paz entre os clãs depois da guerra Laufe y — esposa jötunn de Fárbauti e mãe de Loki
lindwyrm — um dragão temível do tamanho e do comprimento de um caminhão, com apenas duas patas frontais e asas marrons com textura coriácea parecidas com as dos morcegos, porém pequenas demais para voo Loki — deus da lábia, da magia e da trapaça; filho de dois gigantes, Fárbauti e Laufey; adepto da magia e da metamorfose. Ele é alternadamente maldoso e heroico para os deuses de Asgard e para a humanidade. Por causa do papel na morte de Balder, Loki foi acorrentado por Odin a três pedras gigantescas com uma serpente venenosa enrolada acima da cabeça. O veneno da cobra queima o rosto do deus de tempos em tempos, e quando ele se debate seus movimentos causam os terremotos me infre tr — peido fedido
mikillgulr — nórdico para amarelão
Mímir — deus aesir que, ao lado de Honir, trocou de lugar com os deuses vanires, Frey e Njord, no final da guerra entre os dois clãs. Como os vanires não gostaram dos conselhos dele, cortaram sua cabeça e a mandaram para Odin. Odin depositou a cabeça em um poço mágico, onde a água o trouxe de volta à vida, e Mímir absorveu todo o conhecimento da Árvore do Mundo mjöð — hidromel
Mjölnir — o martelo de Thor
Naglfar — o Navio das Unhas
Njord — deus vanir dos mares, pai de Frey e Freya
nøkk — um nixe, ou espírito da água
Nornas — três irmãs que controlam o destino dos deuses e dos humanos Odin — o “Pai de Todos” e rei dos deuses; deus da guerra e da morte, mas também da poesia e da sabedoria. Ao trocar um olho por um gole do Poço da Sabedoria, Odin ganhou conhecimentos inigualáveis. Ele pode observar os nove mundos de seu trono em Asgard; também vive em Valhala com os mais corajosos entre os mortos em batalha
oração maghrib — a quarta de cinco orações formais diárias feitas por muçulmanos praticantes, recitada antes do pôr do sol othala — herança
ouro ve rme lho — moeda de Asgard e Valhala
Ragnarök — o Dia do Juízo Final, quando os mais corajosos entre os einherjar vão se juntar a Odin na batalha contra Loki e os gigantes no fim do mundo
ramadã — momento de purificação espiritual alcançado por jejum, sacrifício e orações, comemorado no nono mês do calendário islâmico Ran — deusa do mar; esposa de Aegir
— deusa da terra; com seu primeiro marido, teve Uller; Thor é seu segundo marido; a sorveira é sua árvore sagrada Sigyn — esposa de Loki
Skadi — giganta do gelo que já foi esposa de Njord
Sle ipnir — o corcel de oito patas de Odin; só Odin pode invocá-lo; um dos filhos de Loki suhur — refeição pré-aurora feita por muçulmanos praticantes durante o ramadã Sumarbrande r — a Espada do Verão
Thor — deus do trovão; filho de Odin. As tempestades são o efeito de quando a carruagem de Thor atravessa o céu, e os relâmpagos são provocados quando ele usa seu poderoso martelo, Mjölnir
Thrym — um rei gigante
Thrymhe imr — Lar do Trovão
tve irvigi — combate duplo
Tyr — deus da coragem, da lei e do julgamento por combate; ele teve a mão arrancada por uma mordida de Fenrir, quando o Lobo foi amarrado pelos deuses
Utgard-Loki — o feiticeiro mais poderoso de Jötunheim; rei dos gigantes das montanhas Valhala — paraíso para os guerreiros a serviço de Odin
valquíria — servas de Odin que escolhem os heróis mortos que serão levados para Valhala vanir (pl.: vanire s) — deuses da natureza; semelhantes aos elfos
vatnavae ttir ( each-uisge na Irlanda) — cavalos d’água Vigrid — planície que vai ser o local da batalha entre os deuses e as forças de Surt durante o Ragnarök Vili e Ve — os dois irmãos mais novos de Odin, que, junto com ele, participaram da formação do cosmos e são os primeiros aesires. Quando Odin ficou fora por muito tempo, Vili e Ve governaram Asgard no lugar dele, junto a Frigga vitupé rio — duelo verbal de insultos, no qual os competidores precisam exibir prestígio, poder e confiança we rgild — dívida de sangue
wyrd — destino
Ymir — pai de todos os deuses e gigantes
Asgard — reino dos aesires
Vanaheim — reino dos vanires
Álfaheim — reino dos elfos
Midgard — reino dos humanos
Jötunheim — reino dos gigantes
Nídavellir — reino dos anões
Niflheim — mundo primordial do gelo, da névoa e da neblina Muspellheim — reino dos gigantes do fogo e dos demônios
Helheim — reino de Hel e dos mortos desonrados
RUNAS (EM ORDEM DE APARIÇÃO)
Lagaz — água, liquefazer
Fehu — a runa de Frey
Othala — herança
Gebo — presente
Raidho — a viagem
Kenaz — a tocha
Isa — gelo
Ehwaz — cavalo, transporte
Thurisaz — a runa de Thor
SOBRE O AUTOR
© Michael Frost
Rick Riordan nasceu em 1964 nos Estados Unidos, em San Antonio, Texas, e hoje mora em Boston com a esposa e os dois filhos. Autor best-seller do The New York Times, premiado pela YALSA e pela American Library Association, por quinze anos ensinou inglês e história em escolas de São Francisco, e é a essa experiência que atribui sua habilidade em escrever para o público jovem. É autor das séries Percy Jackson e os olimpianos, Os heróis do Olimpo e As provações de Apolo, inspiradas na mitologia greco-romana, e As crônicas dos Kane, que visita deuses e mitos do Egito Antigo.
O navio dos mortos é o desfecho da trilogia Magnus Chase e os deuses de Asgard, dedicada à mitologia nórdica, da qual também fazem parte os livros A espada do verão e a sequência O martelo de Thor, premiado com o Stonewall Book Award de 2017 na categoria infantojuvenil.
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Mitologia greco-romana
Série Percy Jackson e os olimpianos
Mitologia nórdica
Série Magnus Chase e os deuses de Asgard
Mitologia egípicia
Livro 3
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